Portugal : o Golpe de Estado é apenas o começo, por Marvine Howe (The New York Times, Nova Iorque, 16 Jun. 1974)
O legado económico
“A dificuldade mais maniatante é o estado desastroso a que chegou a economia, provocado pelas longas e desgastantes guerras coloniais e uma política económica ultraconservadora. O velho Portugal subsistia graças à mão-de-obra barata e submissa, aos mercados coloniais reservados, aos valores remetidos pelos emigrantes e ao turismo. Com a libertação, pela primeira vez em gerações, os trabalhadores exigiram aumentos de salários na ordem dos 100% a 300%. As colónias rejeitaram a sua condição de subordinadas e exigiram preços à escala internacional para as suas mercadorias. Os emigrantes, receosos da nova instabilidade, deixaram de mandar dinheiro. Os capitalistas, atentos à vaga socialista que acompanhou o golpe militar, refreiam os investimentos, e os turistas, já afetados pela crise de energia, alarmaram-se com o golpe de Estado e ficaram nas suas terras.”
O regresso do riso
“O país mudou dramaticamente a sua feição depois do golpe militar, o que é patente sobretudo na liberdade de expressão. Não é só a foice e o martelo e os “slogans” revolucionários pintados nas paredes e estátuas das cidades. É o povo português, anteriormente o mais moderado e mais melancólico do mundo, que agora ri, incita e grita. A questão fundamental que se levanta agora é se o povo e o movimento militar saberão cooperar com a democracia. Desapareceu a censura, mas permanece a autocensura e a imprensa coíbe-se geralmente de atacar o general Spínola, as Forças Armadas ou o Governo. Até as revistas e os espetáculos burlescos, que satirizavam, ainda que levemente, o antigo regime, evitam fazer graça com o general Spínola ou qualquer dos atuais governantes. (...) Muitas pessoas perguntam: saberão os Portugueses estabelecer os limites?”
Excertos retirados de Hemeroteca Digital - O 25 de Abril na imprensa estrangeira
@RTP
Poder militar em Portugal, pelo Padre Adrian Hastings (The Times, Londres, 29 Mai. 1975)
Exmo. Senhor: Como um dos que simpatizaram profundamente com todo o curso da revolução portuguesa desde Abril de 1974, e como alguém que repetidas vezes defendeu a sinceridade, bom-senso e manifesta brandura da sua chefia militar contra as críticas apressadas e mal informadas, possa eu dizer isto àqueles chefes enquanto se encontram na base de decisões provavelmente irreversíveis:
É perigoso exagerar a «legitimidade» que o Movimento das Forças Armadas adquiriu pela revolução, assim como é especioso exagerar a imaturidade política do povo português para justificar a longa permanência do poder militar. Derrubastes Caetano porque só vós tínheis as armas. Iludis-vos se pensais que isto vos dá uma garantia permanente para serdes os verdadeiros porta-vozes do conjunto da nação. Esse foi o vosso papel no ano passado, pode sê-lo ainda hoje, mas poderá deixar de o ser amanhã. O povo português não deu provas de querer um poder militar semipermanente nem um partido político único à maneira do Terceiro Mundo, o braço civil do exército, e se vos comprometeis a tal linha, ireis, pouco e pouco, encontrar-vos tão impopulares e tão necessariamente tiranos como Salazar e o seu partido único, a União Nacional. Apesar das vossas boas intenções e reformas genuínas, tereis assumido a posição dos herdeiros e não dos demolidores do fascismo.
Não esqueçais a história do vosso próprio passado. Enquanto Mário Soares e Álvaro Cunhal estavam na prisão ou no exílio, estáveis levando a cabo a política africana de Salazar e Caetano. Como só vós sabeis demasiado bem, as maiores atrocidades dos seus regimes deram-se em África, e o exército esteve profundamente envolvido tão profundamente que desde Abril de 1974 nunca fostes capaz de, por vós próprios, os investigar. Muitos de vós sabem porquê. Não julgueis que o espírito do fascismo foi totalmente erradicado do vosso próprio espírito por algum aceno de varinha esquerdista.
E não vos esqueçais do exemplo do Chile. Existem já muitos oficiais portugueses no exílio e muitos outros que dentro do país os teriam apoiado. A preservação da revolução contra a contra-revolução depende em última análise de uma coisa: o verdadeiro apoio da maioria nacional. O Partido Socialista não apoiará um contragolpe, nem o fará o P. P. D. Mas se estes partidos forem levados para a oposição ou efectivamente silenciados, muitos dos seus simpatizantes talvez o façam. E 70% da nação votou socialista ou à sua direita em Abril.
Se quereis um golpe de direita esta é a maneira de o propiciar: destruam os socialistas e o P. P. D., silenciem o República e o Expresso, insistam na imaturidade política do povo português, hostilizem o norte rural, a classe média e a Igreja. Que trágico fim seria para uma das mais admiravelmente humanas revoluções da história.
Vosso,
Adrian Hastings
St Edmund's House, Cambridge, 26 de Maio.
Excerto retirado de Hemeroteca Digital - Portugal na imprensa estrangeira - um ano depois
Reportagens de Gabriel García Márquez, no pós-revolução: “Portugal, a maior aldeia do mundo”
As reportagens foram publicadas em Julho de 1975 na revista Alternativa, um semanário fundado por si e por um grupo de intelectuais de esquerda, em Bogotá, e resultaram de uma visita a Lisboa, que começou a 1 de Junho desse ano. Na capital portuguesa, falou com as figuras mais relevantes do panorama pós-revolução: Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho, José Saramago. Das ruas de Lisboa, Gabriel García Márquez descreve um país a viver num bulício social, político e cultural, onde “toda a gente fala e ninguém dorme”, onde há ministros que marcam reuniões para a madrugada. Depois de décadas de uma “ditadura medieval”, o autor também notou uma explosão do erotismo na sociedade portuguesa: “O erotismo invadiu os cinemas, os quiosques de jornais, fazendo com que milhares de espanhóis atravessem ao fim de semana a fronteira para poderem ver o filme mais proibido em Madrid, O Último Tango em Paris".
Gabriel García Márquez termina o conjunto de reportagens com a convicção que os militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) conseguiriam "inventar esse socialismo à portuguesa". "O desafio é enorme, mas estou convencido, modestamente, que vão consegui-lo", concluiu. Não obstante, o escritor, que viria a ser Nobel da Literatura de 1982, pressagiou que Portugal estaria condenado a “sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos do mundo”.
Baseado em As reportagens de Gabriel García Márquez na "maior aldeia do mundo" | Literatura | PÚBLICO
Isabel Lobo
Departamento Sociedade
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