Lei 7/2011: 10 anos depois, o que é que mudou?
- Rita Marques
- 14 de abr. de 2021
- 6 min de leitura
A 15 de março de 2021 assinalou-se uma década da entrada em vigor da Lei 7/2011, que criou o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no Registo Civil. Até essa altura, os casos de mudança de identidade e sexo eram decididos em tribunal e, até surgir a Lei 38/2018 (Lei do Direito à autodeterminação da Identidade de Género), era obrigatória a apresentação de um relatório redigido por um médico ou psicólogo, que consistia num “diagnóstico de perturbação de identidade de género, também designada como transexualidade”. Foi nesse mesmo ano que passou a ser permitida a mudança de identidade e de género a menores de 16 anos e não apenas a partir dos 18 anos. Atualmente, esse processo é gratuito, mas já chegou a custar 200€. Todas estas alterações que se têm vindo a verificar desde há 10 anos atrás resultaram num país com maior igualdade de direitos.
No entanto, isso verifica-se no papel, mas não na prática, porque as pessoas transgénero enfrentam um estigma diário, seja no seu local de trabalho, ou na procura do mesmo, seja no seu círculo social. Mas antes de abordarmos o problema, talvez seja melhor esclarecer alguns conceitos, entre eles qual é a diferença entre sexo e género. O sexo diz respeito às características biológicas (a sua anatomia, os seus órgãos sexuais, as hormonas que o seu corpo produz, os cromossomas), enquanto o género, dito de uma forma simplificada, é a forma como uma pessoa se identifica. Relativamente ao género, existem pessoas cisgénero (a sua identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído ao nascimento) ou transgénero (a sua identidade de género não corresponde ao género que lhe foi atribuído ao nascimento, o que não significa necessariamente que corresponda ao género oposto). A verdade é que podemos identificar-nos como mulheres, como homens, como ambos ou como nenhum. Na realidade, o género é uma construção social, daí surgirem cada vez mais identidades de género, como forma de combater a ideologia binária que reina na nossa sociedade, e de modo a ajudar pessoas que não se identifiquem com os géneros binários a encontrar um “rótulo” que melhor as represente.
Para esclarecer alguns conceitos, tentar compreender de que forma é que uma pessoa transgénero tem os seus direitos protegidos por esta Lei e como lida com os preconceitos da sociedade, estive à conversa com Eden, estudante da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, pessoa não-binária, agénero e transfeminina.
O que é ser uma pessoa não binária? “É alguém que não se identifica exclusivamente com os géneros do binário (masculino e feminino): pode identificar-se com os dois, pode fluir entre os dois géneros (género fluído), pode não se identificar com nenhum (agénero), pode identificar-se com outros. Acaba, no fundo, por ser o mesmo que genderqueer, que são pessoas que recusam a conformar-se com os estereótipos de género da sociedade, podem identificar-se com ambos ou com nenhum, é um termo político, surgiu como forma de manifestação contra a sociedade. É muito complicado definir como uma pessoa se sente (...) não cabe a outrem decidir aquilo que nós somos”.
Uma das primeiras coisas que Eden me explicou ao longo da nossa conversa foi a diferença entre alguns conceitos importantes que, no nosso dia-a-dia, por não estarmos tão informados, acabamos por confundir. A par da diferença entre sexo e género, temos ainda: a expressão de género, a orientação sexual, a orientação romântica e a orientação relacional. “A expressão de género é a maneira como alguém se manifesta ou expressa a sua identidade de género, que pode ou não corresponder à mesma. Daí a existência de termos como “transfeminino”, que são pessoas AMAB (assigned male at birth) que se identificam com a femininidade, “transmasculino”, que são pessoas AFAB (assigned female at birth) que se identificam com a masculinidade e androginia, que são pessoas que manifestam uma mistura de masculinidade e femininidade. Atente-se que estes termos podem, também, ser utilizados como identidades de género (recorde-se que cabe a cada indivíduo definir a sua identidade de género). A orientação sexual ou a sexualidade é definida pela identidade de genéro e não pelo sexo, e é importante que as pessoas saibam que, ao contrário do que possam pensar, trans não é uma sexualidade. A orientação romântica é baseada em quem nos apaixonamos, enquanto a orientação relacional assenta no modo como nos relacionamos, seja a monogamia, a poligamia, ou outro.”
Uma das dúvidas mais recorrentes é saber se transgénero e transexual significam o mesmo. Eden explicou que “transexual está inerente ao transgénero e ao envolvimento médico, e nem todas as pessoas trans fazem tratamento hormonal ou cirurgia, podendo dar, assim, a ideia errónea do que é ser trans, pelo que é preferível a utilização do termo “trans” em detrimento dos previamente referidos, sendo este último um termo mais simples, fácil e inclusivo de se usar.”
“Em Portugal, a imagem que têm das pessoas trans é que a pessoa sabe desde pequena que é diferente, no sentido de ter disforia de género e de não se sentir confortável com o seu corpo, mas isso depende muito.”
Quanto à parte jurídica, disse que “como em muitos Estados, não se distingue entre sexo e género, porque ainda há aquela ideia errada de que é a mesma coisa”. Deu-nos o exemplo do art. 13º/2 CRP que, embora tenha um elenco meramente exemplificativo, dá abertura para que ainda haja discriminação relativamente a pessoas não-binárias, porque não há uma menção ao termo “género”, apenas ao termo “sexo”. Alguém ser do sexo feminino ou do sexo masculino não é sinónimo de ser do género feminino ou do género masculino, e isso é algo que nos ensinaram a vida toda mas que não corresponde à realidade. “Ao sexo que nos é atribuído à nascença devido ao nosso aspeto físico já está inerente uma identidade de género (...) a sociedade espera certos comportamentos, certa indumentária, certas formas de expressão”. Atente-se que o sexo não é binário; isto é, não existem só 2 sexos como nos foi ensinado desde crianças. Um exemplo disso são as pessoas intersexo.
Em relação à Lei, contou que conseguiu alterar o seu nome no Cartão de Cidadão através de e-mail e correio, durante o período de quarentena, algo que lhe deu uma grande satisfação e lhe trouxe grande felicidade. Porém, “a Lei, em si, não satisfaz todas as necessidades das pessoas não-binárias”, na medida em que só há duas opções (masculino ou feminino) no sexo, embora se depreenda que o que se quer realmente saber é o género, como é que a pessoa quer ser tratada. Por esse mesmo motivo, Eden enviou um e-mail ao partido Bloco de Esquerda com algumas sugestões: “alterar, no Cartão de Cidadão, de sexo para género, e permitir aos indivíduos uma alteração constante, conforme o que dê mais conforto na vida prática” ou “retirar o sexo do Cartão de Cidadão” ou “acrescentar o género”. Contudo, não obteve nenhum resultado. “Todas as pessoas são diferentes e é normal que cada vez mais apareçam novas identidades de género. (...) Acho importante haver mais visibilidade para as pessoas não-binárias pois, apesar de não nos enquadrarmos na estrutura binária da sociedade, continuamos a ser seres humanos. (...) O Estado reconhece pessoas trans, porém a comunidade médica está muito desatualizada”. Falou-nos das consultas médicas de urologia e ginecologia, que são apenas permitidas para pessoas cujo sexo no Cartão de Cidadão seja masculino ou feminino, respetivamente, pelo que o acesso de uma mulher trans a uma consulta de urologia e de um homem trans a uma consulta de ginecologia se torna mais complicado, ficando dependentes da atitude do médico que os atender. Mas como conseguimos ver, depois de todo este testemunho, as coisas não são tão a preto e branco assim. Deste modo, as pessoas trans e não-binárias devem ter os seus direitos negados só porque não se enquadram no que a sociedade classifica como “correto”? A resposta é um óbvio não, principalmente no que toca à saúde. O ideal seria “acabar com o sistema do sexo binário e criar um sistema mais inclusivo, mais coerente e menos discriminatório.” Disse ainda que “independentemente do facto de a pessoa transparecer ser do género x ou do género y, continua a ser a mesma pessoa. (...) Quando olham para as pessoas, não deem uma label automaticamente, são pessoas, apesar das diferenças notórias nos corpos, isso não define o que a pessoa é”.
Estamos no séc. XXI, consideramo-nos uma sociedade desenvolvida, mas o preconceito está presente nas mais pequenas coisas. O impacto mental que isto pode ter é imensurável. Talvez o primeiro passo seja tornar a lei mais inclusiva e incutir às gerações mais novas, desde cedo, algumas destas noções e tudo aquilo pelo qual as pessoas trans já tiveram que lutar, para que possam crescer e tornar-se pessoas inclusivas. Não temos o direito de dizer a outrem que a forma como se sente é errada.
Rita Marques
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