Arte e Tragédia: O Génio de Käthe Kollwitz
- Ana Neri Moreira
- 20 de mai. de 2023
- 7 min de leitura
Berlim, junho de 2022. Em passeio pela imponente Avenida Unter den Linden, entre o Museu Histórico Alemão e a Universidade de Humboldt, dou de caras com um peculiar edifício neoclássico (uma obra do arquiteto Karl Friedrich Schinkel construído entre 1816 e 1818 por encomenda do rei Friedrich Wilhelm III, fiquei depois a saber). À entrada ouvia-se o peso de um silêncio, quebrado apenas pela narração do guia turístico, que contava como, sob aquele “Memorial às vítimas da Opressão e da Guerra”, está enterrado um soldado e uma vítima de um campo de concentração. Mais marcante ainda foi a experiência visual no interior daquele edifício: perante um vazio avassalador e cinzento, os olhos são imediatamente atraídos para o centro, onde a escultura em bronze “Mãe com um filho morto ou Pietà”, de Käthe Kollwitz, repousa, iluminada pelo sol que entra através de uma única abertura no teto.
Nunca antes tinha estado perante um objeto artístico capaz de carregar (e transmitir) uma carga emocional tão forte, nem mesmo em objetos artísticos que recorrem à palavra – a poesia ou a literatura – nem nos que recorrem à imagem em movimento – o cinema, por exemplo. A Pietà de Käthe Kollwitz, uma obra tão evidentemente criada no feminino, no luto de uma mãe, silencia quem a observa, faz-se sentir na espinha dorsal.

O nome da artista não me era estranho, mas pouco me dizia. Mas como? Se por um lado pela minha ignorância, também definitivamente pela crónica e contínua desvalorização da Mulher na História e, em particular, na História da Arte. Para os leitores mais apressados, eis Käthe Kollwitz: a artista viveu entre 1867 e 1945 e a sua obra caracteriza-se por uma visão estética focada nas mulheres e na classe trabalhadora.
Embora desenvolva o seu trabalho no contexto do surgimento do abstracionismo, opta por um estilo naturalista/realista de forma a comunicar efetivamente, com a profundidade, densidade e impacto emocional suficientes, as experiências humanas universais. Valorizando a facilidade na leitura das suas obras, recorre a uma densa e complexa rede de traços e a fortes contrastes claro-escuro. Após a morte do seu filho nos campos de batalha belgas em 1914, o luto torna-se um tema recorrente na sua obra, assim como o protesto, sendo que o detalhe e a qualidade do desenho surgem associados a uma preocupação de representar de forma intensa a realidade da guerra e das suas vítimas. O seu percurso artístico é marcado pela transição de técnicas, associada a uma progressiva simplificação da linguagem, nunca à custa da inteligibilidade: abdica da pintura (área que estudou inicialmente) a favor do desenho (influenciada por Max Klinger, the exact art of drawing over the free form of painting), experimenta a água forte e, a partir de 1890, a escultura, mais tarde foca-se na litografia e na xilogravura.
Käthe Kollwitz nasce Käthe Schmidt em Königsberg na então Prússia, atual Kaliningrado, na Rússia – questão que, por si só, merecia outro artigo.. Entre 1881 e 1886, tem aulas de arte em Königsberg com Gustav Naujok e em 1886 começa a ter aulas de pintura de retrato na Berliner Kunstlerinnenschule (Escola de Berlim para Mulheres Artistas), onde conhece Max Klinger. Pouco depois fica noiva de Karl Kollwitz, um jovem evangélico, membro do partido social democrata alemão. Até 1890, estuda em Munique na Academia Para Mulheres Artistas, lá contacta com a pintura naturalista plein-air e observa como o dia-a-dia das pessoas comuns se vai transformando em motif . Desejando realizar obras em água forte (técnica de gravura em que se utiliza ácido para cortar as áreas não protegidas numa superfície de metal), muda-se de novo para Berlim, onde tem aulas de técnicas gráficas com Rudolf Mauer. A partir de 1891, a artista, fascinada pelos doentes do seu marido no consultório de Prenzlauer Berg, começa a representar a classe trabalhadora nas suas obras, as motivações eram, para já, puramente de exercício estético e não políticas ou de crítica social.
A partir de 1893 começa a dedicar-se ao que viria ser a sua primeira grande obra: trata-se de “Ein Weberaufstand”, baseada na peça de teatro Die Weber, de Gerhart Hauptmann, que narra os motins dos tecelões silesianos, em 1844. A obra é apresentada na Grande Exposição de Berlim de 1898. O kaiser Guilherme II rejeita, indignado, a proposta do júri de atribuição de uma medalha a Käthe Kollwitz pela sua obra.

Entre 1901 e 1913, Kollwitz vive a chamada “década feliz” da sua vida (conturbada). Participa nas exposições da Secessão de Berlim e até da Secessão de Viena e, em 1902, viaja pela primeira vez até Paris, onde é influenciada pelo pintor e gravador Théophile-Alexandre Steinlen. É também neste ano que as suas obras são pela primeira vez incluídas em grandes exposições, nomeadamente em Paris – na galeria de Charles Hessèle – e em Londres, na International Society Of Sculptors, Painters And Gravers. Em 1904, volta a Paris onde, durante dois meses, aprende escultura na Académie Julian, a experiência é completada por uma visita aos ateliers de Rodin. No ano seguinte, apresentou 13 trabalhos seus no Salon Des Indépendants.
Não faltava muito para a obra de Käthe Kollwitz ser reconhecida para lá do Atlântico: em 1912, a New York Public Library organiza a primeira exposição a solo de Kollwitz nos Estados Unidos.
O soar dos canhões da primeira guerra mundial e a morte precoce do filho Peter, marcam o fim da “década feliz” de Kollwitz. A partir daí, a sua obra altera-se radicalmente, sobretudo no que toca ao tema. Logo em 1915, a artista começa a trabalhar num memorial aos soldados mortos na guerra e, em 1918, então convicta pacifista, começa a trabalhar na obra “Krieg” (Guerra), uma série de xilogravuras (técnica de gravura em que se utiliza a madeira como matriz, em inglês woodcut). Sobre esta, escreve numa carta a Romain Rolland, em 1922:
“Tenho tentado repetidamente representar a guerra. Nunca fui capaz de a capturar. Agora, finalmente, terminei uma série de gravuras que se aproximam de expressar o que sempre quis expressar. [...] Estas gravuras devem ser enviadas para todo o mundo e dar a todos a essência de como foi – isto é o que todos nós passámos durante estes tempos incrivelmente difíceis".
Os desenhos deste ciclo, especialmente fortes, têm um grande cunho autobiográfico. Em As Mães, Kollwitz representa um conjunto de mulheres que se unem, construindo com os seus corpos como que uma fortaleza na qual tentam proteger os filhos, que espreitam para fora, dos sacrifícios da guerra. Já em A Viúva II, vemos uma mãe prostrada, de cabeça para trás, que, após a morte do filho, deitado no seu peito, tirou a própria vida.


Durante a República de Weimar, Käthe Kollwitz torna-se membro efetivo da Preußische Akademie der Künste (a primeira mulher!) e ainda membro do comité principal da Bund Neues Vaterland — a mais importante associação pacifista durante a primeira guerra mundial.
Em 1924, ano do décimo aniversário do início da guerra, a Convenção de Jovens Trabalhadores Socialistas da Alemanha Central encomenda a Kollwitz um cartaz — surge o “Nie Wieder Krieg” (Guerra nunca mais), que, curiosamente, se viria a tornar um dos ícones do movimento pacifista nos anos 70 e 80.

Nesse ano, também décimo aniversário da morte do filho, a artista começa a desenhar um novo memorial aos soldados caídos em guerra, que instalaria no cemitério de guerra de Roggevelde na Bélgica, onde estava o seu filho. Embora conclua o trabalho (Trauernde Elte” (Pais em luto) em 1926, a sua instalação na Bélgica só é finalizada em 1932.

A segunda metade da década de vinte corresponderá ao zénite da carreira artística de Käthe Kollwitz: em 1927, ano em que a artista se torna sexagenária, fazem-se inúmeras exposições em sua honra por toda a Europa e nos EUA, e recebe mais de 500 cartas e telegramas, entre elas do Ministro da Cultura da Prússia e do Presidente da Câmara de Berlim. Também nesse ano aceita um convite para a celebração dos dez anos da revolução de outubro em Moscovo, e segue para a Rússia com Karl Kollwitz. Desta sua presença em Moscovo resulta, logo no ano seguinte, a primeira exposição da sua obra na União Soviética. A internacionalização transocidental de Käthe Kollwitz consolida-se em 1930 quando o autor chinês Lu Xun leva a cabo uma investigação do seu trabalho que culmina numa exposição da obra de Kollwitz em Shanghai, em 1936.
O últimos anos da vida de Käthe Kollwitz coincidem com o período mais sombrio da História Contemporânea alemã e, talvez, da europeia. Com o advento do Terceiro Reich, a artista, pelas convicções políticas que continuou a expressar tão abertamente quanto possível, foi obrigada a afastar-se da Academia Prussiana de Arte. Acaba por se exilar na então Checoslováquia onde está pouco tempo antes de regressar a Berlim. Logo desde 1935, as suas obras começam a ser removidas das grandes coleções de arte na Alemanha e, a partir de 1937, como parte da campanha nazi da “Arte Degenerada” as obras de Kollwitz são confiscadas de pelo menos onze museus, acabando por ser vendidas, trocadas ou depositadas no Ministério da Propaganda. A sua “utilização” é confiada a Hildebrand Gürlitt, entre outros. Todas as exposições que celebrariam os 70 anos da artista foram canceladas, pelo que passa a exibir no seu atelier em Klosterstraße para amigos. Não obstante – ou talvez por isso mesmo –, as suas obras mais conhecidas resultam, precisamente, deste período da sua vida. Em 1936 conclui Ruht im Frieden Seiner Hände (Repousa na paz das mãos Dele), um baixo relevo em homenagem ao seu grande amigo Max Liebermann, judeu perseguido pelos nazis.

Em 1938, começa a trabalhar em “Turm der Mütter” (Torre das Mães) e “Pietà”. Escreve no seu diário a propósito da segunda, em 1937:
“Estou a trabalhar na pequena escultura que é o resultado das minhas experiências escultóricas para retratar a velhice. Tornou-se uma espécie de Pietà. A mãe está sentada, o seu filho morto deitado no seu colo entre os joelhos.”
Em 1940, após a morte do marido, esculpe “Abschied” (Despedida).


Paralelamente, a sua obra ganhava cada vez mais protagonismo nos Estados Unidos, com dezenas de exposições em museus como o Cleveland Museum of Art ou até o MoMa.
Käthe Kollwitz morre a 22 de abril de 1945, poucos dias antes do final da Segunda Guerra Mundial. A sua obra destaca-se artisticamente, mas também pela eficácia da denúncia social e pela enorme compaixão e empatia que se revela no modo como representa uma mãe enlutada, uma criança órfã, ou um pai esmagado pela angústia, transportando a dor, a solidão, a alienação para a sua dimensão universal, transversal à condição humana.
Ana Neri Moreira
Departamento Cultural
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