The land of slavery
- Beatriz Costa
- 10 de dez. de 2020
- 10 min de leitura
Os EUA têm a maior taxa de encarceração do mundo desde 1970 [1].
Nos últimos anos, aumentou até mais cinco vezes em relação aos restantes países.
Apesar de representarem 5% da população mundial, contam com 25% dos detidos mundiais. Este elevado número de detenções pode ser facilmente explicado pela aprovação de inúmeras leis discriminatórias. Na realidade, os reclusos são maioritariamente afro-americanos e latinos, levantando várias questões sobre preconceito racial no sistema de justiça e nos meios judiciais. Segundo as estatísticas de Bureau, 35% dos prisioneiros estatais são brancos, enquanto que 59% são negros ou hispânicos, no entanto, apenas representam 30% da população total estadunidense, enquanto que 62% do total é branca. Ora, estes números contrastam com o ideal americano de liberdade e democracia.
O sistema prisional norte-americano é hoje uma indústria multimilionária, escondida por trás duma política de reabilitação e redenção, de Law and Order, criada por aqueles que temiam o crescimento do “Civil Rights Movement”, como agora temem o “Black Lives Matter”.
A indústria prisional produz bens diversos e presta serviços ao Estado e entidades privadas. Os trabalhos passam pela construção de mobília, equipamento militar, impressão de modelos 3D, como também, pelo combate de incêndios, ou até mesmo, pela produção de gel desinfetante ou outros serviços necessitados em tempos de pandemia.
Medidas como salários de $1/hora, jornadas de trabalho de 12 horas seguidas, injustificação de faltas por doença ou a não cedência de dias de descanso são apenas algumas das medidas permitidas que atraem diversas empresas como a Walmart, Whole Foods e a Victoria´s Secret a recorreram a este complexo industrial.
O sistema prisional deve ser analisado sob uma lente económica. Programas de trabalho prisionais oferecem às companhias a vantagem financeira de que precisam para manterem os postos de trabalho nos EUA, uma vez que, através destes programas, conseguem garantir uma mão de obra fiável e barata, que impede a deslocação de empresas para países como o México [2], que também pratica salários baixos.
Mas antes de mais, é preciso entender o percurso histórico que levou à abertura de precedentes discriminatórios que conduziram à construção dum sistema de justiça desigualitário e injusto. Atualmente, "há mais homens afro-americanos na prisão, em liberdade condicional ou em julgamento do que haviam homens afro-americanos escravos em 1850". [3]
Mais ainda, um afro-americano é 5 vezes mais provável de ser preso do que um americano branco.
A exceção da 13.ª Emenda
Em 1865, foi retificada a 13.ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos que tornou inconstitucional a escravatura. Uma grande vitória para o país que se apelida de “Land of the Free, home of the brave”, que finalmente concedeu liberdade a todos os seus cidadãos.
"Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado."
No entanto, abriu o primeiro precedente, agora, todos eram livres, exceto os criminosos.
Os Estados do Sul dos Estados Unidos da América dependiam economicamente da escravatura e a sua abolição, com o fim da Guerra Civil, fragilizou todo o seu sistema económico de produção.
Cerca de 4 milhões de pessoas que antes eram classificadas como propriedade e tratadas como tal, eram agora livres. A economia tinha de ser reconstruída.
Rapidamente, a lacuna da 13.ª Emenda foi explorada e o primeiro “boom” de encarceramento da comunidade negra aconteceu. Leis que regulamentavam a escravatura foram substituídas por “Black Codes” que limitavam toda a liberdade concebida a pessoas negras. Passaram a ser detidos por pequenos delitos como vagabundagem, roubo, ociosidade, procurar um emprego sem apresentar um documento assinado pelo antigo proprietário [4]. Os prisioneiros eram depois “solicitados” pelas fazendas e empresas, onde trabalhavam sob condições precárias. Foi desta forma que a mão de obra prisional reconstruiu a economia do sul.

Todavia, a oposição política foi crescendo à medida que a indústria prisional se expandia. As prisões passaram a funcionar na base de um sistema de “contratos”, que consistia na venda de mão de obra a empresas privadas e fazendas.
A privatização da produção rapidamente se tornou a principal forma de organização das prisões dos Estados do Norte, acabando por ser ainda mais barata que a mão de obra escrava, uma vez que, não eram responsáveis pelo estado de saúde dos trabalhadores prisionais. Era assim impossível, para as restantes empresas, competir com os preços praticados no complexo industrial prisional que não cumpriam as regras do mercado livre.
Em 1887, 204 prisioneiros foram requeridos por McDonald, um homem branco, em Mississippi, onde seis meses depois se descobriu que dezenas de homens estavam mortos, e o hospital cheio de prisioneiros cujos corpos estavam cheios de "marcas do tratamento mais desumano e brutal... tão pobres e macilentos que os seus ossos quase se mostravam através da pele" [5].
Ainda assim, as estratégias de encarceramento foram-se intensificando sempre que a comunidade negra usufruía da sua independência ou alcançava algum sucesso social.
Rapidamente, o sistema de justiça criminal direcionou-se para um controlo racial. Daqui, surgiu uma mitologia de criminalidade à volta da comunidade afro-americana, do homem negro que violava mulheres brancas, que estava fora de controlo e tinha de ser banido.
O Ku Klux Klan ressurge. Perseguições, assassinatos e intimidações em massa começam. Qualquer comportamento que desafiasse a hierarquia racial podia ser considerado de crime, punido por lei ou por linchamentos que se espalharam do Mississippi até ao Minnesota.

Leis de Jim Crow - “separate but equal”
Mais tarde, em 1877, o novo Presidente norte-americano, Rutherford B. Hayes, reverteu as leis da era da Reconstrução e estabeleceu novas leis de segregação. Depois do Supremo Tribunal dar um parecer positivo sobre o caso Plessy contra Ferguson, relativamente ao direito dos Estados de imporem a segregação racial em locais públicos sob o pretexto “separate but equal”, abriram-se portas à elaboração de leis que relegaram cidadãos negros a um estatuto permanente de segunda classe. O acesso à educação e à saúde foram menosprezados a infraestruturas sobrelotadas, subfinanciadas e em mau estado de conservação. As leis de segregação afastaram, ainda, o acesso ao voto através da imposição de testes de literacia e impostos.

Começou, em 1934, a Era Moderna da indústria prisional com a criação da Federal Prison Industries (FPI), também conhecida por UNICOR. As empresas privadas deixaram de ter o monopólio da indústria prisional, que passou a ser gerida inteiramente pelo Estado.
Agora, a corporação governamental integrava o novo monopólio federal sobre a gestão dos programas laborais prisionais. O grande objetivo era desassociar o trabalho prisional dos negócios lucrativos a que estava associado e promover a reabilitação e a segurança no local de trabalho. Para cumprir estes objetivos, os produtos feitos pelos trabalhadores prisioneiros eram apenas vendidos ao Governo, de forma a que a indústria prisional não tivesse de competir no mercado livre com o setor privado. Para além disso, as FPI, como as prisões estatais, criaram programas educacionais que visavam a reintegração dos presos na sociedade.
Nixon - "war on drugs"
Em 1964, é aprovada a Lei dos Direitos Civis, e em 1965, a Lei dos Direitos de Voto, que revogam as Leis de Jim Crow.
Estamos, agora, no fim da Segunda Guerra Mundial e o crime aumenta na geração baby-boom. Uma mudança demográfica exponencia o número de criminalidade nos EUA. A culpa? Estava no Movimento dos Direitos Civis, ou pelo menos, foi a estratégia tomada por Nixon na corrida presencial em 1968. A “estratégia sulista” visava atrair o maior número de votos possível nos Estados do Sul capitalizando o ódio dos votantes brancos pela raça negra.

O testemunho de John Ehrlichman, antigo Chefe da Polícia no tempo de Nixon, diz-nos: "A campanha de Nixon, em 1968, e a sua Casa Branca, depois disso, tinha dois inimigos: a esquerda pacifista e os negros. Entendem o que digo? Nós sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao tentar que o público associasse os hippies com marijuana e os negros com heroína... E então criminalizando ambos pesadamente, conseguíamos romper essas comunidades. Podíamos prender os seus líderes, verificar as suas casas, acabar com os seus encontros, e torná-los vilões todos os dias nas notícias. Se sabíamos que estávamos a mentir em relação às drogas? Claro que sabíamos."
Nixon é eleito 37.º Presidente dos Estados Unidos e declara “war on drugs”, o inimigo público n.º 1. A iniciativa pretendia o fim do tráfico, distribuição e consumo ilegal de drogas, através do aumento da sua criminalização. Ao mesmo tempo, uma série de leis facilita a aquisição de mão de obra prisional pelo setor privado. Esta regulamentação foi promovida por grupos como o American Legislative Exchange Council (“ALEC”), através do PIE (“Prison Industries Act and the Prison Industries Enhancement Certification Program”) criado em 1979 pelo Congresso.
Entretanto, em 1980, surge uma nova droga, a cocaína fumável ou crack, vendida em doses mais pequenas e relativamente mais baratas que passaram a dominar o tráfico de drogas nas comunidades afro-americanas. Logo, o Presidente Ronald Reagan reforçou e expandiu as medidas de Nixon. Entre elas, a Anti-Drug Abuse Act, estabelecia sentenças mínimas obrigatórias para o crack, muito mais pesadas do que as sentenças para a cocaína em pó, apesar de a diferença entre ambas fosse que a primeira era mais comercializada na cidade, e a segunda nos subúrbios. A mesma pena de prisão para 500g de cocaína em pó, era recebida para 5g de crack [6].
Estas medidas de Ronald Reagan devastaram comunidades inteiras e rapidamente descambou uma nova era de encarceramento em massa. Em apenas 5 anos, a população prisional subiu de 513.900 para 759.100.
Contudo, é importante contextualizar com o abuso de drogas das comunidades afro-americanas, a crise económica de fundo e a hipersegregação consequente das leis de Jim Crow. À comunidade afro-americana nunca foi dada uma oportunidade para sair deste sistema discriminatório, que sempre criou novas formas de manter o sistema igual.
Criou-se um contexto de medo - “superpredador” foi a expressão utilizada para descrever esta nova geração.
Hillary Clinton, em 1996, disse: "Temos de os prender, eles estão conectados com grandes cartéis de droga, já não são apenas gangues de crianças. Eles são, muitas vezes, o tipo de crianças a que chamamos superpredadores. Sem consciência, sem empatia. Podemos falar do porquê de terem acabado assim, mas primeiro precisamos de os trazer."
Crime Bill, Three Strikes, Minimum Mandatory Sentences
Os Democratas seguiram as pegadas dos Republicanos e iniciaram uma política de controlo do crime: aumento do policiamento nas ruas e criação de sentenças mais severas. A presidência de Bill Clinton implementou a lei dos “three strikes”, condenação automática à prisão perpétua aos 3 crimes violentos, a “Crime Bill”, em 1994, autorizava a contratação de novas forças de policiamento, deslocação de equipas SWAT para esquadras locais, financiamento para construção de novas prisões, previa ainda 30 novos crimes puníveis com pena de morte. De 1990 para 2000 a população prisional aumentou de 1.179.200 para 2.015.300, sendo que em 2001, 878.400 eram afro-americanos.
Desde 2006 que a UNICOR tem promovido a abertura de novos complexos industriais em diversos Estados, mesmo que a taxa de crime tenha decrescido nos últimos anos. Adotou também uma nova gestão de produção mais lucrativa que traz a indústria prisional novamente para o mercado livre. A CCA foi a primeira empresa prisional privada nos EUA. Começou como uma pequena empresa no Tennessee, em 1938. Começaram a fazer contratos com os estados, que os obrigavam a manter as prisões cheias e no final dos anos 90 começaram a crescer. A ALEC teve um papel preponderante no crescimento da CCA, através da aprovação de várias leis, como a three strikes, minimum mandatory sentencing, que mantinham um fluxo constante de reclusos e gerava lucros para os acionistas. Através da ALEC, a CCA tornou-se a líder das prisões privadas.
Assim, o trabalho prisional continuou a atrair o setor privado por diversas razões. Por um lado, a indústria prisional oferece mão de obra fiável e barata. Por outro, além dos baixos salários, a maioria dos trabalhadores não recebem os benefícios a que as empresas são obrigadas a conceder aos restantes trabalhadores. Por exemplo, ainda não é claro se os trabalhadores prisionais devem ser compensados financeiramente por acidentes de trabalho, como amputações causadas pelas máquinas. Em particular, na Califórnia, prisioneiros que estejam a cumprir pena perpétua nunca irão receber essa tal compensação por injúria, uma vez que, o Estado proíbe que os prisioneiros recebam a indemnização antes de serem libertados. Além disso, as corporações não precisam de se preocupar com sindicatos, já que não lhes é dado o direito de se sindicalizarem.
Encontramo-nos, agora, numa era em que já não é politicamente vantajoso para os Republicanos e Democratas manter o sistema prisional como está. A pressão política de movimentos de esquerda fez com que ambos os partidos norte-americanos integrassem nos seus programas políticos a reforma do sistema prisional e o fim do encarceramento em massa.

Todavia, Donald Trump vence as Eleições Presidenciais, em 2016, e ressuscita a retórica da Law and Order, o financiamento do complexo industrial, a alocação de forças militares nas ruas e o aumento da criminalização e severidade das penas.
"Eu amo os dias de antigamente. Sabem o que eles costumavam fazer a tipos como estes quando eles estavam num sítio como este? Eles eram carregados em macas, pessoal. Oh, é verdade."
Covid-19 e a Administração Trump
As repercussões da Administração Trump são visíveis hoje com a pandemia. Estamos em 2020 e a organização de trabalho da indústria prisional mantém-se. Enquanto muitos norte-americanos abrigaram-se no conforto das suas casas, os trabalhadores prisionais continuaram a trabalhar na produção de gel desinfetante, luvas protetoras, máscaras cirúrgicas e viseiras. Os baixos salários mantêm-se, entre 0.14$ e 1.50$ por hora, apesar dos diversos riscos que os trabalhadores tomam. O distanciamento social fora do local de trabalho é complicado, tal como a prevenção de contaminação do vírus. Nalguns casos, o trabalho é mandatário, noutros, é uma necessidade financeira. Em caso de contração do vírus, os trabalhadores prisionais são afastados para celas solitárias. [7]
Ainda assim, todos os dias são transmitidas novas informações relativas às condições de trabalho nas prisões durante a pandemia: em Nova Iorque, segundo o Wired, os trabalhadores prisionais são pagos 6$/ hora para a escavação de valas comuns. No Texas, segundo o jornal CBS, 2$/ hora pelo transporte de vítimas mortais da Covid-19. Na Califórnia, segundo o Appeal, 1$/ hora pelo combate de incêndios na linha da frente.
Analisando o processo histórico que construiu o sistema de justiça norte-americano, a constante visível são as várias tentativas dos cidadãos afro-americanos serem compreendidos como seres humanos em pleno, complicados e complexos, e não como criminosos, ameaça ou perigo ao qual são constantemente associados.
A “Land of the Free, home of the brave” falha, assim, na libertação do seu povo e no reconhecimento por completo dos seus direitos.
O presente artigo teve como principais fontes de informação: o artigo “MADE IN THE USA: RACE, TRADE, AND PRISON LABOR” (https://socialchangenyu.com/wp-content/uploads/2019/05/Lan-Cao_RLSC_43.1.pdf) e o documentário 13th de Ava DuVernay.
[2] Heather Ann Thompson, The Prison Industrial Complex: A Growth Industry in a Shrinking Economy, 21 NEW LAB. F. 39, 41 (2012).
[3] Incarceration, THE SENTENCING PROJECT, http://www.sentencingproject.org/issues/incarceration/ [https://perma.cc/8QTR-GS6N]
[5]America's Continuum of Racial Democracy and Injustice: From the Plantation to Urban Ghetto, Wallace Thomas
Comments