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Foto do escritorClara Castro

Para onde caminha a Sétima Arte no Irão? - Retrato de um cinema que grita liberdade

Em 1979, o Irão, uma das civilizações mais antigas do mundo, sofre uma transfiguração política que afetaria para sempre o futuro do país e o equilíbrio da ordem mundial: a Revolução iraniana força a transição de regime político, que passa de uma monarquia autocrática pró-ocidente para uma república islâmica teocrática.


As transformações sociais daí decorrentes são imensas e pareciam compor os ingredientes perfeitos para “calar” a indústria criativa por uns tempos. Todavia, contra todas as expectativas, os anos 80 são uma época de ouro para o cinema iraniano que surge mais livre do que nunca na imaginação e feroz na análise social. Realizadores como Abbas Kiarostami (Onde fica a casa do meu amigo (1987), Sabor de Cereja (1997)), Jafar Pahani (O Balão Branco (1995)), Mohammad Rasoulof ( O Mal Não Existe (2020)), Asghar Fahardi (Uma Separação (2011)), Saeed Roustaee (A Lei de Teerão (2022)) e Houman Seyyedi (III Guerra Mundial (2022)) revelam-se excecionais contadores de histórias, cujos trabalhos se destacam aos olhos dos júris dos mais aclamados festivais internacionais, entre eles o Festival de Cannes, a Berlinale e os Óscares. Em causa estão opções fílmicas raras no Ocidente, que pendem para os ditos “semifilmes” – filmes que só se completam com o olhar do espectador –, refletindo uma sensibilidade especial para assuntos que sempre inquietaram a espécie humana, como o suicídio, o casamento, a toxicodependência e a pena de morte.


Mas nem todos escolhem fazer dos seus filmes uma oportunidade para contestação política: enquanto uns preferem enveredar pelo “filme-neutro”, no sentido em que se distanciam das problemáticas particulares do regime político, outros arriscam no “filme-arma”, contrariando abertamente as leis vigentes da censura.


Asghar Fahardi, de todos os nomes acima mencionados, é talvez o melhor exemplo de um cineasta que tem optado pelo “filme-neutro”, focando temas como as relações familiares e os dilemas morais, e apenas ao de leve denunciando problemas estruturais diretamente imputáveis ao governo do país. Como refere Manuel Hapern num artigo para a Visão, de março de 2022, no qual analisa o mais recente filme do realizador, Um Herói, “o drama é sobretudo social e não há sequer um pequeno esboço de acusação ao regime iraniano”. Evitando a crítica política, nem por isso Fahardi deforma aquilo que é a realidade iraniana; a sua cinematografia não deixa de ser um gigante espelho cultural do Irão, destacando-se do seu legado o filme Uma Separação, vencedor do Urso de Ouro em 2011 e do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2012. Neste impressionante drama que gira em torno de uma acusação judicial, Fahardi consegue a proeza de deixar o espectador sem saber, até ao final, de que lado está a razão: se com o protagonista, que depois de uma separação turbulenta da sua esposa se excede, empurrando uma mulher que contratara para cuidar do seu pai idoso; se com a mulher contratada que escondera a gravidez do empregador e ocultara do marido o seu novo trabalho, alegando depois, na sequência desse empurrão, ter abortado.


Jafar Pahani é um exemplo da segunda hipótese, do cinema de intervenção, tendo sido acusado em 2010 de “propaganda contra o regime”, condenado a seis anos de prisão e interditado de filmar, e de sair do país, durante vinte anos. Suspensa a pena de prisão, o realizador de O Círculo (2000) — obra que critica o tratamento das mulheres no Irão –, filma clandestinamente Isto não é um filme (2011) enquanto ainda estava em prisão domiciliária, fazendo-a chegar a Cannes numa pen dentro de um bolo. O filme Ursos Não Há é a sua obra mais recente e chegou aos cinemas numa altura em que o realizador estava de facto preso, tendo as autoridades decidido efetivar em julho do ano passado a sentença de 2010.



@Realgood


Curiosamente, o seu filho Panah Panahi tem dado que falar na crítica, especialmente depois do seu recente filme Estrada fora (2021), que segue uma inquietante viagem de carro em família – No banco de trás, o pai tem a perna engessada, mas estará mesmo partida? Porque estará a mãe a sorrir quando lhe apetece chorar? Para onde irá o filho mais velho? O certo é que tudo parece premonitório – tal como uma das personagens, o realizador também abandonou o Irão e vive agora em Paris.


Há ainda que recuar a Abbas Kiarostami, que foi quem começou por inscrever o Irão na História do cinema com a descoberta internacional, nos anos 90, de Onde fica a casa do meu amigo (1987) e, posteriormente, de Trabalhos de Casa (1989). Mais tarde, surpreende uma vez mais com Sabor de cereja (1997), um clássico instantâneo, que explora o dilema do suicídio. O seu trabalho aparentemente simples, mas retratando sempre realidades altamente complexas é hoje um símbolo da cultura iraniana.


Mais recentemente, Saeed Roustaee desafia a ordem estabelecida com o destemido A Lei de Teerão (2019), que se debruça sobre um problema crónico nacional, raramente abordado — a toxicodependência. A história segue um polícia da brigada anti-droga de Teerão que consegue finalmente localizar e deter um traficante, apercebendo-se, enquanto este passa por todos os procedimentos que o levarão à sua condenação a pena de morte e subsequente execução, que foram as condições sociais e as instituições corruptas que ali o conduziram; começa então a questionar todas as detenções que fez e se elas tiveram algum impacto real no combate ao narcotráfico. Não restam por isso dúvidas do ataque explícito às estruturas sociais iranianas. À semelhança da Lei de Teerão, Os Irmãos de Leila, a sua mais recente obra, a concurso em Cannes, ainda sem estreia no Irão por falta de autorização das autoridades iranianas, apresenta um retrato sociológico sobre o grupo como fator de opressão – se na primeira obra de Roustaee o grupo é a polícia, no segundo toma a forma da família.


Em 2022, o Festival de Veneza entrega ao realizador de III Guerra Mundial, Houman Seyyedi, o prémio de Melhor Filme e Melhor Ator na secção Horizontes, e o filme é ainda indicado pelo Irão para ser nomeado na categoria de Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Apesar de tudo isso, não estreou comercialmente naquele país. III Guerra Mundial é acima de tudo um filme sobre fazer filmes, o cinema como um mecanismo para a autorreflexão, recuperando uma temática que remonta à primeira longa iraniana de ficção que se conhece – Hadji agha acteur de cinéma, de Ovanes Ohanian (1933), ainda muda.

Chegados ao “hoje”, emergem uma série de dúvidas acerca do futuro do cinema no Irão. Com a crescente onda de revoltas impulsionada pela morte da jovem Mahsa Mini de 22 anos às mãos das autoridades nacionais em setembro de 2022, na sequência de detenção por uso de “roupas inadequadas”, coloca-se a questão com que o jornalista Vasco Câmara intitula o seu artigo no Jornal Público:E o cinema iraniano continua?


Será possível algum cineasta que preze a sua liberdade artística continuar a fazer cinema no país? A resposta é nos dada implicitamente no mesmo artigo pelo próprio Panah Panahi, que depois de dar conta de que o cinema está neste momento interrompido no Irão – “Ninguém, realizadores, atores, argumentistas quer contribuir para o cinema do censor. É o resultado de três meses de revolta.” –, informa o entrevistador de que tal não o impede de projetar filmar clandestinamente no país um argumento que tem vindo a desenvolver e que se passa em Teerão. Isto, mesmo sabendo os riscos que corre e que também correu o seu pai, libertado sob caução em fevereiro deste ano.


Assim, num período em que as prioridades se parecem alinhar com maior clareza, os cineastas persas unem-se num único propósito: querem ser conhecidos no seu próprio país, porque todo o reconhecimento que obtêm lá fora perde sentido se as suas obras continuam a não poder ser assistidas pelos seus.


Não haja dúvidas. O cinema no Irão continuará.


Clara Castro

Departamento Cultural




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