A 16 de novembro de 1922 nasceu, na Rua da Alagoa de Azinhaga, filho e neto de camponeses sem terra, um dos mais ilustres nomes da literatura portuguesa. Chamava-se José de Sousa Saramago.
“Nós somos muito mais da terra onde nascemos [e onde fomos criados] do que imaginamos” (La Provincia, Las Palmas, Canárias, 28 de março de 2009)
De Azinhaga para Estocolmo, em 1998, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura sendo, até à data de redação deste artigo, o único português a conseguir tal feito.
Estudou para ser serralheiro mecânico. Foi, além de serralheiro, administrativo, funcionário público, tradutor, jornalista. Foi argumentista, cronista, dramaturgo, poeta e escritor. E, com razoável probabilidade, uma das mentes mais brilhantes que passou pelo burgo a que damos o nome de país.
“Eu acho que o lugar da transcendência de todas as coisas é o cérebro humano. Está tudo lá, embora não saibamos bem como funciona.” (El Mercurio, Santiago do Chile, 20 de novembro de 1994)
1. AS INTERMITÊNCIAS DO ESCRITOR: DO INÍCIO INSTÁVEL À ACADEMIA SUECA
As livrarias cruzaram-se com as palavras de Saramago, pela primeira vez, com Terra do Pecado (1947). Na década seguinte, escreveu poemas, narrou contos, esporadicamente publicados, e esboçou novos romances.
“Escrevi um romance aos 25 [anos] e, depois, mais nada até que, já depois dos 50 anos, perdi o meu trabalho de jornalista no Diário de Notícias e decidi que era o momento de me consagrar à escrita. Quando me perguntam porque é que passei tantos anos sem escrever, respondo sinceramente que não tinha nada para dizer” (Entrevista a Xavi Ayén, janeiro de 2006)
Vinte anos passados, é editado e publicado Os Poemas Possíveis (1966), o seu primeiro livro de poesia. Continuou a escrever crónicas, poemas, peças de teatro e romances na década seguinte.
“Se é verdade que o 25 de abril libertou o escritor, o mais importante é que o 25 de abril libertou a escrita dentro do escritor” (O Ferroviário, Lisboa, 1982)
A década de 80 marcou uma viragem na sua carreira literária. Com Levantado do Chão, inaugurou e abriu caminho para o estilo saramaguiano.
“A impressão que me dá é esta: essa imagem de estilo pessoal que as minhas coisas dão talvez resulte de eu escrever muito livremente. Não escrevo para satisfazer os ditames ou as regras da técnica A ou da escola B. Escrevo um pouco como quem respira, como quem fala.” (Tempo, 7 de janeiro de 1982)
Publicou, ainda nessa década, Que Farei Com Este Livro?, a peça de teatro onde fala de Camões – que, diz, tentou trazer “até junto de nós para projetar alguma luz reveladora sobre o presente” (Diário de Lisboa, Lisboa, 14 de abril de 1981) –, Viagem a Portugal (1981) e Memorial do Convento (1982). Este último valeu-lhe a atribuição dos Prémio Pen Club e do Prémio Literário do Município de Lisboa. Veio a ser publicado nos Estados Unidos em 1985.
Em 1984, deu a conhecer O Ano da Morte de Ricardo Reis, que lhe valeria uma nova temporada de prémios; dois anos mais tarde, A Jangada de Pedra; e, finalmente, em 1989, contou a História do Cerco de Lisboa.
A década de 90 reservou ao autor diferentes desafios. Em 1991, publica O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Considerado ofensivo e atentatório da moral cristã, o governo português vetou a sua candidatura ao Prémio Literário Europeu, em 1992. Reconduzindo a decisão à censura, Saramago deixou a Ocidental Praia Lusitana para se fixar na ilha de Lanzarote, nas Canárias, em Espanha, onde permaneceu até morrer.
Continuou a escrever. Continuou a vingar e a ser reconhecido a nível europeu. Em 1995, publica Ensaio Sobre a Cegueira e vence o Prémio Camões, o mais importante da língua portuguesa; em 1997, edita o Conto da Ilha Desconhecida.
Corria o dia 7 do décimo mês de 1998. No dia seguinte, morreu gente e nasceu o primeiro Nobel português: a 8 de outubro de 1998, José Saramago era anunciado Prémio Nobel da Literatura. Inaugurou o discurso pronunciado na Academia Sueca, em dezembro desse mesmo ano, com “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.” e terminou dizendo “A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.”
Deu a ler, ainda, livros como A Caverna, A Maior Flor do Mundo, O Homem Duplicado, As Intermitências da Morte, entre outros. Foram ainda publicados diversos títulos póstumos.
“Não sinto o peso do Nobel. Escrevo como se não o tivesse. Escrevo como se não tivesse que provar que o mereci. Escrevo como escreveria provavelmente se o não tivesse tido” (Público, Lisboa, 11 de novembro de 2005)
2. AS PEQUENAS (GRANDES) MEMÓRIAS DA SUA OBRA
“O que eu quero é que o leitor, quando se encontrar com um livro meu, quando o ler e chegar ao fim, possa dizer: conheci a pessoa que escreveu isto. Embora eu não defenda um confessionalismo na literatura, interessa-me dizer: aqui estou eu, é isto o que eu penso, é isto o que sinto. Para mim, é muito importante que o leitor possa dizer: este livro tem uma pessoa lá dentro, e que essa pessoa é o autor de toda essa diversidade de coisas com que se faz um romance” (La Nación, Buenos Aires, 21 de janeiro de 1996)
Autor de uma obra vasta, interventiva, irónica, melancólica, reflexiva, proclamava que escrevia para desassossegar.
Dizia que “a obra é o romancista”, sendo que o seu narrador tomava as rédeas da prosa dos seus romances, levando em si mesmo “uma pessoa dentro”: o autor.
“O narrador não existe, é uma invenção académica […] O autor usa o narrador da mesma forma que usa as personagens, coloca-o lá para dizer o que se passa. […] E se calhar, o leitor não lê o romance, mas sim o romancista. E no fundo, é isso que interessa saber: quem é esse senhor que escreveu isso” (Época, Madrid, 21 de janeiro de 2001).
Marcou pela obra irreverente, quer nos temas escolhidos, quer no tom selecionado para os narrar. Com efeito, Saramago escreveu livros com motes simples – era uma vez um Palácio, a história de quem o construiu e de quem nele viveu; era uma vez uma cegueira que afetou toda a gente de forma súbita; era uma vez um país onde, um dia, não morreu ninguém –, mas que prezaram pela eloquência com que foram desenvolvidos, num estilo incomparável, inconfundível e jamais alcançável por outro.
“Se usasse constantemente sinais gráficos de pontuação seria como se estivesse a introduzir obstáculos ao livre fluir desse grande rio que é a linguagem do romance, como se estivesse a travar o seu curso. No fundo, é como se escrever fosse narrar.” (O Diário, Lisboa, 21 de novembro de 1982)
“Escrevo como se fala. E direciono-me mais para a natureza do que para a sofisticação. Vim do povo e sei como ele sente e pensa. São histórias que se conta e se ouve que coloco nos meus romances.” (Segundo Caderno, Porto Alegre, 26 de abril de 1989)
Mas é também inegável que as personagens são um traço vincado na obra saramaguiana, mormente, a mulher – de que Blimunda (Memorial do Convento), a mulher do médico (Ensaio Sobre a Cegueira) e Lídia (O Ano da Morte de Ricardo Reis) são exemplos.
“Se alguma vez alguma personagem minha ficar na memória das pessoas, será a de uma destas mulheres, e não é por eu predeterminar o seu carácter, ou agir mediante estratégias prévias. O carácter destas mulheres nasce naturalmente no meio da situação concreta que estou a narrar. Certa vez alguém me perguntou: «Mas porque é que escolhe sempre uma mulher?» E eu respondi: «O senhor acha que um homem teria feito tudo o que essa mulher fez?»” (ABC, Madrid, 9 de agosto de 1996)
3. O HOMEM DUPLICADO: DO SARAMAGO-ESCRITOR AO SARAMAGO-LEITOR
Por detrás de um grande escritor, está, inevitavelmente, um grande leitor. Saramago aprendeu as primeiras letras, desenhando-as numa ardósia, em 1928. Foi leitor autodidata na Biblioteca Municipal do Palácio das Galveias, em Lisboa. Começou a ter (poucos) livros em casa apenas aos 18 anos.
“Influências? Não sinto que as tenha. Mas tive grandes amores literários que, de uma forma ou outra, poderão ter passado para a minha escrita” (Diário de Lisboa, Lisboa, 30 de outubro de 1982)
Na literatura nacional, disse que teve como mestres o Padre António Vieira, que considerava “o maior escritor da nossa língua” (Setembro, Lisboa, n.º 1, janeiro-março de 1993) – nas suas palavras, “nunca se escreveu em língua portuguesa com tanta beleza como ele o fez” (ABC, Madrid, 9 de outubro de 1998) – e Francisco Manuel de Melo. Destacou ainda os nomes de Raul Brandão, a quem elogiava a obra Húmus, Almada Negreiros, que considerou “o responsável pela segunda revolução estilística da nossa língua e da nossa literatura” (Uma Viagem Longa com José Saramago, Porto Editora, Porto, 2009) e Almeida Garrett – afirmando “a leitura das Viagens na Minha Terra teve muita influência para mim. Aliás, devíamos ler mais Garrett. Por exemplo, os Discursos Políticos são um deslumbramento, quer na linguagem, quer na sua articulação do raciocínio político, quer no aspeto da polémica. São uma lição de português, de uma riqueza inesgotável” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, n.º 994, 4-18 novembro de 2008), sem esquecer, evidentemente, Fernando Pessoa, cujo primeiro heterónimo que leu foi Ricardo Reis, e cuja poesia considerava “realmente fascinante” (Revista Trespuntos, Buenos Aires, 14 de outubro de 1998).
No plano internacional, demarca os nomes de Montaigne, Cervantes, Gogol, Jorge Luis Borges e Kafka. Quanto a este último, por quem tinha assumidamente uma veneração, disse que “exprimiu de uma forma clara a grande missão da arte na sociedade quando diz que não vale a pena escrever nada (também exagera, não sejamos tão radicais…) que não seja um machado que rompe o mar gelado da nossa consciência. Se pensarmos na grande obra de arte, seja ela literária, musical, pictórica, filosófica […], o objetivo foi sempre esse, quebrar o mar gelado da nossa consciência: são os preconceitos, as superstições, a dificuldade de enfrentarmos a realidade e inventarmos coisas que se sobrepõem a ela, que a ocultam e a deturpam” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, n.º 873, 17 de março de 2004).
Elencou Homero, Cervantes, Dante, Shakespeare, Camões e Dostoievski como os “grandes criadores do passado”, a quem reconhecia “excelência de pensamento e abundância de beleza”, pese embora não tenham estado “na origem de qualquer transformação social efetiva, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e de geração” (La Provincia, Las Palmas de Gran Canaria, 11 de março de 1993).
Travou amizade com outros escritores, de entre os quais se destaca o brasileiro Jorge Amado. A correspondência que trocaram acabou por ser compilada, originando o livro Com o Mar Por Meio (Companhia das Letras, 2017). Aquando do anúncio do Nobel, Amado e Zélia Gattai expressaram a sua satisfação “porque José Saramago é um dos escritores que mais o merece. O Nobel faz finalmente justiça à língua portuguesa. Ficamos duplamente felizes porque foi concedido a um grande e querido amigo”.
Por fim, resta a pergunta: e porquê ler estes autores, porquê ler estas obras, para que serve a literatura? Saramago responde que “não existe resposta possível. Ou então há infinitas: a literatura serve para entrar numa livraria e para nos sentarmos em casa, por exemplo. Ou para ajudar a pensar. Ou para nada. Porquê esse sentido utilitário das coisas? Se temos de procurar o sentido da música, da filosofia, de uma rosa, é porque não estamos a entender nada” (Clarín, Buenos Aires, 20 de outubro de 2007).
“A literatura tem influência em pessoas. Mas o termos à nossa disposição o Cem Anos de Solidão há tantos anos mudou alguma coisa? Não. A literatura é uma aventura pessoal. É como se nos deixassem numa ilha deserta e tivéssemos de fazer as nossas próprias descobertas, abrir caminhos, procurar fontes.” (El Tiempo, Bogotá, 9 de julho de 2007)
“Continuarei a dizer que a literatura não muda o mundo, mas cada vez mais vou tendo razões para acreditar que a vida de uma pessoa pode ser transformada por um simples livro” (Último Caderno de Lanzarote, 2018)
4. MEMORIAL DO ESCRITOR: SARAMAGO PARA QUÊ E COM QUE SENTIDO
À pergunta “como é que quer ser recordado?”, respondeu: “Se calhar vou pedir o impossível: eu considero-me boa pessoa. Então, que nem a pessoa que sou apague o escritor que também sou, e que nem o escritor que sou apague a pessoa que sou. Se calhar é muita sorte alguma destas ficar. Que fiquem as duas, é capaz de ser impossível”.
Na comemoração do seu centenário, discorremos sobre o Saramago-escritor, Saramago-leitor, Saramago-pensador, Saramago-político, Saramago-cidadão. Nos 87 anos em que permaneceu neste planeta, agraciou o mundo literário, contribuiu para discussões sociais e deixou ensinamentos que persistem – e persistirão – tantos anos após a sua partida.
Para quê e com que sentido ler (e apreciar) a obra de Saramago, em 2022? Para sentir o desassossego, a inquietude, a interrogação que ele quis semear e fomentar no leitor. Fundamentalmente, para ficarmos certos que ser dono de incertezas não é incomum e que as interrogações são mais vantajosas que os pontos finais: “a minha posição é a de constante interrogação”. Como sumaria, e bem, Pilar del Río, a obra de Saramago mantém-se atual e continua a fazer sentido divulgá-la “porque José Saramago é um autor contemporâneo”, cujas obras estão integradas “na forma de pensar e de sentir de cada um” (Público, 16 de novembro de 2022).
No documentário José e Pilar (Miguel Gonçalves Mendes, 2010), ouve-se o Nobel originário de uma aldeia no Ribatejo a dizer: “Um dia desaparece o Sol... e acabou. E o Universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O Universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada.” – mas saberá sempre que Saramago cá esteve, porque “deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade”. Marcou – e continuará a marcar – gerações de leitores e pensadores, que continuarão sempre a ver nas suas palavras o pedaço de inquietação que ele quis deixar no mundo.
“As palavras levam consigo a sabedoria do vivido.” (Público, Madrid, 20 de novembro de 2008)
Martina Pereira
Departamento Cultural
Este artigo foi desenhado com a ajuda das seguintes fontes:
SARAMAGO, José, citado em AGUILERA, Fernando Gómez, José Saramago nas Suas Palavras. Edições Caminho, Alfragide, 2010
RIBEIRO, Anabela Mota, Por Saramago, Temas de Debates, Lisboa, 2018
Fundação José Saramago (em linha <https://www.josesaramago.org/>
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