29 de novembro de 2000 foi um dia histórico para Portugal: a notória “lei da descriminalização do consumo” tornou o consumo de substâncias psicoativas ilícitas numa contraordenação social, em vez de um comportamento alvo de processo-crime. O novo regime jurídico foi um ato radical para o seu tempo: após décadas sucessivas de combate às drogas, que escalou nos anos 90 com o consumo de heroína, o Estado Português decidiu acabar com uma longa guerra sem aparente fim e legislar o fim da perseguição criminosa dos toxicodependentes.
O tema das drogas tem sido de interesse para a sociedade portuguesa há vários séculos. A Lisboa camoniana é conhecida pelo forte consumo do ópio e de outras substâncias que chegavam a Portugal através das rotas coloniais. Já na contemporaneidade, Fernando Pessoa, sob a alçada da mente de Álvaro de Campos, escreveu:
“Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.”
Figura 1: Figuras consomem tabaco e álcool, Painel de azulejos do século XVII, Palácio dos Marqueses de Fronteira
Seria efetivamente no século XX, especialmente a partir dos anos 60, que a sociedade ocidental se viu a braços com um problema gravíssimo no alastramento do consumo destas substâncias. A situação era parecida um pouco em toda a parte: o consumo de canábis, haxixe e cocaína, seguida ainda pela heroína, eram uma interminável dor de cabeça para múltiplas sociedades que, apesar das suas diferenças culturais, em muito se assemelharam no que toca ao problema das drogas. No entanto, são também alvo de discussão algumas das respostas legais dadas a este problema.
A conhecida “guerra contra as drogas” foi uma resposta polémica do presidente norte-americano Richard Nixon - intensificada, num segundo momento, por Ronald Reagan - ao problema que se vivia, com fortes sanções aplicáveis quer aos traficantes quer aos consumidores, e cujas graves penas levaram milhares de pessoas a inundar as prisões americanas. A estratégia foi duramente criticada pela sua ineficácia e pelos efeitos negativos nas comunidades pobres, latinas e afro-americanas — as mais afetadas nesta “guerra”.
Já em Portugal, o 25 de abril trouxe uma aceleração intensa do consumo de drogas que viria a marcar o resto do século no país. O regime jurídico-penal do tráfico ilícito destas mesmas substâncias que vigorava à altura, bem como do consumo das mesmas, era de punição com prisão de seis meses a dois anos e com multa de 5 000$00 a 50 000$00. Estimativas para o final da década de 1990 indicavam que havia entre cinquenta e sessenta mil consumidores de drogas numa população de 10 milhões. Uma mudança revelava-se cada vez mais necessária.
Foi deste modo que, na viragem do século, o Estado Português, entre muitas medidas, decidiu descriminalizar o consumo de substâncias psicoativas, no que foi um ponto de viragem marcante para o país. A autoridade para impor penalidades ou sanções foi transferida da polícia e do sistema de justiça para as chamadas comissões de dissuasão se a quantidade possuída não ultrapassasse um abastecimento de dez dias daquela substância. Foi também facilitado o acesso a tratamentos de substituição e estabelecido projetos de prevenção e acompanhamento, através de Equipas de Rua, Centros de Acolhimento, entre muitas outras instituições. É importante realçar, contudo, que a posse de uma substância ilícita não passou desde então a ser legal em Portugal, tendo-se, em vez disso, decidido decretar o aliviamento das sanções.
Os efeitos desta legislação trouxeram a atenção global. Um relatório de 2009 verificou que o consumo jovem, assim como as mortes e doenças a si associadas reduziram no período de 1999 a 2006 em Portugal. Conclui-se, ainda, que neste período houve um aumento substancial da procura de programas de substituição.
Esta abordagem, centrada na saúde pública, procurou lidar de maneira abrangente com as implicações sociais e de saúde associadas ao consumo de drogas. Não apenas as consequências diretas das drogas no corpo e na mente dos consumidores preocupavam os portugueses, mas também as condições em que eram consumidas. Doenças como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) não eram desconhecidas a ninguém no final do século XX, muito menos aos portugueses, que em 1999 tinham a taxa mais alta de Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) entre consumidores de drogas injetáveis na União Europeia.
As drogas foram, e serão sempre, um tema de conflito no que toca ao papel que o Direito Penal tem na sociedade e o que deve constituir um crime. Constituirá um crime qualquer conduta suscetível de desestabilizar a vida do próprio ou dos restantes? Ou será esta a abordagem errada? O que o regime jurídico-penal português nos veio mostrar é que a ânsia da sociedade em ver os marginalizados castigados pelo seu próprio estatuto de alienação é, de facto, uma abordagem discriminatória e ineficaz. A criminalização do consumo de drogas contribui para ciclos de pobreza e exclusão nos grupos marginalizados ao, por exemplo, desestruturar famílias.
Uma parte substancial da sociedade civil reclama a perseguição criminosa daqueles que consideram perturbar a ordem pública, sem a consideração necessária dos efeitos que tal perseguição acarreta. Cabe à classe política um contínuo cuidado e sensibilização na área, nomeadamente com o tema do consumo na via pública, que tem vindo a incomodar muitos portuenses, e com o aparecimento de novas drogas, como o fentanil, que se estão a revelar avassaladoras nos Estados Unidos da América (um país cuja resposta ao problema continua a falhar).
Destaca-se, ainda, que enquanto à classe política recai a responsabilidade legal de lidar com os desafios provocados pelo consumo de drogas, é imperativo que toda a sociedade esteja consciente dos impactos destas substâncias tanto no indivíduo consumidor quanto naqueles que o rodeiam, advogando por uma resposta construtiva e coletiva, em vez de uma abordagem repressiva e prejudicial.
Manuel Brito e Faro
Departamento Fazer Pensar
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