A grande maioria das pessoas sabe que a Justiça, um dos princípios fundamentais do Direito, é representada por uma Mulher, a Deusa Themis. A sua figura, com as suas inegáveis curvas femininas, está presente em quase todas as casas da democracia, e a sala do nosso parlamento não é exceção.
Mas, será que o Direito Português sempre foi justo para a mulher portuguesa?
Atualmente, consagra o artigo 13.º da nossa Constituição da República Portuguesa (CRP) o tão estimado Princípio da Igualdade, dizendo no seu número dois que: “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Portanto, à partida, podemos afirmar que homens e mulheres estão claramente em posição de paridade face à Lei, ao ponto de algumas pessoas se sentirem confortáveis para dizer que esta é uma realidade sólida, fixa e estabelecida. Contudo, a verdade é que a nossa Constituição está em vigor há uns meros 44 anos, não levando sequer meio século de vigência. Para trás estão mais de nove séculos jurídicos por analisar, que, obviamente, e infelizmente, consagram princípios totalmente incompatíveis com o princípio da igualdade atual.
Posto isto, comecemos então por analisar o Direito Constitucional nacional, que surgiu pela primeira vez de modo formal no ano de 1822, como consequência da Revolução Liberal de 1820. Ao todo, estiveram em vigor cinco constituições em Portugal até chegarmos à Constituição de 1976, que atualmente nos rege. Apesar das evoluções decorrentes desde a Constituição de 1822 até à Constituição de 1911, ambas bastante parecidas, note-se, que a Constituição de 1933, o documento constitucional imediatamente anterior à CRP de 1976, correspondeu a um estrondoso retrocesso dessas mesmas evoluções, sobretudo no que toca ao estatuto da mulher no ordenamento jurídico. Aliás, de acordo com a doutora Luísa Neto, professora de Direito Constitucional e de Direitos Fundamentais na nossa faculdade: “a mulher praticamente não tinha direitos. Se se tratasse de uma mulher casada, os direitos eram exercidos pelo chefe de família. Aliás, a expressão do pai de família, que normalmente era benfiquista, deriva daí e do entendimento que era voz comum nessa altura”. (fonte: https://www.jpn.up.pt/2005/04/26/o-retrato-da-mulher-durante-o-estado-novo/)
Se, por um lado, nos finais do século XIX e inícios do século XX, mesmo já durante a vigência da Constituição de 1911, se verificaram marcos históricos importantes para o sexo feminino, nomeadamente: a primeira mulher licenciada em Medicina (Elisa Augusta da Conceição Andrade, 1889), a Lei do Divórcio de 1910 (que admite o divórcio em Portugal pela primeira vez, atribuindo o mesmo regime para homens e mulheres), a primeira mulher licenciada em Direito (Regina Quintanilha, 1913), assim como a respetiva permissão do exercício da advocacia por parte de mulheres em 1918, pelo Decreto-Lei nº4876, de 17 julho, outrora proibido, a autorização para raparigas frequentarem liceus masculinos (1920) e, posteriormente, a admissão da existência de mulheres professoras nesses mesmos liceus (1926); por outro lado, a partir do Golpe de Estado de 1926 e do início do Estado Novo, a mulher foi perdendo todo o estatuto social e legal que tinha ganho até então.
Se na Constituição de 1933 também estava consagrado, no seu artigo 5.º, um Princípio de Igualdade, essa “igualdade” não passava de uma desigualdade com outro nome, já que só se aplicava aos cidadãos do sexo masculino. Passando a citar, “a igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, […] sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família […].”. Ou seja, a mulher era encarada como um ser inferior perante o homem, cujas capacidades e obrigações máximas eram a gestão do seu lar e da sua família. O seu sustento económico competia somente ao marido, o “grande trabalhador”.
Esta desigualdade de tratamento jurídico manifestava-se na vida prática dos cidadãos de modos muito diferentes, nomeadamente a nível profissional, e a nível do direito civil.
Começando pelo nível profissional, destacam-se algumas exigências caricatas (mas preocupantes e infelizes) impostas única e exclusivamente ao sexo feminino. Por exemplo, uma professora que lecionasse numa escola primária, necessitava de uma autorização estadual para se casar e, como se isso não bastasse, só poderia contrair matrimónio com um homem que recebesse um salário superior ao seu, jamais podendo ser inferior. Pode dizer-se que esta exigência, teve como fundamento o artigo 1678.º da versão inicial do Código Civil de 1966, que definia o marido enquanto “chefe de família”, o que pressupunha claramente que este tivesse de receber um salário superior, de modo a que conseguisse afirmar a sua posição enquanto “bonus pater familias”. Por outro lado, existe ainda o caso das enfermeiras que, até à entrada em vigor do decreto-lei nº 44923, de 18 de março de 1963, não se podiam casar. De acordo com o artigo 3.º do parágrafo nº.4º do decreto-lei 31913, de 12 de março de 1942, “O tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina são reservados a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos”. Na eventualidade de uma mulher enfermeira se casar ou até mesmo engravidar, esta deveria de ser imediatamente afastada da sua profissão, devendo-se dedicar à sua missão principal: ser uma esposa submissa, dedicada ao marido, aos filhos, e ao lar. Além destes dois exemplos, existiam ainda profissões totalmente vedadas às mulheres, destacando-se a área da Magistratura , da Política e da Diplomacia.
No que toca ao direito civil, terei como fonte da exposição um estudo realizado pelo grupo académico FEMfdup no âmbito das comemorações do dia 25 de Abril em Abril de 2020. Antes de mais, é importante realçar que o Código Civil que atualmente está em vigor data do ano de 1966, época em que o Estado Novo ainda se encontrava de pé, e em que as mulheres ainda eram encaradas como um ser inferior aos homens, tendo como principais obrigações a gestão do lar, a educação dos filhos e a submissão ao marido, como tem vindo a ser referido ao longo do artigo. Com efeito, até à versão pela qual hoje pautamos a nossa conduta, o nosso Código Civil teve necessariamente de sofrer, diretas e variadas alterações e revogações para que se tornasse compatível com as mentalidades atuais. Alterações essas que tiveram lugar sobretudo após a prestigiada Revolução dos Cravos (1974). Antes desta revolução que pôs fim ao regime salazarista, o Código Civil estava repleto de artigos machistas, especialmente na parte relativa ao Direito da Família. Seguem-se alguns exemplos.
Começando pelo artigo referido anteriormente, o artigo 1678.º da versão inicial do Código Civil, relativo à administração dos bens do casal, o qual realça que essa teria de ser feita somente pelo marido, dotado do estatuto de chefe de família. Na sua versão atualizada, a administração dos bens do casal compete a ambos os cônjuges, sendo indiferente o seu sexo. Além disso, nos termos do artigo 86.º do anterior Código Civil (atual artigo 82.º), a mulher, após o casamento , deveria adotar a morada do marido, salvo raras exceções. Atualmente, “a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência atual”, não sendo feita nenhuma referência à “morada do marido”, nem sequer a uma “morada de casamento” previamente estabelecida.
Já no que toca à perfilhação, isto é, ao reconhecimento voluntário e legal da paternidade, regulada nos termos do artigo 1828.º da versão inicial do Código Civil, atual artigo 1850.º, constata-se que, inicialmente, a perfilhação do sexo feminino era permitida a partir dos 14 anos, e a do sexo masculino a partir dos 16. Hoje, a perfilhação é legal a partir dos 16 anos, independentemente do sexo
Aprofundando um pouco mais a questão do casamento, à luz do artigo 1601.º, alínea a), a idade legal mínima atual para contrair matrimónio é os 16 anos. Contudo, na versão inicial do Código, e de acordo com o mesmo artigo, as pessoas do sexo feminino poderiam casar a partir dos 14 anos, mas, para o sexo masculino, a idade permitida passava para os 16. Por outro lado, no que toca à anulabilidade do casamento por erro de vontade, as causas possíveis para tal eram referidas no artigo 1636.º do Código Civil, entre as quais se considerava a “falta de virgindade da mulher ao tempo do casamento”. Esta alínea é, de facto, de todos os exemplos referidos na área do direito civil, a mais misógina e, por isso, a mais alarmante. Para o legislador civil de origem, a mulher era encarada como propriedade do homem a todos os níveis, inclusive, a nível sexual. Esta alínea foi revogada de imediato logo após a Revolução do 25 de Abril, pois deixou de haver qualquer fundamento para a sua existência, tendo em conta a sua enorme incompatibilidade com os valores defendidos nesta viragem política. Atualmente, esse mesmo artigo 1636.º, refere que a anulabilidade do casamento por erro de vontade apenas releva quando diz respeito a “qualidades essenciais da pessoa do outro cônjuge”.
Todavia, é ainda importante realçar que, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966, o Estado Novo regeu o seu direito civil à luz do Código de Seabra, de 1867. Escusado será dizer que o estatuto da mulher era ainda mais inferiorizado nos termos deste Código. Aliás, quase se pode dizer que o Direito tutelado neste Código se aproximava do direito vigente ainda à época das Ordenações (séculos XVII a XIX, até à entrada em vigor do Código Civil de 1867). No Código do século XIX, previa-se expressamente o dever de obediência da mulher ao marido, e que quaisquer negócios jurídicos celebrados por esta seriam considerados inválidos, caso não tivessem sido previamente autorizados pelo marido.
É de relembrar ainda que a Lei do Divórcio só surgiu no ano de 1910 e que, antes disso, a mulher jamais poderia pensar em libertar-se do casamento. Portanto, é de sublinhar afincadamente que muitos dos valores jurídicos defendidos pelo Código de Seabra, foram transmitidos para o Código Civil de 1966, até ao momento da sua Reforma, no ano de 1977.
Para concluir esta análise jurídica extensa, é de realçar, na área do Direito Penal, o artigo 372.º do Código Penal de 1886, relativo ao adultério. Nos termos deste artigo, o homem casado que matasse a sua mulher na consequência de um crime de adultério, apenas seria desterrado para fora da comarca por um período de seis meses. Caso as ofensas (agressões) à mulher fossem menores, então o marido não sofreria pena alguma. E, nos termos do artigo 401.º desse mesmo Código, apenas é referido o adultério praticado pela mulher enquanto crime, punível com prisão de dois a oito anos. É curioso, até, que a pena aplicável a um crime de adultério seja equivalente à pena que se aplicava a um crime de violação.
Após esta análise jurídica que, apesar de prolongada, não é de todo suficiente, recomendo uma pesquisa mais aprofundada a todos os interessados e, sobretudo, a todas as mulheres. Apesar de tudo, sei que Themis estará orgulhosa de todas as conquistas que temos vindo a adquirir até hoje, embora o Direito nem sempre tenha sido justo para nós.
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