“A música não é algo que se descreva; é preciso senti-la”, sublinha a dado momento Ennio Morricone, no recente documentário de Giuseppe Tornatore, Ennio (2023). Com esta frase, o compositor italiano resume a dificuldade que é escrever sobre o seu próprio legado.
Por muitos considerado o inventor da música cinematográfica, Ennio Morricone ficou conhecido por criar narrativas que vivem para lá do enredo fílmico. As suas peças são de tal forma universais que causam a impressão de terem sido escritas em segredo para nós. Não raras vezes o espectador se depara com uma intensidade melódica que a própria cena tem dificuldade em acompanhar. Um fenómeno fascinante, cuja explicação poderá radicar no percurso pessoal deste proclamado génio contemporâneo.
Filho de um trompetista, Ennio Morricone compôs a sua primeira peça com apenas 6 anos de idade, nas mesmas férias de verão em que o pai o instruíra sobre a clave de sol. Escrevinhava melodias semelhantes às que ouvia na rádio, em especial a ópera “Der Freischtz”, de Weber, tal como recorda o próprio numa entrevista à BBC, em 1995.
O ofício do progenitor era a única fonte de rendimento da família, pelo que Mario Morricone traça desde cedo o destino do filho: Ennio teria de ser, como ele, músico. Aos 11 anos iniciou os estudos de trompete e pelos 16 anos já tinha o diploma. Contudo, o seu gosto pelo instrumento viria a ser profundamente afetado pela situação precária em que vivia – para o jovem Morricone, tocar para poder comer era uma humilhação. Dos seus anos no conservatório de Santa Cecília recorda uma vida dupla: de dia concentrava-se nos estudos de composição e nas horas livres, à noite, tocava trompete e fazia arranjos musicais para a emergente indústria discográfica.
Entre o final dos anos 50 e início dos anos 60, fez vários arranjos musicais para artistas pop e jazz, sendo aliás visto como o pai do “arranjo moderno”. Inseria sons da vida comum nas suas composições, como o das máquinas de escrever, com o intuito de introduzir um conteúdo de “verdade”. Entretanto, começa a escrever para televisão, rádio e teatro, chegando, aos poucos, ao cinema.
O início da carreira de Ennio no grande ecrã não foi fácil, uma vez que a geração mais velha de compositores ostracizava a música fílmica, pois não seria “pura”; tanto que Ennio começou por assinar os seus trabalhos sob um pseudónimo. O próprio mestre de Morricone, Petrassi, argumentava que essa “música comercial”, como lhe chamava, equivalia, para um músico académico, à prostituição. Talvez por sentir essa pressão moralista dos seus pares, Ennio rejeitou durante várias décadas uma carreira duradoura no cinema, desenvolvendo projetos paralelos na área da música experimental.
Entretanto, o filme Era uma vez na América (1984), realizado por Sergio Leone, de onde se destaca o tema de Deborah, veio consagrá-lo em definitivo mesmo para os fundamentalistas clássicos. “Aquela música não podia ter sido escrita por alguém que não fosse profundamente músico” – admite o compositor Boris Porena no filme de Tornatore. Porém, o sentimento de culpa que resultava dessa traição à “música absoluta”, deixou nele um complexo de inferioridade do qual nunca se conseguiu libertar. “Compondo queria vingar essa culpa”, refere o próprio em “Ennio” (2023), visivelmente emocionado.
A sua relação com o realizador Sergio Leone – que mais tarde descobriu ser um antigo colega de escola – foi um ponto de viragem nesse seu caminho. Sergio valorizava a banda sonora, mais do que qualquer outro realizador, permitindo que Ennio compusesse os temas mesmo antes das cenas existirem. Chegava até a tocá-los no set durante a gravação da cena correspondente, por entender que ajudava os atores a encarnar a personagem – tal sucedeu, por exemplo, com Robert De Niro em “Era uma vez na América”. Como resultado desta abordagem inédita, a música de Morricone é elevada a protagonista em praticamente todos os filmes de Leone, criando-se uma dependência tal que o cineasta chega ao ponto de se recusar a trabalhar com outros compositores. No fundo, Sergio sabia que a vitalidade da história que pretendia transmitir dependia do espírito que lhe era incutido pelas partituras de Ennio.
Do seu legado, constam ainda os Westerns para Hollywood, que constituem cerca de dez por cento do seu trabalho enquanto compositor de bandas sonoras. “L’urdo del coyote”, o tema musical que acompanha o clássico com Clint Eastwood, “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), é ainda hoje a primeira melodia que nos ocorre quando pensamos no universo dos cowboys. Não será por acaso que, ainda hoje, continua a ser reproduzida nas brincadeiras dos mais novos - “Era dramática, mas divertida ao mesmo tempo”, explica Ennio. A simplicidade da composição, que valorizava os silêncios, utilizando poucas notas tornar-se-ia para sempre parte do seu ADN enquanto compositor.
Além dos já mencionados, Por um Punhado de Dólares (1964), A Rebelde (1970), A Missão (1986), Os Intocáveis (1997), A Lenda de 1900 (1998), “Malena” (2000), Baaria: a Porta do Vento (2009) e Os oito odiados (2015), foram alguns dos filmes que a música de Ennio ajudou a eternizar. É difícil apontar uma composição sua “malsucedida”. Todavia, destacam-se da sua carreira aqueles em que a qualidade da película condiz com a excecionalidade da música. É essa a magia que vemos em Cinema Paraíso (1988), de Giuseppe Tornatore – talvez a banda sonora mais difundida e celebrada de Morricone.
De todos estes filmes ficam cenas inesquecíveis, momentos que são verdadeira poesia em forma de som e movimento, em que cada nota nos toca bem lá no fundo. Recordemos a cena, onde na sala escura do Cinema Paraíso um “Totó” mais velho se emociona perante a tela que em criança o fez apaixonar pela sétima arte; ou então a morte nas ruas de Manhattan de uma das crianças do bando em “Era uma vez na América”; o ímpeto do amor à primeira vista que toma conta do pianista de “A lenda de 1900”; a despedida de um jovem do seu primeiro amor, Malèna, e com isso da sua infância.
Musica da sentir per tutta la vita, como se diria na língua materna de Ennio Morricone.
Clara Castro
Departamento Cultural
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