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“A metamorfose dos pássaros”, ou a arte e a coragem de um sonho

  • Foto do escritor: João Passinhas
    João Passinhas
  • 15 de nov. de 2021
  • 4 min de leitura

Triz”. A metamorfose dos pássaros começa. Olhos inocentes não sabem ainda o que esperar. “Triz”, entoa alguém que já existe menos que o seu corpo, mas que ainda não sabemos quem é. Com essa palavra, com esse nome que nos próximos 101 minutos será tão leve por vezes, e tão pesado por outras, começa A metamorfose dos pássaros.

Nesta primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos (realização e guião), estreada a 28 de fevereiro de 2020 no 70.º Festival de Cinema de Berlim (Berlinale) e “oferecida” ao público geral português a 7 de outubro de 2021, vemos retratada a família da realizadora ao longo dos momentos cruciais de três gerações: os avós, Beatriz e Henrique; o pai Jacinto ou Henrique (nome fora das câmaras), e os tios; e a própria Catarina. Acompanhamos Beatriz no nascimento dos filhos, enquanto o seu marido Henrique, oficial da marinha, navega por mares já antes navegados; acompanhamos Henrique nos seus momentos de saudade da terra e elogio do mar; acompanhamos Jacinto nos momentos distintos das mortes dos seus pais, e no nascimento da sua filha; acompanhamos Catarina no momento da morte da sua mãe, no envelhecimento do seu pai, e na construção desta história. Embora todos estes momentos sejam relevantes, talvez o ponto narrativo mais importante do filme seja a relação entre Catarina e o seu pai, o reflexo que transmitem um do outro no luto pela mãe de cada um.

O filme em si, embora siga uma linha temporal reta, pelo menos na narração, faz com que nós, enquanto meros espetadores, sintamos o tempo narrativo do filme como gotas de água, muitas vezes confundindo o passado com o presente, como se de uma reflexão um do outro se tratassem. É assombroso, na realidade. Temos todos os elementos que compõem um filme, no seu sentido mais comum e informal: temos uma história narrada; imagens que acompanham a narração; e banda sonora a complementar. No entanto, enquanto esperamos que a imagem acompanhe diretamente a narração, aquela trata de criar a sua própria interpretação do que é relatado, como se a narração não fosse mais do que o título para a imagem. A banda sonora, muito frequentemente, desaparece e deixa-nos sozinhos com as rebeldes imagens e a intensa narração; outras vezes, prefere ser substituída pelo barulho do mar quando acompanhamos Henrique no seu navio, ou pelo ruído dos cães que insistem em ladrar em noites escuras, ou ainda por outras onomatopeias e sons curiosos; quando insiste em ficar, a banda sonora gosta de ser música de câmara, que tão bem complementa tudo o que os nossos olhos experienciam no momento. Para terminar esta sucinta descrição do filme, gostaria ainda de mencionar o elenco, que em harmonia com o tom geral da obra, também é pouco usual. Pouco usual, pois encontramos no elenco uma mistura entre atores e familiares da realizadora, que atuam como eles próprios e outros membros da família que infelizmente já não o puderam fazer. Devo destacar as atuações de Luísa Ministro como Zulmira, e de Henrique Vasconcelos como ele próprio (ou Jacinto, como imaginado pela realizadora).

Imagem do filme.

Sei que ainda não referi o género do filme, não foi lapso meu, mas sim uma omissão voluntária. Preferi guardar esse tópico para o momento em que dou início ao relato da minha opinião sobre a longa-metragem. Isto porque A metamorfose dos pássaros, embora documente uma família, ultrapassou o meu sentido de documentário ou filme biográfico, e embora tenha deixado muitas das minhas emoções à flor da pele, também não é um simples drama. A melhor maneira que encontro para descrever o género do filme é a seguinte: imaginemos um poema e um retrato a óleo sobre tela que se apaixonaram; juntos, em fervorosa paixão, sonharam ser uma longa-metragem num ecrã prateado; e juntos, realizaram esse sonho. Foi essa a sensação com que este filme me deixou. Que não era um simples filme, mas sim uma ideia, arte, que sonhou ser filme. O principal ponto positivo a destacar é a cinematografia. Cada plano, cada cena, lembram quadros que deveriam pertencer a um museu de altíssima segurança e prestígio. Para além disso, a já referida banda sonora encaixa perfeitamente no seguimento da obra. A direção geral do filme é fabulosa, contudo, devo mencionar também alguns aspetos negativos: o andamento do filme pode por vezes ser um pouco lento; alguns planos exageram um pouco a sua estadia. Muitos poderão ainda argumentar que o filme se resume a planos e imagens bonitas, com pouco conteúdo na sua totalidade. Esse argumento parece-me inválido, pois o conteúdo d´A metamorfose dos pássaros transcende a narrativa, está presente em cada imagem e em cada som proferido. A meu ver, Catarina Vasconcelos acertou em cheio neste projeto, e provou que para existir um filme o mais importante não é um estúdio gigantesco, nem um elenco milionário, nem um orçamento astronómico, mas sim um sonho. Assim sendo, recomendo bastante o filme. No entanto, devo também admitir que, devido à sua natureza não convencional, nem todos vão apreciá-lo devidamente, o que não tem qualquer mal. Apesar disso, digo com muita certeza que, até à data, A metamorfose dos pássaros, é um dos meus filmes do ano, e com toda a certeza, o filme português do ano.


Atualmente, o filme de Catarina Vasconcelos conta com inúmeros prémios, como por exemplo: o Prémio FIPRESCI do festival Berlinale, onde estreou; o Prémio Zabaltegi-Tabakalera do Festival de San Sebastián, o Prémio de Melhor Filme do Festival de Pesaro, e os Prémios do Público e do Júri no festival de cinema documental One World (Roménia), entre vários outros. Para além disso, foi votado pelos membros da Academia Portuguesa de Cinema como o candidato aos Óscares da Academia Norte-Americana, sendo possível vir a ser escolhido como nomeado para o prémio de cinema internacional.

A metamorfose dos pássaros está em exibição até dia 17 deste mês no Cinema Trindade, aqui na cidade do Porto. Sugiro que caso estejam interessados no filme, aproveitem para vê-lo no grande ecrã, não só para melhor apreciarem a magnífica cinematografia, mas também porque este ainda não se encontra disponível em nenhuma das plataformas de streaming, nem em formato físico.

Entretanto, eu vou com os pássaros.


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