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Foto do escritorAndré Torres

Saudade, Amargura e Esperança

Atualizado: 21 de set. de 2021

Nos 150 anos da morte de Júlio Dinis, o autor é homenageado na Feira do Livro do Porto, realizada nos Jardins do Palácio de Cristal de 27 de agosto a 12 de setembro de 2021.


“No passado, uma saudade,

No presente, uma amargura,

E no futuro, uma esp’rança

De imaginária ventura.


Eis no que consiste a vida

Imposta por Deus ao homem.


Júlio Dinis in Poesias, “A Esperança” (agosto de 1859)


A verdade parece-me ser o tributo essencial do romance bem compreendido, verdade nas descrições, verdade nos caracteres, verdade na evolução das paixões e verdade enfim nos efeitos que resultam do encontro de determinados caracteres e de determinadas paixões.


Júlio Dinis in Inéditos e Esparsos, “Ideias que me ocorrem” (novembro de 1869)


Júlio Dinis, pseudónimo do médico portuense Joaquim Guilherme Gomes Coelho, é dos mais fascinantes romancistas nacionais.

Pela solidez da filosofia de vida, praticamente inabalável ao longo de uma existência de sofrimento; pelo compromisso com a verdade na literatura; e, sobretudo, pela importância dada à análise dos caracteres das personagens e seus conflitos internos, culminando na criação de Margarida em As Pupilas do Senhor Reitor, a mais cativante personagem da prosa portuguesa.


Busto de Júlio Dinis, Ovar.

Notas biográficas


Em termos esquemáticos, a sua biografia é simples de fazer.

Nascido em 1839, e educado à maneira da burguesia inglesa por influência materna, fica órfão da mãe aos seis anos de idade, à custa da tuberculose. Aos quinze, ingressa na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e perde dois irmãos, vítimas da mesma doença. Aos vinte, vê morrer o grande amigo e poeta Soares de Passos. Aos vinte e dois, já licenciado em Medicina, é-lhe diagnosticada a maleita de família, que lhe tirará a vida, bem como a todos os outros seis irmãos.

Traumatizado pela perda dos familiares, facilmente se compreendem os dois primeiros elementos do tríptico que, em “A Esperança”, fez móbil de vida: saudade e amargura.

Saudade de um passado sem morte; amargura num presente em que ela é rainha e senhora.

Mas como compreender o terceiro e mais importante, que define toda a sua obra, a esperança?

No poema, de agosto de 1859, o autor atribui à imposição divina a assumpção de tal lema. No ano seguinte, porém, escreve, em “Desalento”:


E agora que mais me resta? / Qual, ó alma, a tua sorte?/ Já que a vida é tão funesta / Aspira, somente, à morte.


Versos sem esperança e sem fé, num tom, aliás, que se repete ao longo dos poemas deste período. Terá sido apenas após o contacto com a vida do campo, que serviu de palco a tantos dos seus romances, que nele ardeu o fogo da esperança?

De facto, atendendo aos poemas que nos deixou há uma quase correspondência entre o momento da primeira estadia em Ovar (1863) e o da troca de um tom poético depressivo e autobiográfico por um que, apesar de lúgubre, começa a adquirir traços de maior optimismo e a perder o pendor pessoalista (1862). Mas a correspondência não é exacta, e sabemos, de várias cartas que escreveu, que a terra não o impressionou sobremaneira (a expressão de maior entusiasmo que encontrei consta de uma carta escrita ao amigo Custódio Pais e é a seguinte: “se não posso dizer que me divirto excessivamente, afirmo que não me enfastiei ainda”).

Especulando, outras hipóteses surgem.

Uma seria que, com o diagnóstico da própria doença, a necessidade de sobrevivência se impôs, afastando o estado de insuperável tristeza em que caíra. Outra que o período de 1859/60 foi particularmente difícil para o autor, devido à morte de Soares de Passos, após o qual se restabeleceu emocionalmente.

Nenhuma, no entanto, convence inteiramente.


Atente-se, por exemplo, em “Melancolia”, poesia do mesmo ano que “A Esperança”, e de um desânimo desesperante. À mesma saudade que louva na segunda composição, arrenega-a na primeira:


“Que pretendeis falando do passado? / Que quereis? que exigis ainda de mim? / Lágrimas? Não vos bastam as que hei chorado? P’ra que as saudades me avivais assim?”


À esperança, por sua vez, nem faz alusão – é apenas a morte que deseja:

“E para quê, Senhor? qual é meu norte? / Que missão nesta vida hei-de cumprir? / Oh! antes, me levara a morte. Pois que, assim é tormento o existir.”


Aqui, só a amargura resiste.

Talvez só ela pudesse resistir numa vida pautada pela dor e pelo infortúnio. Onze anos mais tarde, quatro meses antes do fim, escreverá a Custódio Pais: “De mal com o universo inteiro como nunca estive e resolvido a não lutar mais tempo contra a força das coisas. Vou procurar um buraco onde me meta e esperar pelo que Deus quiser que venha.”.

De espírito quebrantado, é sem esperança ou optimismo que encara a morte. Deus afigura-se-lhe como pouco mais que um algoz. Assim, à maneira do nosso autor contemporâneo mais famoso, arrisco uma definição do escritor: Júlio Dinis, um optimista que a vida levou trinta e um anos a abater.


Notas literárias


Júlio Dinis é comummente apontado como um autor de transição entre o Romantismo e o Realismo.

Traços do primeiro são a apresentação de um mundo idílico (especialmente do campo), em que a família é idealizada e “não há indivíduos caracterizadamente maus”, como o próprio reconhece; o tom, se não moralista, marcadamente moralizador (manifestamente exagerado em “Os Fidalgos da Casa Mourisca”); e a inevitabilidade do final feliz, harmonizando a felicidade das personagens e a boa ordem social.

Do segundo, a construção lenta e lógica da narrativa; a fidelidade à linguagem falada nos diálogos; e, acima de tudo, a primazia da busca da verdade no desenvolvimento dos caracteres e da intriga.

Artisticamente, Romantismo e Realismo conjugam-se. Sempre, contudo, sob direcção da visão dicotómica do autor (daí a definição avançada supra), que ele projecta no seu universo literário. De um lado, o seu optimismo intrínseco. De outro, a vida que a cada passo o atacava. Nos termos do próprio autor: esperança e amargura. Que é, no caso, o mesmo que dizer Ideal e Real.

Romantismo e Realismo, Ideal e Real. Eis, então, a quaternidade sobre que o autor constrói a sua obra.


"As Pupilas do Senhor Reitor"

Em bom rigor, a verdade não detém a primazia nos romances de Júlio Dinis. As mais das vezes, o triunfo da moral e da felicidade virtuosa impõe-se-lhe tanto no desfecho invariavelmente feliz e moralizador da história como no desenvolvimento do conflito, que parece, praticamente ab initio, orientado para o dito desfecho.

Há, todavia, uma excepção. Falo de As Pupilas do Senhor Reitor.

Margarida e Clara, meias-irmãs, têm uma relação perfeita. Adoram-se e são devotas uma da outra. Mas se à segunda cabe todo o amor da mãe (madrasta de Margarida) e a liberdade para construir uma vida, para a primeira nada sobra senão humilhações e castigos, que a jovem suporta com resignação de mártir. Além da amizade da irmã, só a lembrança do amor de infância, Daniel, a alegra. Quando este, concluídos os estudos na cidade, regressa à aldeia, a dócil e submissa Margarida sonha com o reatar da antiga paixão. Mas Daniel já não se lembra dela, e é de Clara, que está já prometida ao irmão, Pedro, que se enamora.

Após vários encontros de galanteio, o ciúme e a fúria de Pedro perante a aparente vileza do irmão e da noiva (que são mais estouvados e irreflectidos do que verdadeiramente vis e imorais) chegam ao limite quando descobre que estes se encontram a sós em casa dela (não sabendo que Daniel só se pretende desculpar perante Clara pela excessiva ousadia com que tratou com ela). Fora de si e de espingarda na mão, Pedro entra na casa e encontra, com Daniel, não Clara, mas Margarida. Ainda que em prejuízo da sua reputação, até aí pristina como o seu coração e daí em diante arruinada, Margarida não hesita em sacrificar-se pela irmã, que o não merecia.


Naturalmente, no final tudo acaba bem. E o omnipresente senhor reitor, espécie de anjo da guarda dos quatro jovens que tudo ouve e tudo vê, prejudica a tão almejada verdade na construção da narrativa.

Mas é precisamente a omnipresença do reitor que altera, para melhor, a tradicional arquitetura do romance de Júlio Dinis. Em vez de orientar toda a história para um final feliz, nas Pupilas o autor liberta-se desse papel porque já tem uma personagem encarregue de o desempenhar. Temos, portanto, um drama familiar e moralizador, como de costume, mas com momentos de tensão palpável, conflito angustiante e genuíno confronto de caracteres. Enfim, de quase tragédia e de um realismo psicológico sem par na nossa prosa.

Como a vida do autor, o leitor de Júlio Dinis decerto fará da sua obra uma avaliação dicotómica: apaixonar-se-á pelos laivos de realismo e pela beleza da escrita; aborrecer-se-á com a previsibilidade e a demasiada idealização. Muito Ideal e pouco Real, por outras palavras.

Mas poderia ser de outro modo numa vida em que só o Ideal, e pouco mais, alentava uma existência de pesarosa saudade, lenta e agonizante amargura, e periclitante esperança?


(O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.)

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