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Foto do escritorHugo Almeida, Guilherme Alexandre e Ana Neri

VANDALISMO DE OBRAS DE ARTE POR ATIVISTAS AMBIENTAIS: ATÉ ONDE VAI A VONTADE DE CHOCAR?

VANDALISMO A OBRAS DE ARTE POR ATIVISTAS AMBIENTAIS


A história do vandalismo contra obras de arte é quase tão antiga como a história da arte em si, precedendo inclusive as próprias instituições culturais e os espaços dedicados ao depósito, preservação e publicitação de peças de arte. O episódio desta prática mais vivo na memória recente é provavelmente o da destruição dos Budas de Bamiã, pelos Talibã, em 2001.


A história do “vandalismo” à arte, motivado pelo ativismo político ou social, embora consideravelmente mais recente, não deixa de ser rica em nuance. Estudar as suas intenções, reações e consequências é um exercício útil para nos situarmos face à atual vaga, que (embora possam ser apontados protestos do género mais antigo), discutivelmente, começou a 14 de outubro de 2022, quando duas ativistas do grupo Just Stop Oil atiraram com sopa de tomate à 4.ª versão da série de quadros Doze girassóis numa jarra de Vincent Van Gogh, expostos na National Gallery em Londres.

@JustStop_Oil

Estará o inferno cheio de boas intenções?


Voltemos 108 anos atrás. No mesmíssimo museu dos ataques de 14 de outubro de 2022 (a National Gallery de Londres), a 10 de março de 1914, um famoso nu artístico de Velásquez (conhecido por Rokeby de Vénus), foi talhado repetidamente pela militante sufragista Mary Richardson. Após a sua detenção, quando questionada sobre os seus motivos, respondeu apenas o seguinte: “Tentei destruir o quadro da mais bonita mulher da história mitológica, como um protesto pelo Governo ter destruído a Mrs. (Emmeline) Pankhurst, que é a pessoa de carácter mais bonito da história moderna”.


Para contextualizar, o quadro do pintor castelhano – uma vulnerável e sensual representação de Vénus, corporizando uma beleza feminina objetificada - seria, a priori, um alvo expectável da causa feminista. Contudo, este quadro era também uma das jóias da coroa britânica, cuja aquisição tinha sido financiada pelo Rei Eduardo VII. Tratava-se de uma peça unanimemente amada pelo povo britânico, não só pelo seu valor estético, mas também patriótico. Que a sua destruição causaria repulsa e contestação popular era mais do que certo. E mais, a própria “iconoclasta” desta história, Mary Richardson, estudara arte e não lhe faltava admiração pela obra de Velasquez.


E a Mrs. Pankhurst, que as autoridades britânicas teriam “destruído”, era a famosa líder deste movimento sufragista, que, nas suas sucessivas greves de fome, tinha sido alimentada à força pelos guardas prisionais.


O silêncio do público perante este tratamento desumano e degradante foi o que motivou o impertinente ataque – a pungente pergunta que se punha era a seguinte: “Valeria uma obra de arte – um objeto – mais do que uma vida humana?


Hoje, os ecos desta pergunta feita há mais de um século continuam a ressoar numa discussão que volta a estar na ordem do dia.


À semelhança do que se repercutiu nos últimos dois meses com os ativistas climáticos, também os ataques sufragistas a obras de arte se exacerbaram em resposta, muitas vezes como parte de uma estratégia orquestrada para causar o desconforto no público, obrigando-a a agir sobre a questão (mesmo que, irremediavelmente, criasse mais antagonismo para com a causa que pretendiam defender - ambos os movimentos parecem operar na assunção que a mediatização, debate público e sentido de urgência da questão, acelerarão a mudança social), outras como “copycat” de movimentos afins que, de forma descoordenada e orgânica, adotam as mesmas táticas.


No dia 23 de novembro, uma de duas ativistas, ambas associadas à Just Stop Oil, foi condenada a três semanas de prisão por ter causado £2,000 em danos à moldura (mas não à pintura em si) do quadro Pessegueiro em flor (da série Pomar em flor) na Courtauld Gallery em Londres. Apesar de menos mediatizado, esta ação direta foi, a 30 de junho de 2022, a primeira do tipo atribuída à organização, fundada apenas em fevereiro deste ano.


Também os dois ativistas que tentaram colar a cabeça ao Rapariga com Brinco de Pérola, célebre obra de Vermeer, foram condenados a dois meses de cadeia nos tribunais neerlandeses. A filial belga da Justa Stop Oil ripostou, denunciando a ironia de “serem os ativistas que, por meios não-violentos, se opõe à matança em massa da vida na Terra, a ser condenados”. Um dos ativistas perguntou o seguinte aos seguranças: “Como é que te sentes ao ver algo tão bonito e valioso ser aparentemente destruído diante dos teus olhos? Sentes-te indignado? Ainda bem. Onde é que está esse sentimento enquanto o planeta está a ser destruído? Esta pintura está protegida por vidro, não se preocupem. O futuro dos nossos filhos não está protegido”.


Sobre isto, o Museu Mauritshuis só teve a dizer que “A arte é indefesa e o Mauritshuis rejeita fortemente qualquer tentativa de a danificar para qualquer fim”.


São patentes os paralelismos entre as declarações dos jovens ambientalistas e as de Mary Richardson: “Podem arranjar um novo quadro, mas não podem arranjar uma vida” (referindo-se ao tratamento de Pankhurst na prisão).


A escala global do problema é, desde logo, uma diferença significativa, sendo que a solução para a emergência climática não pode ser atingida exclusivamente por decisores políticos nacionais (como ocorria na questão do direito de voto), ainda que a possibilidade de mobilização mundial em massa e comunicação instantânea conferidas pela internet apresentem remédios interessantes para essa dificuldade.


No entanto, há duas diferenças (simbólicas e práticas) que se devem ter em conta entre os dois atos:


Em primeiro lugar, é de realçar uma injustiça que subjaz aos ataques a quadros de Van Gogh, pelo facto do pintor ter vivido uma vida de pobreza, sem ser reconhecido até depois da sua morte, e de ter mostrado na sua obra uma profunda admiração pela natureza e pela classe trabalhadora, especialmente vulnerável às alterações climáticas. Nesse aspeto diferente da obra de Velázquez, que simbolizava um certo machismo.


Em segundo e em contraste, a grande maioria destes ataques (em especial o mais célebre – ou infame – de 14 de outubro) não provocou quaisquer danos ao quadro em si. Um cuidado proposital e que garante a continuidade deste incalculável património artístico.


Se calhar a natureza de “risco existencial” das alterações climáticas, que são o invólucro destes protestos, aproxima estes eventos, não tanto do passado de 1914, mas do futuro distópico da ficção científica de Children of Men, realizado por Alfonso Cuarón. No filme, passado num mundo em que a humanidade torna-se infértil, ficando destinada a desaparecer (uma gritante analogia à insustentabilidade da continuação da espécie humana com as alterações climáticas), o protagonista Theo (Clive Owen) participa de uma espécie de “Arca de Noé da Arte”, um projeto para salvaguardar o património artístico após a extinção da humanidade. O curador da arca, a um certo ponto, lamenta não poder ter salvo La Pieta, a famosa escultura de Michelangelo. Mais tarde no filme, num genial momento de justaposição cinematográfica, a câmara mostra uma mãe, nas ruas de uma sociedade em colapso, a segurar o corpo do seu filho morto, à semelhança da estátua de Michelangelo. A um certo ponto Theo questiona-se: “How all this can matter if there will be no-one to see it? The alibi can no longer be future generations, since there will be none”.

Just Stop Oil: os perigos e as vulnerabilidades de movimentos grassroots


Há um elemento presente em quase todos os casos enunciados: a sua associação ao movimento Just Stop Oil. O grupo ambientalista grassroots, com o fim de travar a produção e licenciamento de combustíveis fósseis no Reino Unido (bem como outras causas, como o investimento nas energias renováveis e maior eficiência energética no isolamento térmico de edifícios), baseia-se nos métodos da ação direta e desobediência civil e pauta-se por um imperativo de disrupção não-violenta. Apesar de não ter mais de 11 meses, conseguiu conquistar a atenção do mundo, através de vários protestos, desde a invasão de eventos (como os BAFTAS, em março, o Grande Prémio da Grã-Bretanha, em julho, e diversas partidas de futebol), aos bloqueios a pontes e estradas (que levaram a maior parte das detenções, tendo chegado a 677 detidos), às disrupções ao próprio fornecimento e distribuição de produtos petrolíferos, vandalizando bombas e tentando sabotar camiões e navios-petroleiros.


Desde julho, porém, o grosso dos protestos têm sido contra obras de arte, tendo essa sido a sua principal fonte de exposição. Não deixa de ser curioso, sem desvalorizar o papel central e imprescindível da arte no seio de qualquer cultura, que estes tenham sido os protestos ambientalistas mais noticiados, quando, no Dia da Terra (a 22 de Abril de 2022), o estadunidense Wynn Bruce auto-imolou-se (vindo a falecer no dia a seguir) em frente ao edifício do Supreme Court, em Washington D.C., como protesto contra as alterações climáticas, recebendo (se calhar pela natureza desconfortável e chocante da notícia) substancialmente menos atenção.


A legitimidade da organização tem sido questionada, sobretudo devido ao seu financiamento, quer pelo aparente conflito de interesses de alguns dos seus mecenas, quer pela o seu método de financiamento.


Subsistem várias acusações de “astroturfing”[1], isto é, de que o grupo nada mais é do que “consenso fabricado” por agentes individuais para criar a ilusão de um movimento social surgido espontaneamente. As suspeitas devem-se à quota significativa de financiamento proveniente do Climate Emergency Fund, outorgado por Alieen Getty, uma herdeira da petrolífera Getty Oil. Com base nestes factos, tem surgido uma teoria da conspiração de que o grupo foi criado pelo lobby petrolífero de modo a danificar a imagem do ativismo climático. A Just Stop Oil já desmentiu publicamente as acusações, esclarecendo que Getty nunca esteve envolvida diretamente na indústria petrolífera, tendo dedicado a sua vida à filantropia e inclusive, numa entrevista ao Guardian de 2021 (chamada Fossil fuels made our families rich. Now we want this industry to end), exprimiu que o privilégio concedido pela riqueza da sua família graças ao petróleo, trazia uma responsabilidade acrescida de corrigir os males causados pela indústria.


Várias críticas têm sido apontadas para o facto da organização aceitar doações por via de criptomoedas, uma indústria associada a elevadíssimas emissões de gases com efeito de estufa (que ao todo excede as emissões anuais de países como a Colômbia). Conquanto, o grupo só aceita doações em Ethereum, uma das criptomoedas mais “enviromentally friendly”, tendo cortado 99% das suas emissões.


[1] A expressão, sendo um trocadilho no termo “grassroots”, indica um movimento social que surge organicamente das populações locais, de baixo para cima – sendo AstroTurf uma marca de relva sintética.

Hugo Almeida

Redator do Departamento Sociedade



“AS ALTERAÇÕES NO ATIVISMO CLIMÁTICO”


Em 1962, Rachel Carson, considerada a mãe do movimento ambientalista, publicou o livro “Silent Spring”. O seu propósito foi chamar a atenção para os impactos negativos dos danos causados ao ambiente e à biosfera pela atividade humana.


Ainda assim, apenas alguns anos depois, com o aumento da atenção e debate, chegou o assunto aos principais órgãos das Nações Unidas que, em junho de 1972, se juntaram em Estocolmo. Naquela que ficou conhecida como a Primeira Cimeira da Terra, a ONU adotou uma declaração de princípios e recomendações com vista a afirmar a preocupação global com as alterações climáticas e a considerar, nas políticas de cada Estado, o impacto climático gerado e a sua potencialidade de contribuir para efeitos climáticos catastróficos.


O caminho foi feito, sem histeria, mas a uma velocidade (des)apressada e que pode ser considerada responsável pela urgência que agora enfrentamos. De facto, não se pretende aqui discutir a urgência de combater as alterações climáticas e os seus efeitos.


À luz das recentes investidas contra famosas obras de arte, bloqueios de estradas (segundo a DW, nos últimos meses já foram entregues mais de 700 casos à procuradoria de Berlim) e tomadas de estabelecimentos de ensino em nome do combate às alterações climáticas, aquilo que se torna objetivo de debate é a forma como combatemos os males causados pela atividade humana ao clima.


Analisarei, em boa-fé, o propósito destes ativistas, antes de o criticar. Com atitudes chocantes e que sinalizam desespero e urgência, o seu propósito é colocar o tema na agenda e na boca das pessoas, e por vezes denunciando determinadas empresas e governos pelas suas práticas ou inações. O facto de o estarmos a cobrir, por todo o mundo, mostra que tiveram sucesso.


No entanto, que se fale do assunto não é suficiente, visto que o engagement não é a base da democracia. Um like não vale um voto, assim como não o valeriam um milhão de likes. Parte da população é extremada e contra o movimento ambientalista, outra parte fica cada vez menos empática (por exemplo, pessoas que sofrem com os bloqueios de estradas e demonstrações públicas). E, creio, a maior parte da população percebe perfeitamente a mensagem que pretendem passar, mas teme o radicalismo de certas medidas propostas e apenas revira os olhos quanto a estes atos de ativismo mais exagerados.


Note-se que, apesar de cada vez mais pessoas afirmarem preocupar-se com o ambiente, os partidos ambientalistas, como o PAN em Portugal, parecem não encontrar grande expressão eleitoral e que as propostas para o ambiente dos restantes partidos ficam aquém do desejado pelo movimento ambientalista. Sendo as eleições baseadas em programas gerais para o país, e sendo o ambiente uma preocupação mais que secundária para muitos, acrescentar um capítulo no programa que vagamente defenda redução de emissões de carbono parece ser suficiente para sinalizar que o partido esteja a fazer a sua parte.


Muitos abordam a luta climática de forma polarizada (e tristemente errada). Por um lado, temos aqueles que gritam slogans marxistas (“Ecologia sem luta de classes é jardinagem”), ignorando as tragédias perpetradas por regimes que se propuseram a seguir a doutrina socialista. Do outro lado, temos aqueles que se refugiam nessas tragédias, como a destruição do Mar Aral pela União Soviética, para ignorar os excessos de produção e os incentivos errados do capitalismo e, assim, continuar sem nada fazer. Muitos, não caindo para nenhum desses lados, caem apenas na ideia de que nada tem sido feito além da assinatura de acordos, e muito poderiam beneficiar de ler mais sobre o assunto e estudar quanta parte dos orçamentos europeus tem sido alocado para o combate às alterações climáticas na Europa e em países do Sul Global.


Penso que uma forma muito mais eficaz de ativismo climático seria atirar relatórios e estudos contra quadros, ou ocupar as estradas com a pintura de códigos QR que educassem quem os consultasse. Consegue convencer mais pessoas e dar-lhes ferramentas para se juntarem à luta, inclusive com o seu voto e doações, do que impedir as pessoas de chegar ao trabalho ou à escola dos filhos.


PS: é demasiado alarmista dizer que o mundo vai acabar se não atingirmos determinadas metas antes de 2030; procurem apenas mostrar às pessoas que, devido a fenómenos climáticos extremos, em muitas partes do nosso planeta, e para muitas pessoas, o mundo já acabou.


Guilherme Alexandre

Coordenador do Departamento Fazer Pensar



SOBRE ENTORNAR O CALDO


Uma lata de tomate na Rapariga com Brinco de Pérola de Vermeer, puré de batata em Les Meules de Monet, óleo em Vida e Morte de Klimt, mãos coladas na Primavera de Botticelli, (mais uma) lata de tomate nos Girassóis de Van Gogh...os ataques sucedem-se um pouco por toda a Europa.



  • Pequena “cronologia desordenada” dos ataques a obras de arte na história recente

As grandes obras de arte têm impacto, são uma provocação a quem as observa. Talvez por isso tenham sido alvos de agressão recorrentes ao longo da história.


Em 1914, na National Gallery de Londres, a obra Vénus ao Espelho é golpeada mais de sete vezes pela sufragista Mary Richardson com um cutelo, em protesto contra a detenção de Emmeline Pankhurst. A escolha da obra não foi aleatória– “Slasher Mary” (como na altura ficou conhecida) censura a obra de Velázquez, dotada de uma carga erótica evidente, pela forma como nela incidia o olhar masculino objetificante, atraído pelo nu da deusa romana.


Depois de dois ataques em 1956 (com uma pedra e com ácido), em 1974, Mona Lisa, à data exposta no Museu Nacional de Tóquio, é vandalizada por uma pessoa com deficiência em protesto contra a pouca acessibilidade do museu. Em 2009, já no Louvre, uma mulher russa atirou uma caneca à obra, enfurecida por lhe ter sido negada a nacionalidade francesa.


Num domingo de Pentecostes no Vaticano, em 1972, um geólogo australiano atacou Pietá com um martelo, depois de gritar “Eu sou Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos”. A escultura de Michelangelo sofreu danos profundos (o seu restauro demorou mais de dez anos, aliás): o nariz da Virgem foi estilhaçado em três partes e o braço esquerdo foi-lhe arrancado.


Em 1974, Guernica– símbolo da resistência contra o fascismo e ícone antimilitarista– é alvo de um ataque por Tony Shafrazi que nela escreveu, com tinta em spray, “Kills Lies All”. O ataque à obra de Picasso, à data ainda no MoMa, em Nova Iorque, surge na sequência do perdão concedido pelo Presidente Nixon ao soldado William Calley, envolvido no massacre My Lai no Vietname.


Os ataques a que temos vindo a assistir pouco ou nada têm de novo para além da sua motivação, aliás, já no antigo Egipto, ou durante o período bizantino, se atacaram objetos artísticos em protesto. Torna-se, todavia, oportuna uma reflexão sobre os atos de vandalismo mais recentes pela frequência com que têm sucedido– o que significa isto para os nossos museus? Está o acesso à cultura artística, como o conhecemos, em causa?


  • A função dos nossos museus


Diz Hannah Arendt em Kultur und Politik que o Homem deve poder contar com o produto criado, isto é, com o objeto cultural, a fim de assegurar (...) a transitoriedade da vida mortal, precisa de um espaço perene, que o ultrapasse”. Confiamos aos nossos museus o que de mais valioso temos – o único veículo de acesso à posteridade, o único elemento que liberta a humanidade da passagem inexorável do tempo, da sua mortalidade e da sua (consequente) circunscrição no tempo. A arte é perene. É esta a função do património cultural e a sua preservação cabe aos nossos museus. Os “vândalos inconscientes” ou “intrépidos ativistas ”– conforme lhes escolha chamar o leitor – responsáveis pelos ataques nos últimos meses, subestimam gravemente a fragilidade das obras insubstituíveis de que fazem alvo. Será de notar, também, que nada nos garante que os próximos ataques da Just Stop Oil, da Last Generation ou de outras organizações que tais incidam sobre obras protegidas por vidros – até onde vai a vontade de chocar?


Numa declaração conjunta que une os dirigentes de mais de 90 museus, o ICOM- International Council of Museums identifica como função dos museus “colecionar, investigar, partilhar e preservar”. Vejamos então o impacto destes ataques nestas duas últimas funções: nos últimos anos, o objetivo da partilha tem sido desenvolvido sob novas perspetivas e, fruto de um esforço por parte da União Europeia e da UNESCO, os museus europeus tentam agora reimaginar-se como verdadeiros espaços de diálogo democrático e de inclusão – a título de exemplo, no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, os textos de parede são agora acompanhados de uma versão “acessível” numa linguagem simplificada e no Kunsthistorisches Museum, em Viena, os visitantes cegos podem participar em visitas guiadas interativas que recorrem ao tato.


O esforço no sentido da promoção de uma cidadania cultural assente no pluralismo e na valorização da diferença vê-se minado pelo discurso estéril a que recorrem os autores destes ataques com chavões como “O que vale mais, a arte ou a vida?”, ignorando como o conhecimento e o acesso às grandes obras da humanidade é a melhor ferramenta que temos para a necessária construção de novas narrativas. Não faltará a estes ativistas alguma visão? A cultura é um modo de sair de si e colocar-se no lugar do outro, é um veículo ideal no reconhecimento da multiplicidade de vozes – destruí-la é negar a democracia.


Os ataques dos últimos meses exigem urgentemente um reforço na segurança dos museus, em causa está o património da Humanidade. Os museus são por excelência os “guardiões” do nosso património – já vimos, a eles cabe a função de preservar. Têm vindo a ser implementadas medidas cada vez mais restritas no acesso aos museus: não entram mochilas, não entram casacos grandes, e nalguns museus, não entram telemóveis ou máquinas de filmar. O número de obras encaixotadas por um vidro protetor aumenta, o que é triste – a experiência visual e estética é completamente alterada pelo vidro que reflete a luz da sala, a obra observada deixa de corresponder à obra criada. Os museus são forçados a correr o risco de tornar as suas salas em verdadeiras celas para obras de arte e a abdicar da criação de espaços de encontro e comunhão entre pessoas. É nesse sentido que o ICOM termina o seu comunicado dizendo que “os museus são espaços onde pessoas oriundas de uma grande variedade de tradições culturais se encontram (...) é por isso mais relevante do que nunca continuar a advogar pelo acesso direto ao património cultural e pela manutenção dos museus como espaços para um diálogo livre em sociedade”.


Urge ainda refletir sobre a situação profissional dos vigilantes de museus, encarregues de uma função de enorme importância que requer competências muito específicas – os guardas de museus participam amiúde nas montagens das exposições, têm contacto direto com o público. A sua atividade é, no entanto, profundamente desgastante, especialmente quando são forçados a trabalhar horas a mais pela falta de pessoal contratado. Aliás, não raras vezes encontramos salas fechadas nos principais museus deste país por “falta de vigilância”.


A Carta de Porto Santo, redigida no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, define como cultura um “conjunto de sistemas simbólicos nos quais estamos inseridos e que nos ajudam a dar um sentido à experiência (pessoal e coletiva) e uma forma humana ao mundo. Materializa-se nas manifestações simbólicas, artísticas e patrimoniais das comunidades e envolve a tradição herdada e a criação contemporânea, sendo um processo criativo coletivo contínuo em que estão envolvidos todos os membros de uma sociedade.” Este jogo perigoso de choque e de provocação ameaça muito mais do que as molduras e as paredes vítimas de uma qualquer lata de tomate, o acesso progressiva e justificadamente vedado aos espaços culturais, causado por estes ataques, coloca em causa toda a identificação e construção da nossa humanidade com base no património cultural e artístico.


Ana Neri Moreira

Redatora do Departamento Cultural


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