“Instrumentalizar vidas humanas”
- Hugo Almeida
- 9 de dez. de 2021
- 11 min de leitura
Como o regime bielorrusso fabricou uma crise na fronteira com a União Europeia, e o que virá a seguir.
Uma catástrofe humanitária
Nas últimas semanas viram-se episódios de violência entre a guarda fronteiriça polaca e migrantes do Médio Oriente na fronteira polaco-bielorrussa, que nos últimos dias viu uma militarização sem precedente, somando mais de 15.000 tropas. Foram já mais de 19 mortos, incluindo uma criança que morreu de frio. A maior parte destes imigrantes sobrevive em tendas, armazéns e centros logísticos, sujeitos ao frio extremo, sem comida ou abrigo suficiente. António Vitorino, líder da Organização Internacional para as Migrações (OIM) já fez apelos aos governos de Minsk e Varsóvia, "A prioridade das prioridades é o acesso às pessoas: assistência humanitária imediata quer do lado da Bielorrússia, quer do lado da Polónia, que, até este momento, não nos foi garantida".
Estas preocupações foram replicadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e pela Human Rights Watch, que acusa a Bielorrússia de "crimes contra a humanidade". Também a Polónia é criticada por proibir a entrada de jornalistas, médicos e ativistas nos campos, bem como por ter realizado ações de pushback - o retorno de migrantes ao último país antes de entrada (no caso, a Bielorrússia), sem que sejam sequer registados — independentemente de serem aceites como refugiados ou não, o pedido de asilo deve ser sempre avaliado.
São imagens que trazem memórias, infelizmente recentes, dos confrontos em campos de refugiados em Lesbos, na fronteira greco-turca e na fronteira sérvio-húngara, bem como das milhares de mortes daqueles que tentaram atravessar o mediterrâneo, desde 2014.
Apesar da dimensão da catástrofe humana ainda estar longe dos números conhecidos no auge da Crise dos Refugiados, em 2015, na qual 1.4 milhões de migrantes irregulares (designação que inclui todos os migrantes para a União Europeia de países fora do Espaço Schengen, sem visto de residência, trabalho, turismo etc., sejam migrantes económicos ou refugiados) chegaram à Europa.
Os contornos desta situação são novos. Tendo sido, nas palavras de um texto da Comissão de Negócios Estrangeiros, aprovado no dia 26 pela Assembleia da República, uma "crise migratória artificial" causada pelo Governo Bielorrusso, que é acusado de "instrumentalizar vidas humanas" e de ter levado a cabo "um ataque híbrido".
"Instrumentalizar vidas humanas"
As declarações aprovadas pela Assembleia da República vão ao encontro do que o Vice-Ministro do Interior da Lituânia (o primeiro país a ser afetado nesta crise, a 2 de Agosto de 2021), Arnoldas Abramavičius, que foi o primeiro a utilizar a expressão guerra híbrida (expressão que denota todas as formas de causar dano a outro país, sem ser pela agressão militar ou guerra convencional, incluindo campanhas de desinformação, ataques informáticos e o uso de refugiados), expressão que é depois repetida pelos chefes de Estado da Letónia e Polónia.
O uso de migrantes para fins geopolíticos não é nada de novo (também a Turquia em 2016, e Marrocos e a Tunísia em 2021, conseguiram exigir concessões à UE, em troca de travar o fluxo de refugiados). No entanto, sendo a Bielorrússia um país que nunca, na história recente, foi um ponto de paragem dos fluxos migratórios, cabe perceber como se chegou a esta situação. Para compreender a dimensão inédita desta crise: em 2021, 81 migrantes passaram ilegalmente a fronteira entre a Bielorrússia e a Lituânia (muitos deles dissidentes políticos cubanos, não precisando de visto para entrar na Rússia, que aboliu em 2017 as suas fronteiras com a Bielorrússia, o que tornou esta uma das formas mais seguras de fugir do Estado insular). Já em 2021, houve 90 só no 1.º trimestre, tendo este número rapidamente atingido 2.000 em Julho e agora aproxima-se dos 5.000, um aumento de 6.000%.
O ponto de viragem parece ter estado numa declaração que Alexander Lukashenko fez perante o Parlamento, dirigida aos governos europeus, a 26 de Maio: "Travamos a entrada as drogas e os migrantes - agora vão apanhá-los vocês", seguiram-se no dia 7 de Julho, novas ameaça: "inundaremos a UE com drogas e migrantes".
Na origem deste braço de ferro geopolítico, está a retaliação às sanções impostas, desde 2020, pela União Europeia, em resposta ao crescente autoritarismo na República da Bielorrússia.
Quais foram as origens da crise?
Muitas vezes chamada de "a última ditadura da Europa", a ex-República Soviética é governada por Lukashenko desde 1994, com eleições regularmente consideradas injustas e fraudulentas por observadores internacionais. Nas presidenciais de 2020 contra Sviatlana Tsikhanouskaya, Lukashenko oficialmente "vence" com 80% dos votos, tendo a oposição e a União Europeia contestado a legitimidade do resultado. Seguiu-se uma vaga de protestos pró-democracia que viram mais de 30.000 detenções e levaram vários ativistas bielorrussos, incluindo a candidata Sviatlana a exilar-se. Organizações humanitárias relatam episódios de violência policial, desaparecimentos e de tortura de dissidentes no agora infame Centro de Detenção de Okrestina.
Com isto, em Setembro de 2020, os EUA e a UE impuseram uma série de sanções sobre oficiais e oligarcas bielorrussos, congelou ativos financeiros e proibiu viagens. Em Novembro e Dezembro outras seguiram outras rondas de sanções, sobre as principais exportações e indústrias bielorrussas (especialmente gás natural vindo da pipeline Yamal-Europa, e de potassa). Alguns Estados, como a Áustria, mostraram receio que o aumento das sanções levassem Minsk a aproximar-se ainda mais de Moscovo. A possibilidade de uma resposta conjunta entre os regimes de Putin e Lukashenko também foi colocada pelo Secretário Geral da OTAN, numa declaração à Sky News.
A quarta ronda de sanções veio em Maio de 2021, quando a Bielorrússia desviou o Voo Ryanair 4978, entre a Grécia e a Lituânia, sob o falso pretexto de ameaça de bomba, para deter o jornalista e ativista Roman Protosevich e sua namorada, Sofia Sapega. Criticado pelo Ocidente, como um ato de "terrorismo Estatal" e em clara violação do Direito Internacional.
Uma crise fabricada
O que permitiu o surgimento desta catástrofe humanitária, em países afastados das tradicionais rotas dos refugiados e a milhares de quilómetros da sua terra-natal, não foi nada menos do que o resultado de uma mega campanha de desinformação, negócios ocultos e fraude, da qual foram vítimas populações desesperadas, usadas como peões no tabuleiro geopolítico de Lukashenko.
Amin, um jovem iraquiano de 25 anos, retido na fronteira polaca, conta numa entrevista à BBC Rússia que na televisão iraquiana passaram durante dias os discursos de Lukashenko, que davam "luz verde" a todos que quisessem entrar na UE pela Bielorrússia.
A informação vazada revela ainda que contrabandistas, em colaboração direta com as autoridades de Minsk, burlavam membros das minorias étnica e religiosa curdas e Yazidi, vítimas de perseguição pelo Daesh. Garantiam alojamento pago quando chegassem à Bielorrússia e que poderiam entrar legalmente na UE.
Os preços cobrados variam entre os 2.500 a 15.000$ (valores significativamente maiores que os pacotes de viagem cobrados pelas companhias aéreas, que rondam os 560 a 850$, parte da razão é que estes contrabandistas garantem ao migrante que pagariam as despesas burocráticas, incluindo vistos de turista, que podia ser adquiridos no aeroporto em Minsk por 20$, bem como um comprovativos que o migrante tem condições económicas para pagar o alojamento e incluem pagamentos adicionais para que fossem ajudados por, já no seu destino, a atravessar a fronteira, algo que raramente se concretiza). Se os migrantes não regressassem na viagem de volta, como era normal, parte deste valor será reembolsado para as agências de viagem bielorrussas, indo diretamente para os cofres do Estado.
Na mesma altura, agências de viagens como a Tsentrkurort, uma empresa estatal diretamente subordinada à administração presidencial e a Oskartur, criaram campanhas turísticas, que chegavam a incluir visitas guiadas, para a Bielorrússia e até "viagens de caça", aproveitando-se de uma disposição na lei bielorrussa, que excetua as viagens de negócio e para caça da quarentena obrigatória. Os serviços diplomáticos franceses alertaram a comunidade internacional para aquilo que entenderam como uma operação de "cover-up" para legitimar voos que, na realidade, seriam tráfico humano. Mesmo entre aqueles que não foram vítimas de contrabandistas, os preços acessíveis destes "pacotes turísticos" pareciam para muitos a forma mais segura de fugir da pobreza e da guerra no seu país de origem.
A companhia aérea estatal bielorrussa, a Belavia, aumentou exponencialmente a sua oferta de voos para o Médio Oriente. No início, a rota mais popular conectava Bagdad a Minsk, com 4 voos semanais, carregando em média 180 passageiros por viagem para Minsk, mas só 4 na direção oposta, para Bagdad - durante todo o ano de 2020 a mesma rota só teve 5 voos. A 7 de Agosto, o Iraque anunciou, sob pressão da UE, que ia parar todos os voos para Minsk, à exceção dos voos de retorno. Porém, só no dia 25 de Novembro se dá o primeiro voo de repatriamento.
Isto pouco fez para parar os esforços bielorrussos. Em Outubro, a Belavia e a Turkish Airways passaram a realizar voos diários de Istambul (a última paragem de muitos migrantes que tentam chegar à UE pela Grécia) e no dia 28, a companhia low-cost síria lançou uma rota diária de Damasco. Em declarações à imprensa bielorrussa, o chefe do Aeroporto de Minsk diz estar a planear expandir operações para a Argélia, Marrocos, Etiópia, Venezuela, Vietnam e Irão.
Uma ida sem volta
As mesmas agências de viagens alojaram os migrantes para hotéis, onde a sua estadia nunca excedia um par de dias. Eram depois trazidos até à fronteira sob a promessa de que do lado lituano encontrava-se um carro à sua espera. Os migrantes recebiam, segundo relatos dos próprios, instruções para destruírem os seus passaportes nacionais, sem os quais podiam mais facilmente receber o estatuto de refugiado e não serem deportados para o país de origem. Muitos, incluindo Amin, não esperaram para que fossem dirigidos para a fronteira, tendo ido para lá por contra própria.
Segundo uma investigação da REFORM.by, os migrantes foram auxiliados a atravessar a fronteira por "guardas camuflados" bielorrussos, que indicavam os caminhos que não passassem por pontos de controlo fronteiriço vigiados pela Frontex (a agência europeia de cooperação fronteiriça europeia). A alguns foram dados cigarros e estupefacientes para traficar (a Bielorrússia já era uma das maiores fontes de tráfico ilegal de cigarros para a Europa, prática que exacerbou com esta crise). Já a partir do momento que as primeiras barreiras de arame farpado foram erguidas, as autoridades passaram a fornecer alicates e machados. Um dos guardas refere ter recebido ordens para ignorar qualquer atividade criminosa levada a cabo pelos imigrantes e para não fornecer qualquer informação às autoridades lituanas e polacas sobre os migrantes.
Saif, também iraquiano, relata a existência de grupos online (muitos dos quais os imigrantes já conheciam desde antes da viagem) que comunicavam os passos necessários para obter o estatuto de refugiado e enviavam vídeos das rotas seguras por Telegram. Muitos inventam as mesmas estórias e identidades falsas, a mais comum era dizerem ser universitários bielorrussos.
Muitos, após se aperceberem que tinham sido enganados, ou, após tentativas fracassadas de atravessar a fronteira, ao tentarem regressar para o aeroporto foram travados pelas autoridades bielorrussas (que foram comparadas às "unidades anti-retirada" soviéticas, que impediam as tropas de desertar) e obrigadas a regressar à fronteira sob coação física. Outros ainda, segundo uma investigação da Human Rights Watch, foram levados a instalações especiais, onde submetidos a "abusos e tratamento degradante" por tentarem regressar. Os migrantes tinham-se tornado, efetivamente, reféns do regime de Lukashenko.
Uma resposta desumana?
As vagas de migrantes vieram, essencialmente, em duas fases.
A primeira, desde finais de Junho até finais de Setembro, afetou sobretudo o pequeno estado báltico da Lituânia, um país sem recursos e sem qualquer experiência a lidar com grandes números de migrantes, que respondeu com a construção de uma barreira de arame farpado e com uma reforma com vista em acelerar o processo de requerimento de asilo, tornando possível ter migrantes detidos por até 6 meses sem ordem judicial. Esta resposta foi criticada por grupos de defesa dos direitos humanos, que entenderam pôr em causa os Direitos Fundamentais dos Migrantes e abrir caminho para um tratamento desumano. Defensores da política afirmam ser necessária para lidar com o fluxo inesperado.
As autoridades lituanas insistem que "estão a fazer o que é adequado", mas não estão, nem (segundo eles) devem dar condições confortáveis. O comissário lituano para a UE, Johansson, diz não se tratar de uma crise humanitária, mas sim geopolítica, e considera que a maior parte dos requerentes de asilo são imigrantes económicos, sem causa legítima.
Deve-se voltar a referir, contudo, que grande parte destes requerentes de asilo são de minorias religiosas, como a minoria Yazidi, que sofrem perseguição nos seus países de origem. É também difícil de avaliar se a pobreza e os perigos causados por conflitos civis ou regionais, em países como o Iraque e o Líbano, são suficientes para o estatuto de refugiado.
A resposta da União Europeia foi unânime na condenação do regime de Minsk. Tendo também sido essencial em pressionar o Iraque a parar os voos para a Bielorrússia e abrir uma comissão para lidar com a crise.
A segunda fase incidiu sobretudo na Polónia. O Estado Polaco reage (em semelhança ao que já acontecera na Lituânia e Letónia) com a declaração de um Estado de Emergência, entretanto já renovado, nas regiões fronteiriças. Controversamente, limita as liberdades de movimento e de expressão, principalmente restringindo jornalistas, médicos não-afiliados e ativistas de reportarem em certas áreas.
A reação polaca em geral às medidas tomadas foi predominantemente positiva (segundo uma sondagem realizada a 29 de Agosto). Porém, houve uma petição, assinada pela maior parte dos jornais polacos, para que permitissem a entrada de jornalistas nos campos, o que levou a que o Governo polaco abrisse uma exceção para os jornalistas.
Apesar disto, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) condenou tanto as autoridades polacas como as lituanas pelo fornecimento inadequado de comida, bebida e abrigo, bem como pelas ações de pushback, que, entende, devido aos abusos físicos que os migrantes sofrem do lado da Bielorrússia, é inadmissível e viola as obrigações de avaliar os pedidos de asilo dos requerentes. Vale a pena referir que, em cada 10 migrantes que se aplica a asilo na UE, apenas 4 obtém parecer positivo e dos restantes apenas 1 é devolvido ao país de origem. Isto acontece porque geralmente o país de origem recusa-se a recebê-los de volta. Nesta crise em particular, a situação inverteu-se e, até 25 de Novembro, a Bielorrússia recusava-se a repatriar os migrantes para o Iraque e exige, até à data, que a UE pague pelo repatriamento.
O objetivo da maior parte destes migrantes é a Alemanha, um Estado que tem sido visto como a "Terra Prometida" dos migrantes. Tendo em 2015 adotado uma política de acolhimento de migrantes, que contrastou com a política nacionalista de outros Estados da Europa Central e de Leste (a Polónia e a Lituânia incluída), que se recusaram a receber migrantes. Ao abrigo do artigo 13.º da Convenção de Dublin, os migrantes irregulares são da responsabilidade do primeiro Estado-Membro onde chegarem. Esta regra, que colocou e continua a colocar muita pressão sobre a Grécia, Itália e Espanha. Com esta crise, esta responsabilidade passa a aplicar-se a Estados como a Polónia e a Lituânia, com regimes mais populistas e onde as populações são mais opostas à imigração.
O que vem a seguir?
No dia 12 de Novembro, o vice-presidente da Comissão Europeia (CE) disse "estar a ver progresso em todas as frentes" quanto à crise que decorre. Para além da proibição geral no Iraque, também a Turquia já proibiu todos os cidadãos iraquianos, sírios e iemenitas de partir para a Bielorrússia através do seu solo.
A Polónia, que iniciou a construção de um muro num troço de 420 quilómetros da fronteira bielorrussa, equipado com sistemas de vigilância, pediu ajuda ao Conselho Europeu para financiar este projeto que, segundo as fontes polacas, poderá chegar a custar 350 milhões de euros. Um projeto que o executivo polaco considera fulcral para "responder a que é uma tentativa de destabilização da Europa", acusando também Moscovo de colaboração na fomentação desta crise.
Apesar das autoridades russas negarem qualquer envolvimento, tanto a Rússia como a Bielorrússia criticaram abertamente o que viram como um "tratamento desumano" dos migrantes pelas autoridades lituanas e polacas, nos incidentes fronteiriços. A Rússia já promoveu ações de desestabilização da União Europeia anteriormente, principalmente através de campanhas de fake news e a descredibilização das nações europeias - tanto pela incapacidade ou desumanidade que mostraram ao lidar com a crise (como o uso de gás lacrimogêneo e canhões de água contra os migrantes), como acusando o Ocidente de ter causado estas crises pela intervenção no Médio Oriente.
Por outro lado, é possível que Putin tenha interesse em ser um mediador na solução para esta crise, o que permitiria impor condições sobre a Bielorrússia, como o reconhecimento formal da anexação da Crimeia.
Outras respostas incluem a recente iniciativa do Governo polaco para duplicar o tamanho do seu exército. Numa reunião do Conselho de Segurança, no dia 8 de Outubro, o impasse russo impediu que fosse tomada qualquer resolução. Ainda assim, ouviram-se fortes críticas ao regime de Lukashenko pelos membros permanentes Estados Unidos, França, Inglaterra e dos membros não permanentes da Estónia, Irlanda e Noruega.
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