Em Portugal, a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), comumente conhecida como aborto, pode ser realizada durante as primeiras 10 semanas de gravidez, à luz da Lei 16/2007, de 17 de abril. Mas, para atingirmos este patamar de livre decisão por parte da mulher, o nosso país teve de percorrer um longo caminho, caminho este que teve início com a Lei 6/84, de 11 de maio. Esta última veio permitir a interrupção voluntária da gravidez em casos de perigo de vida para a mulher ou perigo de lesão grave e duradoura para a saúde da mesma, em casos de malformação fetal, ou em casos de violação. Na década de 90, em 1997, a legislação foi alterada. O legislador permitiu um alargamento do prazo para interrupção da gravidez em casos de malformação fetal e em situações de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher”, sendo que, apenas em 2007, e só após referendo, é que a IVG a pedido da mulher foi legalizada.
Vejamos o panorama mundial: na América Latina, cerca de 90% das mulheres em idade reprodutiva vive em países com leis que restringem o aborto, incentivando à prática ilegal e insegura do mesmo; o mesmo acontece na maioria dos países Africanos, em que cerca de 93% das mulheres em idade reprodutiva vive em países com leis restritivas; e no Médio Oriente e Sudeste Asiático o aborto é absolutamente proibido, salvo raras exceções. Na Arábia Saudita, por exemplo, apesar do aborto ser proibido, este pode ser realizado para preservar a saúde física e mental da mulher, mas sempre com prévia opinião médica. O contraste surge quando nos deparamos com a China e Índia, os dois países mais populosos do mundo, e em que as leis sobre o aborto são liberais.
Milhares de mulheres continuam, assim, a ter de recorrer à clandestinidade para poder pôr termo à gravidez indesejada. Demasiadas morrem no processo e, outras, são perseguidas e condenadas violentamente pela escolha tomada. Será correto, neste panorama, o “direito ao aborto” apenas existir para quem tem condições económicas para, contornando, muitas vezes, a lei, viajar para países onde a IVG é permitida? Será possível aceitar que em 2020 ainda seja comprometida a vida da mulher porque não deseja levar a gravidez até ao fim? Bem, para uma grande metade do globo, não só é correto, como é lei – pelo menos para quem governa que, tendencialmente, nessa mesma parte do globo, é precisamente quem nunca terá de experienciar uma gravidez indesejada.
No que toca ao continente europeu, a maior parte dos Estados permite a realização da IVG, sendo que apenas Andorra, Liechtenstein, Malta, Mónaco, Polónia e San Marino mantêm políticas restritivas deste procedimento clínico (Andorra, Malta e San Marino proíbem o aborto de forma absoluta).
Nos últimos tempos, e por conta deste tema, temos testemunhado a onda de indignação que se espalhou pelas ruas da Polónia, um Estado-Membro da União Europeia que já várias vezes foi sinalizado pela Amnistia Internacional e pelos órgãos europeus devido às suas políticas ameaçadoras dos direitos fundamentais e dos princípios que a União visa defender. Desde que subiu ao poder na Polónia, em outubro de 2015, que o partido populista de direita (Law and Justice Party) e as suas políticas estão a afetar drasticamente o sistema democrático de checks and balances (freios e contra-pesos) da Polónia e a ameaçar tudo aquilo que os Polacos tomavam por estabelecido, por paradigma. Porém, antes de avançarmos nesta análise, note-se que a Polónia não é o único Estado-Membro da União a colocar em causa os direitos fundamentados e a independência da justiça. Também na Hungria os juízes foram alvo de vários ataques enquanto o Governo continuou a minar o funcionamento normal do sistema judicial. De facto, desde que Viktor Orbán chegou ao poder na Hungria, há 10 anos, “a direção das mudanças deu à luz a graves preocupações” sobre a independência judicial, afirma um relatório da EU divulgado no final de setembro. Testemunhamos, assim, uma erosão das políticas democráticas nestes dois países europeus.
No dia 22 de outubro, o Tribunal Constitucional polaco decidiu que o aborto em casos de malformação do feto, legal desde o ano de 1993, é inconstitucional, alegando para o facto “práticas eugénicas”. Mesmo antes desta declaração de inconstitucionalidade que as leis polacas referentes à IVG polacas se afirmavam como das mais restritivas da Europa. É de ter em conta que, na Polónia, a mulher já só poderia abortar se a sua gravidez resultasse de uma violação, de incesto, se a sua vida corresse perigo ou se o feto padecesse de malformações, sendo que, agora, esta última passou a ser inconstitucional.
Dados estatísticos afirmam que, num país com 38 milhões de habitantes, e cerca de 2 mil IVG por ano, 98% são motivadas por malformações do feto. Sendo esta prática declarada inconstitucional, podemos concluir que o aborto passou a ser uma realidade impraticável na Polónia. Se antes desta decisão se suspeitava que os números de IVG fossem 100 vezes superiores àqueles de que se tem conhecimento, uma vez que são realizados clandestinamente, o que farão estas mulheres que veem mais uma porta fechada e mais uma negação no que toca à sua liberdade de decisão? Será que esta investida de 119 deputados conservadores, na sua maioria do PiS (Partido “Lei e Justiça”) não condenará à morte mais vidas do que aquelas que pretende salvar? Não irá atirar para o estigma da criminalidade mulheres que, num outro qualquer país que não a Polónia, seriam livres de interromper a sua gravidez? Recorrendo à velha expressão que todos conhecemos, será que os fins justificam os meios? E o que é que representa esta decisão para as relações entre a União Europeia e a Polónia?
Não é, de facto, e como já mencionado, a primeira vez que a Polónia viola o direito da União. Já a 26 de julho de 2017, a Comissão deu início ao procedimento formal previsto no artigo 258º do TFUE, pelo facto de o PiS ter exonerado juízes do Tribunal Constitucional e os ter substituído por juízes que perfilhavam do mesmo pensamento que os conservadores.
Em dezembro de 2017, a União acionou mesmo o mecanismo previsto no artigo 7º do Tratado da União Europeia (TUE), colocando em cima da mesa a discussão sobre o afastamento temporário da Polónia da decisão do destino do projeto europeu, considerando-lhe tirar-lhe o seu direito de voto, por considerar que os desenvolvimentos de políticas extremistas no país violam os princípios fundamentais da UE. Com a colocação em prática dos mecanismos propostos no artigo 7º do TUE, pretende-se que os Estados-Membros (EM) verifiquem “a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2º”. Até hoje, este procedimento ainda decorre.
Assim, a decisão do tribunal em outubro deste ano apenas veio confirmar o perigo que o partido conservador representa para o país, para a União e, sobretudo, para as mulheres polacas. Face à onda de indignação que se gerou não só na Polónia, mas também em todo o mundo, o presidente polaco Andrzej Duda deu já um passo atrás nas suas declarações saudosistas, afirmando agora que "a lei não pode exigir esse tipo de heroísmo de uma mulher", o que parece uma fraca tentativa de acalmar os ânimos no país.
Bruxelas já reagiu com um processo sancionatório por considerar esta declaração um atentado à separação de poderes e uma redução da independência do poder judicial no país. Mas será esta sanção medida suficiente, quando as anteriores nenhuns efeitos repercutiram no atual governo? Não será necessária uma mão mais pesada por parte da União, ou até mesmo dos restantes Estados Membro que não se identificam com estas políticas, e que não veem nelas espelhada a identidade europeia? A que se deve toda esta passividade europeia e mundial? Será a covid-19 mais uma justificação para a inércia da União neste assunto? Quem é que garante o direito ao aborto como um direito humano (princípio defendido por muitos analistas da ONU)?
De facto, milhares de pessoas, tanto mulheres como homens, têm saído à rua todos os dias em várias cidades como Gdansk, Cracóvia, Lodz e Rzeszow, num desafio às medidas de distanciamento decretadas para combater a propagação da pandemia, exigindo um referendo sobre o direito à interrupção da gravidez em caso de malformações do feto.
Esta é a grave situação da Europa: um grande retrocesso de políticas e a inação da União Europeia. E o resto do proclamado “Ocidente”? Nesta esta altura tão decisiva não podemos esquecer os EUA. Roe vs. Wade foi o caso que marcou para sempre o direito americano no que toca ao aborto. Em 1973 o Supremo Tribunal dos EUA reconheceu o direito à IVG, depois de Norma L. McCorvey (“Jane Roe”) ter argumentado que a sua gravidez era resultado de uma violação e que pretendia pôr fim à mesma. O Supremo Tribunal decidiu que a mulher, fundamentando a decisão no “right to be left alone”, sob a cláusula prevista na 14ª Emenda da Constituição Americana, podia decidir por si mesma a continuidade ou não da gravidez. Contudo, o que está verdadeiramente em causa nesta fundamentação não é uma questão de “direito da mulher”. O acórdão do Supremo Tribunal fundamenta esta possibilidade precisamente no direito de ser deixado sozinho com as suas escolhas em liberdade e em paz, não nos direitos da mulher enquanto pessoa que deve decidir, por si só, o seu destino. Ainda assim, a verdade é que hoje, e desde os ataques de 9/11, a jurisprudência dos EUA está a evoluir para uma justificação mais restritiva e para uma liberdade de atuação cada vez menor. Quase meio século depois do Roe v. Wade, vários Estados americanos mostram-se cada vez mais restritivos em matéria de interrupção voluntária de gravidez, sendo que, entre 2011 e 2017, 32 Estados aprovaram um total de mais 394 restrições ao aborto. As chamadas políticas “pró-vida” (serão mesmo?) têm motivado enormes mudanças legislativas. Inclusivamente, Estados como o Alabama aprovaram leis que penalizam fortemente o aborto, incluindo a possibilidade de os médicos que realizem o procedimento enfrentarem até 99 anos de prisão. A realidade é esta: 7 Estados americanos já são antiaborto - Geórgia, Ohio, Mississípi, Kentucky, Iowa e Dakota do Norte e Alabama. Este cenário só veio a deteriorar-se ao longo dos 4 anos da presidência de Donald Trump e sob a alçada da sua administração, que constantemente incitou políticas abusivas e restritivas que colocam em risco a saúde e liberdade da mulher.
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