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O mistério do bem

  • Foto do escritor: Vicente Correia
    Vicente Correia
  • 9 de abr.
  • 4 min de leitura

Parece que estamos a atravessar uma nova Idade Média, ou seja, esquecemos aquilo que sabíamos. E se não esquecemos,  certamente ignoramos. O mundo em que vivemos hoje comprova-o. Quando vemos Trump a querer transformar Gaza num resort de luxo onde todos os dias morrem pessoas, é mais do que evidente o ponto de loucura e insanidade a que chegamos com a cumplicidade de todos os que nele votaram e que apoiam estes movimentos. É também de narrativas que vivemos hoje. Temos adolescentes a absorver narrativas tóxicas e manipuladoras que se diriam ultrapassadas, mas que ganham cada vez mais seguidores. Parece que o ódio e a violência se tornaram banais deixando de haver espaço para a moderação e  empatia. Tudo isto terá consequências, e como dizia Leonard Cohen, “things are going to slide, slide in all directions”.


Há vitórias que não são só simbólicas, mas exemplos de resistência e de união. Foi o que aconteceu com No Other Land, que venceu este ano o Óscar de melhor documentário. Ter visto a luz do dia já foi  inesperado, ter sido nomeado é extraordinário, ter ganho o Óscar foi um  milagre. É lá que vemos a destruição da vida dos palestinianos. Das suas casas, escolas, parques infantis e até de poços de água, demolidos pelo exército israelita. A determinada altura, partilhamos o seu sentimento e repetimos com eles — “nós só queremos existir como vocês existem”. É dilacerante e, ainda assim, deixa uma réstia de humanidade. É também sobre amizade, amor familiar e empatia. Numa das frases mais desconcertantes,  a  mãe de um jovem palestiniano  diz: “Filho, eu vou lavar-te a roupa porque assim, se fores para a prisão, já tens uma mala pronta”. É impossível sair do cinema sem nos sentirmos profundamente angustiados e revoltados. A injustiça diante dos nossos olhos. E nós a assistir. Um dos povos mais maltratados na história da humanidade é o mesmo que comete as maiores atrocidades. E nós a assistir. A construir e a destruir. E nós a assistir. A esperança que resta é a amizade que se vai construindo entre um palestiniano e um israelita. É essa a única construção que vemos. E deveria ser essa a única coisa possível.


Um mês depois de ter ganho o Óscar, um dos realizadores foi brutalmente agredido por colonos israelitas. Foi detido e libertado um dia depois. Um mês separa estas duas realidades. O glamour e a frivolidade. O horror e a violência. Um dia estamos no topo, no outro, na mais pura indignidade. Mas sempre de cabeça levantada a resistir à barbárie. Aprendamos com eles. Num mundo onde parece que deixou de existir qualquer sentido de comunidade e de causas coletivas, aprendamos com eles. Aprendamos com a sua luta, hoje mais necessária do que nunca. Temos que exigir mais de nós e dos outros. Estamos obcecados pelo narcisismo. Viciados em nós próprios, no nosso bem-estar, na nossa vida, nos nossos likes. Abandonemos as trincheiras do nosso pensamento, da nossa vida e aproximemo-nos do outro. Só assim conseguiremos construir. Porque destruir é sempre muito mais fácil.


É com séries como Adolescence que podemos começar a fazer esse caminho de construção. Se servir para alguma coisa, que sirva para estarmos mais atentos aos outros. Que passar o tempo nas redes sociais e na internet a absorver narrativas que incitam ao ódio não deve, nem pode ser o “novo normal”. Isso só nos afasta mais, só acentua  ainda mais a divisão entre o “eu” e os “outros” que contribui  para o crescimento dos extremismos e da ideia de desumanização do outro. O desamparo em que muitos vivem leva a que se lhe reaja com raiva. Esse é um dos mais comuns e corrosivos reflexos do ser humano. Fazemo-lo nas nossas vidas pessoais e nas nossas vidas políticas. O mundo está aí para o comprovar.   


Nem só de desamparo é feita a nossa vida e para o acalmar está sempre a arte, ou, melhor, a poesia. Na linguagem de Adília Lopes, a poesia desentropia, ou seja, cria ordem no caos. No meio do caos que é a nossa vida, que é o mundo, a poesia está lá sempre como antídoto. E ainda mais a de Adília, poeta, como alguém escreveu que abomina a crueldade, tão raro nos dias que correm. Tão fora do nosso tempo, mas tão essencial no nosso tempo. Uma poesia que à primeira vista se pode estranhar dada a aparente simplicidade ou depuramento, uma espécie de “dia inteiro e limpo” como falava Sophia.


Adília, tal como Agustina, nasceu adulta e morreu criança. Sempre lá o deslumbramento com o quotidiano, com as boas pessoas, com as gatas, com a vida. E ainda a saudade, a solidão e a melancolia. Aquilo que mais me fascina nela é a sua brutal e desarmante honestidade. Como se dissesse tudo o que já sabíamos, mas que ignoramos. A genuinidade que a caracteriza é o que há de mais impressionante nela, numa época em que quase tudo é postiço. Como dizia: “A minha história é outra / e começa agora / estou sempre a começar. Nunca é tarde para começar outra vez, não estaremos também nós sempre a começar?


Sufjan Stevens é outro que está sempre a começar. Sempre a transformar as suas dores em arte. Como se encontrasse no belo uma forma de viver. É mais um que não cede ao ar dos tempos e insiste em encontrar beleza no que o rodeia, nas coisas que parecem não ter  importância. Como quando canta — “there’s a world you’re livin’in / no one else has your part / take it and real blow hard / look around it, have you found it / walkin’ down the avenue? / See what it brings, could be good things”. Este exercício de estarmos abertos e atentos ao que nos rodeia pode ser a chave para sobreviver a estes tempos difíceis.

 


O mal

é banal

O mistério

maior

é o mistério

do bem

(Adília Lopes)

 


A Idade Média é sempre seguida de um renascimento. Enquanto ele não vem, seguremo-nos a este mistério. O único que nos salva. O único que nos mantém vivos. Não salva o mundo, mas salva o instante, e isso é suficiente.

 

Vicente Correia

Departamento Cultural


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