A verdadeira fraude americana
- Inês Brandão
- 1 de nov. de 2020
- 7 min de leitura
Em novembro de 2016, o Presidente Trump que, apesar de ter ganho as eleições, perdeu o voto popular um mês antes para a então candidata Hillary Clinton, afirmou na sua rede social de preferência, o Twitter, que milhões e milhões de pessoas haviam votado ilegalmente.
A prova? Nem a vê-la.
Em 2017, um ano depois do facto, Trump pediu a Kris Kobach, um político republicano e então Secretário de Estado de Kansas, para liderar uma Comissão com vista a encontrar provas concretas que suportassem estas alegações. Mas oito meses depois, o Presidente dissolveu a Comissão - nenhuma fraude foi descoberta.
Apesar de todos os estudos que existem sobre a dimensão da fraude eleitoral nos EUA indicarem que esse problema é absolutamente residual, e que não há diferenças relevantes entre a votação presencial e aquela realizada por correspondência (por correio), aos olhos de Mr. Trump, já (ou ainda) em 2020, a fraude eleitoral é a maior ameaça premente para a democracia Americana.
A mortífera pandemia do coronavírus tornou o debate em torno das eleições Norte-Americanas inevitável. Este ano, segundo cálculos do New York Times, até 76% dos eleitores norte-americanos podem vir a votar por correspondência, um método usado com frequência há duas décadas em alguns Estados, mas que ganhou importância nacional com a pandemia.
Precisamente por causa desta realidade, os serviços de correios dos EUA estiveram, durante meses, no centro de uma batalha com a Casa Branca, visto que o Presidente se opôs expressamente a reforçar o financiamento do US Postal Service, de modo a bloquear os votos por correspondência nas eleições de terça-feira, porque achou que tal beneficiaria os Democratas.
Vários Estados, no entanto, incluindo aqueles dominados por Republicanos, têm incentivado a votação por correspondência. Ainda assim, o Presidente Trump insiste em afirmar, contra as indicações de todos os estudos disponíveis, que este sistema leva a uma fraude generalizada.
Estará Trump, com este discurso repetitivo, a tentar preparar os norte-americanos para uma guerra judicial pós-eleições (que espera ganhar graças à sua maioria no Supremo Tribunal, agora solidificada com a nomeação oficial de Amy Coney Barret)? Talvez.
Mas, este é um problema muito maior, que não se subsume a um conjunto de alegações vazias por parte de um presidente inábil.
De facto, existe uma ameaça premente e constante para a democracia americana, mas não é a fraude eleitoral, ou pelo menos não uma fraude perpetrada pelos governados. O real problema americano é muito mais amplo e está enraizado em séculos de políticas eleitorais prejudiciais: a supressão indireta do voto.
O problema da fraude eleitoral, tão contestada ao longo dos anos, e não apenas por Trump, não passa de mais um pretexto para que aqueles no poder possam manipular os resultados eleitorais.
E as marionetas, mais uma vez, são as minorias.
Em 1776, 56 homens assinaram declaração de independência, segundo a qual, “all men are created equal”.
Porém, e em contraste absoluto, a Lei Suprema dos EUA, em 1787, veio prever que votar era um privilégio concedido aos homens brancos com propriedade, não um direito universal. Verdadeiramente, quando o George Washington foi eleito como o primeiro presidente dos EUA, apenas cerca de 20% dos governados podiam votar.
As regras que concernem o voto são sobretudo feitas por políticos partidários ao nível dos Estados Federados. E foi sempre assim: Estados diferentes experimentam sistemas de voto diferentes e, se estes funcionarem, os outros Estados copiam-nos.
Quando os EUA declararam a sua independência, o Estado de Nova Jérsia, por exemplo, decidiu deixar qualquer pessoa suficientemente rica votar: mulheres viúvas, afro-americanos livres, etc. Mas rapidamente surgiram receios de fraude eleitoral.
Por conseguinte, após 30 anos, os políticos de Nova Jérsia retiraram, então, esse mesmo direito ao voto às mulheres e aos afro-americanos.
Curiosamente, estes correspondiam aos grupos que votavam contra o seu Governo. Portanto, a invocação de “fraude eleitoral” não é uma estratégia nova utilizada por aqueles que hoje se sentam na cadeira mais alta e pretendem manter o assento quente, é um pretexto tão antigo quanto a própria nação.
Só em 1870, com a 15.ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que surgiu na sequência do final da Guerra Civil e da abolição da escravatura, é que os Americanos deram um verdadeiro passo para a plena democracia: esta emenda veio proibir que os Estados Federados negassem a um cidadão o direito ao voto “on the account of race, color, or previous condition of servitude”.
A Lei parece bastante clara e cada vez mais próxima daquilo que foi declarado em 1776 na declaração de independência.
Então, como é que os Estados Federados contornaram aquilo que parece incontornável?
Ora, a Constituição não permite discriminar com base na raça ou na cor, mas nada diz sobre discriminação com base na prática de atos criminais.
Assim sendo, o Governo da Flórida, sempre inovador e verdadeiramente iluminado, veio a apresentar uma nova Lei que previa que aqueles que já tivessem sido condenados por delitos criminais não podiam votar.
Simultaneamente, deu-se um aumento enorme de Leis emanadas por este Estado, e outros que o copiaram, que criminalizavam o facto de se ser afro-americano, isto é, Leis a que só os afro-americanos estavam sujeitos.
Desde cedo, aqueles no poder procuraram evitar a todo o custo que os escravos recém-libertados pudessem participar ativamente na democracia norte-americana.
E não foi só na Flórida. As Leis de privação de direitos a “criminosos” espalharam-se e fortificaram-se por todo país.
Houve supressão de eleitores, de diversas formas, em quase todos os Estados da nação. Mas o Sul foi o que mais a alimentou.
Aí, foram promulgadas uma série de Leis ao longo dos anos puramente concebidas para restringir o voto, para manter o poder. E, tal foi constantemente feito sobre os legados da escravatura, os legados da pobreza e os legados da falta de acesso à educação.
Por exemplo, em 1924, foi criado em alguns Estados desta área um imposto sobre o voto (poll tax), do qual só estaria isento o sujeito cujo avô votasse. Um afro-americano em 1924 não tinha um avô a quem fosse permitido votar. Este imposto apenas foi banido em 1964, através de mais uma Emenda constitucional. Também, foram implementados testes de literacia, que tinham como alvo não só afro-americanos, como também imigrantes europeus oriundos de países de língua não-inglesa.
Ainda em 1940, só 3% dos adultos afro-americanos do Sul estavam recenseados para votar. Em 1965, centenas marcharam pelo direito ao voto em Selma, no Estrado de Alabama, e as imagens da polícia a atacar brutalmente manifestantes, incluindo o futuro congressista John Lewis, chocaram finalmente a nação e levaram o então presidente, Lyndon Johnson, a agir.
Deu-se finalmente a aprovação da Lei dos Direitos ao Voto de 1965 (The voting rights act), uma conquista histórica para movimento negro. Em 1965, os Estados Unidos finalmente tornaram-se numa democracia na verdadeira aceção da palavra. Todas as táticas racistas se tornaram ilegais. E, fundamentalmente, os Estados que mais cidadãos tinham privado de direitos, como a Flórida, agora tinham de obter autorização prévia do Governo Federal se quisessem dificultar o voto.

A partir desse ano, surgiu um consenso bipartidário sobre a necessidade de facilitar a prática do direito ao voto. Sempre que a Lei dos Direitos de Voto ia expirar, o Congresso revalidava-a. Não só isso, como também surgiram novas ideias para facilitar o voto: simplificar o recenseamento; permitir o voto antecipado; expandir o sistema de voto por correspondência. Em 2008, como resultado de toda esta evolução, um número recorde de pessoas que historicamente tinham sido impedidas de votar elegeram o primeiro presidente negro da nação.

Mas, depois da eleição de Obama, em 2008, o consenso bipartidário desfez-se.
Porquê?
Bem, Obama e o Partido Democrata haviam captado a crescente diversidade do povo norte-americano, mas os Republicanos não, e a inveja competitiva falou mais alto.
Vontade já não faltava aos republicanos sulistas para implementar novas medidas de supressão do voto e, em 2013, o Supremo Tribunal facilitou-lhes a concretização desse desejo ao derrubar um pilar do Movimento dos Direitos Civis: a Lei dos Direitos ao Voto.
Numa decisão 5-4, os juízes conservadores decidiram que os Estados Federados poderiam agora mudar as suas Leis Eleitorais internas sem autorização federal prévia. O Supremo não iria mais policiar as situações de supressão de eleitores, não policiaria a eficácia da Lei dos Direitos ao Voto. As consequências desta decisão foram drásticas e, nas eleições desta terça-feira, poderão ser catastróficas.
Após 2013, metade dos Estados aprovaram novas restrições à forma como se vota. Entre 2013 e 2018, 1688 pontos de voto fecharam, e as filas para as urnas aumentaram radicalmente. É de ressalvar que o encerramento destes lugares onde os cidadãos podem votar não foi feito aleatoriamente: esses 1688 pontos de voto foram estrategicamente encerrados em áreas geográficas povoadas maioritariamente por comunidades de cor.
Aliás, foi comprovado que, em 2018, os eleitores negros e latinos ficaram 45% mais tempo à espera do que os eleitores brancos para chegar às mesas de voto. Como se tal não bastasse, as leis de identificação também se tornaram muito mais rígidas.
E tudo isto é construído numa mentira: a imensa “fraude eleitoral”.
A pandemia que tem arrasado o país tem também conduzido o país para o voto antecipado e para voto por correspondência (por correio), agravando este problema, visto que alguns Estados não permitem o voto antecipado, ou não têm sequer regras para o voto por correspondência - as quais, recentemente, foram sujeitas a mais limitações impostas pelo Supremo.
Apenas um pequeno número de Estados consagra um sistema de votação por correspondência universal (Colorado, Washington, Oregon). Nestes Estados, os boletins de voto são enviados a todos os recenseados. Contudo, na maioria dos Estados, é necessário requisitar esse boletim, sendo que este não é enviado até que a assinatura na requisição do mesmo for verificada e comparada (positivamente) com a que o Estado tem em arquivo.
Noutros Estados é ainda necessária uma justificação plausível para votar por correspondência – e a pandemia não é considerada. É o que acontece nos Estados do Texas, do Louisiana, do Mississíppi, do Tennessee e do Indiana.
Tudo isto leva a uma rede de dificuldades acrescidas para exercer o direito de voto. Os Estados não estavam preparados para este cenário e um grande fluxo de boletins só aumenta a sua probabilidade de rejeição (que, em épocas eleitorais normais, já ronda os 2%). Se conjugarmos esta realidade com o número de pontos de voto encerrados, o resultado são filas infindáveis até à urna.

Temos tendência a pensar na morte das democracias às mãos de homens armados. Mas, hoje, as democracias não morrem às mãos dos generais, mas dos líderes eleitos.
Hoje, o retrocesso democrático começa nas urnas.
Nenhumpaís que se intitule democrático deveria exigir aos seus eleitores que fiquem 5, 6, 7 horas numa fila, em plena pandemia, à espera para exercer o direito de voto que tanto lhes tentam dificultar.
O voto não deveria ter barreiras, nem condicionalismos. Votar não deveria implicar ter de contratar um(a) babysitter, ou tirar um dia de férias no trabalho, ou levar uma lancheira e um banquinho, ou ser rico, homem e branco.
A triste verdade é que poucas sociedades na História conseguiram ser ao mesmo tempo multirraciais e genuinamente democráticas.
Ainda que assim seja, parece-me que o país onde “all men are created equal” é um bom lugar para começar. Esta é uma nova oportunidade.
E, se no próximo dia 3 a souberem enfrentar, colocando fim à Verdadeira Fraude Americana, a América poderá um dia vir a ser, quiçá, verdadeiramente democrática.
Impecável 👌🏻♥️