Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, de Eduardo Lourenço
A notícia do falecimento de Eduardo Lourenço, em Dezembro do ano passado, foi recebida com grande pesar e tristeza. Concordando ou não com o pensador, todos lamentaram a perda de um grande homem. Nascido numa aldeia da Beira Interior e formado em Coimbra, cedo a carreira do filósofo o levou além-fronteiras, mormente a França, onde leccionou e viveu grande parte da vida. Agraciado com o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, em 1988, e com o Prémio Camões, em 1996, a carreira literária de Eduardo Lourenço reparte-se sobretudo entre a crítica literária e o ensaio, género que cultivou como nenhum autor nacional contemporâneo.
Portugal como Destino e Mitologia da Saudade são, pois, ensaios sobre o nosso país, nos quais procura captar a identidade do povo português, identificar os factos históricos que para a formação dessa identidade contribuíram e, principalmente, explicar como a imagem de nós mesmos e do nosso passado (a nossa mitologia, no fundo) influenciou e ainda hoje influencia essa mesma identidade. Perpassando toda a obra está presente a reflexão sobre o elemento vital da nossa alma colectiva – a saudade. Saudade que não é mesmo que melancolia ou nostalgia, e saudade que não é a mesma em Camões, Pessoa ou Pascoaes. Saudade que corresponde a um sentimento universal, mas que os portugueses fizeram seu.
Nas palavras do filósofo: “Habitados a tal ponto pela saudade, os Portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do sentimento da existência, a ponto de a transformarem em «mito». É a mitificação de um sentimento universal que dá a essa estranha melancolia sem tragédia o seu verdadeiro conteúdo cultural e faz dela o brasão da sensibilidade portuguesa.”.
André Torres
Retrato da Rapariga em Chamas (Céline Sciamma, França, 2019)
Com argumento original da realizadora Céline Sciamma, premiado no Festival de Cannes de 2019, Retrato da Rapariga em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu) é uma história de amor. Diferente, não por abordar uma relação amorosa entre duas mulheres, ou por ter lugar no séc. XVIII, mas pela invulgar densidade e espiritualidade que comporta.
Os primeiros minutos do filme iniciam-nos pacientemente no mistério. É como se uma linha de poesia nos prendesse bem junto a si, decidindo carregar-nos ao seu ritmo. A partir deles, não é fácil adivinhar a verdadeira essência da obra de arte na qual mergulharemos, absortos, nas duas horas seguintes. Sob uma aura literária, seremos levados numa viagem de olhares profundos, de diálogos sentidos e pausas ponderadas, de movimentos subtis e de pormenores estéticos, sempre acompanhada do protagonismo da pintura enquanto jogo inusitado entre contemplador e contemplado. Afigura-se, assim, uma narrativa de descoberta própria e do outro, de contenção e de expressão, que acompanha o desenvolvimento de uma relação de reciprocidade. Despojada de estereótipos ou clichés, vemo-nos perante uma obra que, servindo-se de uma autenticidade inabalável, nos apresenta uma visão original do que é a memória do amor.
É através de uma completude perfeita entre cenas que assistimos, no fundo, ao desvendar da mais verdadeira, intemporal, profundidade feminina. Mais do que um statement, que naturalmente representa, o Retrato da Rapariga em Chamas apresenta-se enquanto obra universal; bela, por ousar desvendar a natureza humana. A não perder.
Beatriz Castro
The Midnight Gospel (Duncan Trussel e Pendleton Ward, 2020)
Ao psicadelicamente inexplicável tentarei fazer o melhor jus. The Midnight Gospel traz visual representação pela mão de Pendleton Ward (conhecido pela importante obra de arte que é Adventure Time) aos episódios do podcast do anfitrião Duncan Trussel (The Duncan Trussel Family Hour). Inteligentemente animada, a série traz uma série de tópicos filosófico-meditativos a um multiverso, explorando uma dimensão diferente em cada episódio, de um apocalipse para outro somos apresentados a diferentes personagens e prendados com bizarras músicas estranhamente enquadradas com os cenários apocalípticos que acompanham.
É difícil escolher no que focar a nossa atenção: se na animação, se no diálogo (muitas vezes encontramo-nos perdidos num limbo entre os dois). O desafio apresentado pela série em muito se deve ao background, hipnotizante (arriscar-me-ia a dizer que será até “tripante”) e com um ritmo de tal forma acelerado que nos arrasta para longe dos diálogos e faz os 30 minutos de cada episódio parecerem durar meros segundos. Sapatos não serão calçados para ir à cozinha buscar lanches ou cafés, pois o bingewatch é quase irresistível e a série acaba simultaneamente no momento certo e cedo demais. Não deixa, contudo, de se notar uma dose saudável de sentimentalidade, aquela de bom gosto, da prateleira de cima e que só se usa para as ocasiões especiais, é respeitosa, mas avisam-se sensíveis susceptibilidades de possível lágrima solitária.
O casamento entre o diálogo filosófico protagonizado por Trussel e pelos seus convidados e a arte de Ward é um daqueles que dura e renova os votos aos 50 anos em bodas de ouro, porque é esse o metal que esta série merece. Disponível na Netflix, não deixem de ver porque não se arrependerão, é o tipo de coisa que naquela domingueira preguiçosa vale a pena o esforço de abrir um computador ou televisão para ver.
Rita Gomes
El abrazo de la Serpiente (Ciro Guerra, Colômbia, 2015) - Beleza e Dor na Amazónia
Inspirado nos diários de viagem de Theodor Koch-Grünberg, etnólogo Alemão que contribuiu para o estudo de povos indígenas da América do Sul, conta a história de dois cientistas europeus que partem em busca de uma planta sagrada, guiados pelo xamã Karamakate. Estas narrativas paralelas, uma passada em 1909 e outra em 1940, entrelaçam-se e as identidades confundem-se, afigurando-se a posterior como um eco da primeira, redentora e catártica.
Esta é uma história de crescimento e desenvolvimento espiritual, uma jornada na direção do arquetípico homem íntegro. Os choques culturais que rodeiam este desiderato são notórios - a razão e materialismo tipicamente ocidentais friccionam com o misticismo xamânico e o desprendimento dos indígenas. É a forma de compreender e agir das culturas amazónicas que se enaltece, num ambiente de ocidentalização e gradual extinção destes povos americanos. De facto, a homenagem prestada aos nativos põe ao mesmo tempo em xeque as atrocidades aberrantes e quase surreais cometidas pelos colonizadores. Conquistadores, missionários e barões da borracha são os vilões responsáveis, ainda que a ameaça mais fundamental para as culturas locais não seja a imposição violenta, mas a assimilação voluntária. Nesse sentido, o filme ilustra também a tensão permanente entre tradição e progresso.
Para quem gosta de sentir história, e não meramente de a saber, o filme é obrigatório como testemunho de sofrimento e como homenagem à beleza e sabedoria de culturas sul-americanas.
Rodrigo Saraiva
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