O retrocesso legal no Iraque: violação dos Direitos das Crianças e das Mulheres
- Luiza Toniolo
- 3 de dez. de 2024
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A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pelas Nações Unidas, cria um instrumento internacional que salvaguarda o estatuto da criança[1] a vários níveis, nomeadamente os seus direitos de participação e livre expressão, de sobrevivência, de desenvolvimento e de não discriminação, tendo sempre como valor norteador o “interesse superior da criança”. Infelizmente, como se sabe, é característica de grande parte dos tratados internacionais a sua falta de correspondência à prática. As belas palavras da convenção são, assim, diariamente feridas pelos conflitos dos quais são vítimas as crianças, pela realidade do trabalho infantil, pela exploração sexual ou pela privação de condições mínimas familiares, nutricionais e escolares.
A idade mínima para o casamento consiste numa das normas consagradoras do “superior interesse da criança”, pelo que garante que uma criança, que não tem o discernimento para tomar a decisão de uma união matrimonial, não se vincule a uma relação tendencialmente duradoura e significativa como o casamento. Além disso, junto da idade de consentimento para relações sexuais, tais medidas garantem que a criança não seja coagida a praticar atos contra a sua vontade. A ideia de casamento e infância simplesmente não andam juntas.
A proteção da criança encontra-se em ameaça no Iraque, pelo que os conservadores muçulmanos xiitas pretendem baixar a idade mínima para o casamento e para o consentimento sexual para os 9 anos. A proposta de alteração da Lei do Estatuto Pessoal (Lei n.º 188/1959) integra um processo de aproximação do Iraque ao sistema xiita, que impera que a Religião esteja acima do Estado. Neste sentido, os assuntos familiares, incluindo o casamento, o divórcio e a guarda de menores passariam para o âmbito de competência dos tribunais religiosos e não dos tribunais cíveis.
Essa alteração, aliás, tornaria juridicamente legítima uma prática corrente. De acordo com estimativas da Unicef, cerca de 28% das mulheres no Iraque se casam antes de completarem os 18 anos. Apesar de a idade legal para o casamento ser de 18 anos, há uma permissão aos líderes religiosos oficiarem casamentos desde que haja autorização do pai da criança. Nota-se que as crianças do sexo feminino são as principais vítimas do casamento infantil e destas medidas.
Até mesmo o Parlamento Europeu se posicionou sobre a situação, emitindo uma Resolução[2] a 10 de outubro. Nesta, o órgão europeu “exorta o Parlamento iraquiano a rejeitar as alterações propostas à Lei n.º 188/1959”, pelo que estas “violariam as obrigações internacionais do Iraque em matéria de direitos fundamentais das mulheres, resultando num retrocesso significativo e numa reputação negativa do país na cena internacional.” Além disso, solicita que os Estados-Membros aumentem o seu apoio aos defensores dos direitos das mulheres e das crianças no Iraque.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Iraque em 1994, entre outras disposições, impõe que os Estados Partes tomem todas “as medidas adequadas (...) para impedir (...) Que a criança seja incitada ou coagida a dedicar-se a uma atividade sexual ilícita” (art. 34.º), bem como para a “proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, incluindo a violência sexual (...)” (art. 19.º).
Como pode a redução da idade para casar e para o consentimento ainda salvaguardar quaisquer destes valores? Considerando que a idade mínima para casar afeta de modo mais intenso as mulheres e que a idade mínima para casar para os homens será estipulada aos 15 anos, violar-se-ão as normas e o espírito da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). A aposição da medida gera, pois, uma clara violação da igualdade de género. Ora, as leis da nova proposta atentam contra os direitos das mulheres e contra o “superior interesse da criança”, o qual, no Iraque, se encontra esquecido e em urgente necessidade de reconhecimento, em meio ao retrocesso legal para o qual tende o Estado em diversas áreas sociais.
Luiza Toniolo
Departamento Sociedade
[1] “A criança é definida como todo o ser humano com menos de dezoito anos, exceto se a lei nacional confere a maioridade mais cedo.” (art. 1.º da Convenção).
[2] Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de outubro de 2024, sobre o Iraque, nomeadamente a situação dos direitos das mulheres e a recente proposta de alteração da Lei do Estatuto Pessoal.
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