Eles gravam o crime porque para eles violar mulheres não é crime
- Ana Picado
- há 3 dias
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Os últimos dias foram marcados por uma quantidade absurda de notícias, artigos de opinião, estatísticas e esquemas explicativos sobre a crescente violência sexual contra as mulheres e meninas. Parece que chegou à praça a notícia de que a violência contra a mulher ainda existe. Novidade apenas para quem vive com os olhos e ouvidos tapados.
Nesta avalanche de casos e notícias, surge uma estatística que deveria provocar raiva e inquietação na nossa sociedade – a prática de crimes de violação aumentou cerca de 10% no ano de 2024, estando entre os crimes violentos que mais cresceram (de acordo com os dados provisórios do Relatório Anual de Segurança Interna referentes a 2024). Nesta lista, encontramos crimes como o assalto a bancos, roubo de viaturas, roubo a residências e roubo por esticão. Fazendo uma análise muito simplista desta lista, há um ponto que merece a nossa atenção: o crime de violação surge aqui de uma forma estranha, no meio de crimes ligados, na maioria dos casos, a motivações económicas. É aqui que reside a natureza do problema. O crime de violação não é mais do que uma representação do poder de alguém sobre o corpo de outrem, e sabemos que mais de 70% das vítimas são mulheres. O crime de violação em nada se relaciona com motivações económicas. É, sim, o reflexo de uma sociedade que aceita como norma o direito do homem ao corpo da mulher, quando assim for a sua vontade. Enquanto não deixarmos de objetificar o corpo da mulher, de reduzir a sua sexualidade e de a violentar a partir do momento em que nasce como mulher, não nos podemos surpreender com a subida certa desta prática criminal.
Enquanto o sistema judicial continuar a deixar de lado estas vítimas, não reconhecendo as atrocidades que estes crimes trazem à sociedade, e à forma como nos vemos como pares, nada se terá. Continuamos a atirar areia para os olhos das vítimas ao dificultarmos a produção de prova, ao trazermos preconceitos misóginos para a sala de julgamento e ao aplicarmos medidas de coação sem efetividade. São tudo desculpas de um sistema que vive desta subjugação da mulher.
Um dos pontos que tem sido discutido nesta crescente conversa sobre a violência sexual, e o aumento desta também nas gerações mais jovens, é o despreocupado conforto do agressor em gravar a prática do seu crime. Relembrando o julgamento que deu uma cara à violação, em França – o julgamento de Gisèle Pelicot – um dos pontos que mais nos choca é a elevada quantidade de prova que os órgãos de polícia criminal obtiveram contra os mais de 50 homens e o seu marido. Estima-se que, neste processo, tenham sido encontrados mais de 20.000 vídeos que representavam, de forma obscena, as práticas criminais em causa. Mais se diga: estes vídeos estavam organizados com as datas da prática dos crimes, bem como a identificação da pessoa em causa. Não é preciso ser um penalista de renome para fazer a seguinte questão: quem é o criminoso que regista, de forma organizada e sem qualquer secretismo, a sua prática criminal? É apenas aquele que, no fundo, sabe que a letra da lei a ele não se aplica; apenas aquele que vive protegido pela impunidade milenar no que diz respeito à violência contra mulheres; apenas aquele que reconhece, e reclama, o seu direito ao corpo da mulher.
Este sentimento não é descabido, tendo um elevado apoio estatístico. No Reino Unido, estima-se que apenas 1% das violações reportadas à polícia resultam em condenações concretas[1]. Em Portugal, esta também é a realidade, levando a maioria das vítimas a decidir não se submeter ao processo por não reconhecerem nele uma verdadeira justiça. Por mais que se queira empurrar esta questão para o mundo sociológico e cultural, existe aqui um campo essencial da sociedade que não está a fazer o seu trabalho na prevenção geral penal – o Direito. Enquanto pairar, na esfera masculina, um sentimento de conforto e impunidade, o crime de violação não vai parar de crescer. Diga-se mais, conseguiu-se ainda criar uma narrativa de que estas queixas feitas pelas vítimas são orquestradas de forma generalizada para estragar a vida dos abusadores. Estranho é que o crime de violação seja aquele em que a sociedade duvide sempre da vítima. Sem saber absolutamente nada sobre o caso, já plantámos nas pessoas a ideia de que a mulher que denuncia este crime tem uma intenção de estragar a vida do seu abusador. A tarefa engraçada será encontrar algum homem cuja vida tenha sido, efetivamente, estragada por uma denúncia ou condenação por violação. Aliás, um destes chegou mesmo ao poder numa das maiores potências do mundo. Que vida difícil.
Ainda neste tema, a série inglesa “Adolescence” vem trazer um novo capítulo para esta conversa sobre a violência contra a mulher. Sem grandes campanhas de marketing, esta série rapidamente consumiu a sociedade inglesa, ganhando uma grande relevância também em Portugal. Deste sucesso da Netflix começam a surgir muitas dúvidas – o que é um incel? O que é a toxicidade masculina partilhada nas redes sociais? Como é que um rapaz de 13 anos, sem quaisquer antecedentes criminais ou problemas psicológicos, mata uma colega tão violentamente? Que papel têm os pais neste problema? Desde publicações explicativas no Instagram a artigos de opinião de pedopsiquiatras, a sociedade portuguesa recebeu uma grande quantidade de informação. A questão que fica é: enquanto sociedade, conseguimos perceber o que está aqui em causa?
De uma forma simples e intensa, esta série apresenta o grande problema da nossa geração: as redes sociais. Falhando a educação parental, a socialização escolar e a formação das conceções sociais e jurídicas, surgem as redes sociais como um espaço livre e impune. Vigorando apenas a lei do algoritmo, nota-se claramente uma tendência no crescimento de figuras masculinas extremistas que têm um objetivo definido – a endoutrinação dos jovens, para materializar o descontentamento geral e fomentar o ódio à mulher. Não existe aqui nenhum secretismo, está à vista de todos. Estes homens ocupam lugares bastante confortáveis nas plataformas online. Ademais, são vários os que têm processos criminais pendentes por crimes de violação e tráfico sexual de mulheres e meninas.
Enquanto continuarmos a olhar para as redes sociais como algo que não merece nenhuma regulação, continuaremos a ter crianças bem comportadas nos seus quartos, com o telemóvel ligado, que, no dia seguinte, matam as colegas da escola. As redes sociais são um meio de informação que tem de ter regulação, nem que seja externa pelos responsáveis por estas crianças. Se este jovem estivesse a ver este tipo de conteúdo na televisão da sala ao lado dos pais, estes iriam desligar a televisão. Por que razão assumimos que este controlo não pode também existir no telemóvel ou no computador? A delinquência já não começa apenas em becos escuros ou em companhias duvidosas: esta delinquência pode desenvolver-se mesmo em frente aos pais destes jovens.
Retomando o ponto acima referido, estes movimentos machistas e tóxicos olham para esta evolução na igualdade de género e usam-na como um alvo. Recorrendo a discursos misóginos, violentos e hipócritas, existe aqui um efeito psicológico sobre estas crianças e adolescentes de que a culpa do seu descontentamento generalizado é das mulheres e do seu poder que estas têm para os rejeitarem. Da possibilidade da mulher atingir a independência económica surge um grande problema que está a abanar o patriarcado: hoje, a mulher não é obrigada a contentar-se com um homem qualquer para viver. Hoje, a mulher tem o poder de viver enquanto um ser individual. Não é a irmã, a mãe, a esposa, a prima ou a namorada. É uma mulher. A mulher que já não fica só em casa a cuidar dos filhos, a mulher que deixa a relação por violência doméstica, a mulher que ganha mais dinheiro, a mulher que se queixa perante a violência, a mulher que responde. É esta a mulher que se teme. A mulher que vem destruir os sonhos do domínio masculino.
Nem mais uma.
Ana Picado
Departamento Sociedade
[1] Dados retirados do site: https://phys.org/news/2022-04-rapes-convictioncriminologist-england-justice-failure.html
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