Invasão da Arménia: passado, presente e futuro
- Guilherme Alexandre
- 29 de set. de 2022
- 7 min de leitura
Ataques de artilharia pautam os desenvolvimentos do conflito militar entre a Arménia e o Azerbaijão. Teme-se que intervenções externas possam agravar a situação, que perdura há décadas, tendo-se alargado para território anteriormente não disputado.
Contexto histórico
A Arménia (ou Hayastan), herdeira do Reino Urartu, passou por diversos períodos de soberania e ocupação devido à sua posição estratégica entre continentes. Durante estas ocupações, o seu povo sofreu tragédias como os massacres hamidianos, o Genocídio Arménio pelo Império Otomano (ainda hoje negado pelo Estado turco), a Guerra Turco-Arménia e a ocupação pelo Exército Vermelho soviético.
O território do atual Azerbaijão existiu durante séculos sem unidade, dominado por arménios, persas, otomanos, iranianos e, finalmente, russos. Definiu-se como Estado soberano em 1918, sendo a primeira república de maioria muçulmana a ter uma democracia secular. Não era, contudo, internacionalmente reconhecido e a Liga das Nações não lhe havia reconhecido legitimidade face aos territórios que afirmava, o que deixou de ser uma questão quando a URSS assumiu controlo no Cáucaso. Inicialmente, o Comité das Nacionalidades havia votado a favor de integrar Nagorno-Karabakh (Alto Carabaque) na República Socialista Soviética da Arménia. No entanto, perante protestos dos líderes azeri e alguma deterioração das relações Rússia-Arménia, o Comité alterou a sua posição e Estaline atribuiu o território à RSS do Azerbaijão.
Com a queda da União Soviética, em 1991, o Azerbaijão voltou a afirmar-se como Estado soberano.
Desenvolvimento dos conflitos bélicos
Os conflitos entre os dois países baseiam-se em disputas territoriais, mas massacres, destruição de marcos culturais e guerras geraram não só desejos de vingar injustiças como também ódio entre os povos.
A região do Alto Carabaque, embora situada em território azeri, era, em 1988, habitada por uma população de etnia arménia (94 a 97%) . Foi então que, ao abrigo de uma maior liberdade de expressão na URSS, devido à glasnost, peticionaram a sua integração na Arménia.
O Azerbaijão reprimiu os separatistas e a Arménia apoiou os mesmos, o que despoletou a primeira Guerra do Carabaque. No decorrer desta, a Arménia conquistou territórios do Azerbaijão no Alto Carabaque, em redor da autoproclamada República de Artsaque. As perdas humanas terão ultrapassado os 30 milhares, notando-se, ainda, mais de um milhão de refugiados até 1994 — ano em que foi assinado o Protocolo de Bishkek, patrocinado pela Rússia, que estabeleceu um cessar-fogo.


fonte: ATLAS OF THE NAGORNO-KARABAGH REPUBLIC
O balanço da Guerra do Carabaque, nomeadamente as perdas territoriais, foi desfavorável ao Azerbaijão e consolidou-se com o cessar-fogo. Insatisfeitos com estes termos, desenvolveram uma operação militar que, ao longo de 4 dias, em abril de 2016, permitiu a reconquista de alguns territórios. Peritos internacionais descreveram a Guerra dos Quatro Dias como uma “perda de vida humana sem sentido” , visto que o status ante quo não foi significativamente alterado. Ainda assim, as autoridades azeri consideraram-no uma vitória do ponto de vista estratégico, devido à conquista de posições de elevada altitude.
A 27 de setembro de 2020, o Azerbaijão iniciou ofensivas no norte e sudeste dos territórios da república independentista de Artsaque, em que, além de artilharia pesada, o intenso uso de drones foi definitivo para o sucesso da ofensiva; em resposta, Artsaque e Arménia declararam lei marcial e mobilização total.
Após três tentativas falhadas de cessar-fogo pela Rússia, Estados Unidos e França, bem como a captura de Shusha (a segunda maior cidade do Carabaque) pelo exército azeri, ambos os lados acederam a um cessar-fogo. Este deu-se a 9 de novembro de 2020, mediado pela Federação Russa, pondo fim a um conflito de um mês e meio. A Arménia perdeu mais de 4000 militares e 88 civis, enquanto o Azerbaijão perdeu cerca de 2900 militares e 100 civis. Segundo Artsaque, cerca de 100 mil pessoas ficaram deslocadas.
Os termos deste cessar-fogo não foram favoráveis às pretensões do povo arménio, tendo sido combinado que iriam ser devolvidos ao Azerbaijão os distritos de Agdam, Kaljabar e Lachin, assim como o corredor que une Lachin à Arménia, ainda que sob controlo das forças de paz russas. Se no Azerbaijão estes resultados foram recebidos com celebrações, na Arménia a população insurgiu-se violentamente, culminando os protestos quando manifestantes ocuparam o Parlamento e agrediram o Presidente da Assembleia Nacional, Ararat Mirzoyan.

fonte: RIA Novosti
Os habitantes de Kaljabar, em Artsaque, de maioria étnica arménia, que haviam ocupado o território após o cessar-fogo de 1994, viram-se forçados, em cerca de três semanas, a abandonar o mesmo. Não abandonaram, contudo, as suas casas e terras de ânimo leve, queimando-as e cortando as suas árvores. Muitos levaram consigo os restos mortais de familiares, a fim de evitar a sua profanação.
Então, se houve cessar-fogo, devia estar tudo bem, não?
A 13 de abril de 2021, numa entrevista à televisão nacional, o ditador azeri Ilham Aliyev fez várias declarações irredentistas sobre território internacionalmente reconhecido como arménio.
Nesta narrativa, incluem-se várias regiões, tendo já sido mencionada Yerevan, a capital da Arménia, num vídeo propagandístico do Ministério da Juventude e Desporto azeri.
A 12 de maio do mesmo ano, vários soldados azeri penetraram no território da Arménia, por múltiplas frentes, contestando as atuais fronteiras com as dispostas em antigos mapas, que atribuem as áreas ao Azerbaijão. A Arménia contra-argumentou com mapas oficiais da União Soviética, movimentando tropas para afastar a incursão adversária.
O desenvolvimento destas tensões levou a violações do cessar-fogo, contando-se já vários ataques de artilharia e assassinatos junto à fronteira, em que ambos os lados afirmam agir em autodefesa.
Recentemente, na madrugada de 13 de setembro de 2022, ataques de larga escala terão sido iniciados pelo Azerbaijão, atingindo Jermuk, Syunik, Vardenis, Goris e Sotk, causando mais de 100 mortos. O Estado azeri afirma que conduziu estes ataques em resposta a ofensas semelhantes contra os seus distritos fronteiriços de Lachin, Kalbajar e Dashkasan, reportando 71 mortes.

Fonte: Rafal R., Wikipedia
Perspetivas futuras
A Arménia já pediu ajuda à Rússia, a sua aliada ao abrigo da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, mas esta, tendo sofrido perdas significativas na Ucrânia, enviou, para já, apenas uma equipa para apurar os factos.
O Irão teme a união da Turquia com o Azerbaijão através do território arménio e Nakhchivan, visto que tal cortaria as suas ligações com a Arménia e Eurásia, e já ameaçou tomar contramedidas se tal se verificar necessário, movimentando forças para a sua fronteira norte.
É improvável que a União Europeia tome medidas significativas pois, para reduzir a sua dependência do gás russo, que financiava a guerra contra a Ucrânia, optou por duplicar as suas importações provenientes do Azerbaijão. Apesar disto, a França, que atualmente preside o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), afirmou que iria levar o assunto a discussão. «Urgimos ao Azerbaijão que faça recuar as suas tropas, a integridade territorial da Arménia deve ser preservada.» disse Nicolas de Rivière, Presidente do CSNU.
Nancy Pelosi, Presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, foi a mais alta patente norte-americana a alguma vez visitar a Arménia e afirmou que a soberania, democracia e integridade territorial do país são assuntos importantes para os EUA. A congressista confirmou ainda que terão sido os Estados Unidos a pressionar o Azerbaijão a cessar o ataque mais recente, e expressou a disponibilidade para apoiar a Arménia, caso esta o solicite.
De um ponto de vista geopolítico, esta aproximação observa a possibilidade de a Arménia desistir da Organização do Tratado de Segurança, liderada pela Rússia, assim como substituir a base militar russa que existe no seu território por uma norte-americana. Apesar de a entrada na OTAN/NATO não ser expectável, devido à existência de disputas territoriais ser incompatível com os critérios de adesão, os peritos colocam a possibilidade de a Arménia se tornar uma MNNA (Major Non-NATO Ally) dos Estados Unidos.
A Turquia, aliada do Azerbaijão e potência regional, continua a avisar a Arménia para as consequências possíveis de continuar os conflitos e não aceitar os termos exigidos pelo Estado azeri. Esta aliança não é puramente estratégica, mas também ideológica: o panturquismo é uma ideologia com bases étnicas, culturais e linguísticas que promove a união de todos os povos turcos, manifestando-se entre a Turquia e o Azerbaijão como uma política de “Uma Nação, Dois Estados”.
Atualmente, a única separação territorial entre o Azerbaijão e a República Autónoma de Naquichevão do Azerbaijão, que partilha fronteira com a Turquia, é a Arménia. Nesse sentido, o ditador Ilham Aliyev afirmou, em entrevista à televisão estadual, que o “corredor de Zangagur” será feito, “quer a Arménia queira, quer não”. (Ilham Aliyev`s interview with Azerbaijan Television) Estas afirmações vão além do que já tem sido estabelecido: planos formais para linhas de comércio entre o Azerbaijão e a República Autónoma, inclusive aceites pela Arménia ao abrigo do cessar-fogo de 2020. O Estado azeri, no entanto, acusa a Arménia de deliberadamente atrasar a concretização destes planos, com o intuito de não cumprimento, baseando nisso a sua retórica quanto a Zangagur.
A Turquia tem uma força decisiva, armando o Azerbaijão com tecnologia moderna, incluindo drones TB2 Bayraktar, que foram também doados pelo Estado turco às Forças Armadas Ucranianas e que, em ambas as situações se têm provado eficazes, assim como jatos F-16. Além disso, a BBC reporta que a Turquia terá enviado, sob aliciantes falsas promessas, mercenários sírios para auxiliarem o Azerbaijão nos conflitos no Alto Carabaque, servindo como “carne para canhão”. A Turquia e o Azerbaijão negam as acusações.
Conclusão
Ambas as partes argumentam ter legitimidade histórica e material para reclamar a região do Carabaque que, segundo dita a comunidade internacional, faz parte do Azerbaijão. Por outro lado, as regiões ambicionadas pelo Azerbaijão, no âmbito do corredor de Zangagur, e com vista à união dos povos turcos, são internacionalmente reconhecidas como arménias.
Estes, e incontáveis outros fatores, desde crimes de guerra de parte a parte, violações dos sucessivos cessar-fogos, desinformação e propaganda, tornam extremamente improvável que se reúnam condições para chegar a compromissos de paz duradouros.
Os EUA, a UE e a ONU apelam a uma resolução pacífica dos conflitos, mas o envolvimento cada vez mais próximo da Turquia e dos próprios Estados Unidos obriga-nos a prestar atenção aos desenvolvimentos que virão.
Guilherme Alexandre
Sociedade
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