A Grande Beleza
- Vicente Correia
- 21 de mai.
- 4 min de leitura
Há um mês, Mário Vargas Llosa dedicou-nos o seu silêncio. O silêncio povoado de histórias, as tais que nos salvam da banalidade das nossas vidas. A ficção — esse grande refúgio onde nos defendemos contra a solidão e o medo. Como se ao observar outras vidas nos pudéssemos evadir, ainda que por pouco tempo da nossa, e aí residisse a salvação ou a grande beleza — diria Sorrentino.
Antes de avançar para a Grande Beleza, deixem-me falar de outras espécies de beleza não menores que a de Sorrentino. A de Vargas Llosa que, por nos ter deixado há um mês, não desapareceu. Já nos dizia Gonçalo M. Tavares que “quando a noite chega o maravilhoso não escurece” e isso é verdade para todos os que se dedicam ao belo. Vargas Llosa foi mais longe e falou-nos da sua decadência. É no seu livro de ensaios — A Civilização do Espetáculo — que melhor caracteriza a contemporaneidade. Através das suas palavras vamos identificando este nosso tempo “onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento e onde divertir-se, fugir ao aborrecimento, é a paixão universal”. Este desejo de nos divertirmos e de nos distrairmos parece-me perfeitamente legítimo num mundo onde a rotina trabalho-casa nos vai asfixiando cada vez mais criando em nós esta propensão para a descontração. Diferente é quando isso se torna o valor supremo numa sociedade. E é isso que vemos hoje. A começar pela cultura. O domínio da literatura light até à autoajuda, a indústria mainstream da Marvel, ao sensacionalismo do jornalismo que promove a bisbilhotice e o escândalo. Porque esta cultura do entretenimento e do espetáculo não atinge apenas a literatura, o cinema ou a música, como todas as áreas da vida em sociedade. Até na política isso é hoje evidente. Substitui-se o debate de ideias e os programas por mera publicidade ou aparências onde a popularidade ou os “chavões” — soundbites — importam mais do que as convicções ou o pensamento. Onde os políticos preferem ir a programas de entretenimento do que responder às perguntas dos jornalistas sobre as questões que verdadeiramente importam. A simplificação é hoje a moda, porque já não exigimos de nós qualquer esforço intelectual — até porque não o queremos; afinal, é muito mais fácil divertirmo-nos na ilusão de que sabemos tudo quando nunca passamos além da superfície.
É como se as obras fossem fabricadas para serem consumidas nesse instante e desaparecer como as ondas que quebram na areia, enquanto as obras de outrora “pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivas nas gerações futuras”. É o domínio do efêmero, do que se esvai — depois disso, só o imenso areal vazio.
Mas pode ser que nesse imenso vazio emirja a beleza. É disso que nos fala Sorrentino no seu cinema, em especial na Grande Beleza. Quem me conhece — e, já agora, quem me lê — sabe do meu fascínio por Itália e este é um filme sobre esse país imenso, em especial sobre Roma. Uma cidade imersa na beleza e na superficialidade dos que por lá andam, e é esse contraste que marca aquelas duas horas e vinte minutos. Um homem, jornalista, socialite, da elite romana que escreveu há anos o seu primeiro e único romance que o levou à fama e o colocou — como o próprio diz a determinada altura — no vício da mundanidade. No vazio de um ser humano que encontra nas festas, nos excessos, no luxo a satisfação momentânea dos prazeres fáceis que o preenchem do vazio e da angústia que- isso sim- enche a sua vida. Voltando a Vargas Llosa, diz ele que esses excessos “na exaltação e euforia que causam, conferem a momentânea segurança de estar a salvo, redimido e feliz”. Sempre momentânea, sempre precária. No fundo é apenas uma ilusão.
Até que conhece o marido da mulher por quem se apaixonou, quando jovem, e ele lhe diz que ela morreu. É aí o grande ponto de inflexão na forma como passa a ver-se a si e aos outros. Aquele que foi o seu primeiro amor é o mesmo que, agora, relembrado anos depois, fá-lo olhar para as coisas de outra forma. Isso talvez o desperte e o emirja da frivolidade em que está envolvido, como se o amor — essa sim a grande beleza — ainda que relembrado o recentre para prestar atenção ao que é verdadeiramente essencial.
É um filme sobre a decadência. Das elites num ambiente onde se escondem as feridas para não danificarem a boa imagem e as aparências, mas que são a todo o momento alvo de sátira por Sorrentino. O espetáculo da comédia humana onde cada um tenta manter o seu status e provar o que é e o que tem quando a verdade mostra o contrário. É a sociedade italiana, mas poderia ser qualquer uma, tão identificável que é para todos. Para o protagonista, é o presente que significa a decadência, ou seja, sinónimo de vazio e desilusão. Por outro lado, o passado, sinónimo de vida que encontra o seu expoente máximo na primeira mulher que amou e que agora recorda — que traz de novo ao coração (na origem etimológica da palavra).
No final, fala-se dos inconstantes laivos de beleza que vão pautando a nossa vida no meio da “miséria desgraçada e da infeliz humanidade”. É talvez isso que nos vai salvando. É talvez isso que nos emerge do vazio. Como as histórias — a ficção: essa “que se alimenta no fundo comum da espécie e à qual se pode recorrer incessantemente em busca de uma ordem quando parecemos mergulhados no caos, de alento em momentos de desânimo e de dúvidas e incertezas quando a realidade que nos rodeia parece excessivamente segura e fiável” —, dizia-nos Vargas Llosa, que há um mês nos dedicou o seu silêncio (ou talvez não). Acaba sempre assim. Com a morte. Mas antes houve a vida.
Vicente Correia
Departamento Cultural
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