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Foto do escritorJosé Santos

A besúgó: lutar pela liberdade ou sucumbir à repressão?

Atualizado: 12 de out. de 2022


“Aconteça o que acontecer, nunca te oponhas ao sistema” – ironicamente, são estas as palavras que inspiram uma criança a tornar-se num jovem revolucionário; isso e uma sentença de morte. Calma, estarei a antecipar-me logo na introdução? Não. Demeter raramente tem tempo para pensar durante os oito episódios que compõe a série húngara da HBO Max A besúgó”. O leitor, para entrar já no espírito dos anos oitenta, em plena Guerra Fria e Cortina de Ferro, também terá de compreender que o tempo é escasso e a vida de dois jovens adultos que, por casualidade, foram colegas de infância, são suficientes para criar um drama histórico (latu senso) fulgurante, que nos capta de início ao fim, seja pelo thriller constante, pelas personalidades das personagens ou pelas reflexões políticas. Poucas séries internacionais chegam ao mainstream market e conquistam a popularidade do público; esta produção da HBO Max, no entanto, fez o impossível: colocou a Hungria no topo do “pequeno ecrã”, com um mérito inigualável.





Os primeiros momentos do enredo são straightforward e bastante significativos para quem muito recentemente passou pelo mesmo: um jovem despede-se da família e da pequena aldeia para rumar à universidade. Aqui conhecemos Demeter (ou Geri, a alcunha do nosso co-star), um campeão de xadrez que decide estudar Economia no fictício “Kilián Kollégium”; o problema surge cedo e espanta-nos: o irmão mais novo sofre de uma condição pulmonar rara e necessita de medicação específica que apenas é importada pelo governo (estamos, relembro, na Hungria dos anos oitenta, submetida pelo Komintern ao jugo de Moscovo); esta situação de vulnerabilidade é aproveitada pelos serviços secretos húngaros, personificados no agente Imre Kiss que, desde o primeiro ao último episódio (com algumas peripécias pelo meio) chantageia Geri para obter informações sobre um grupo de jovens revolucionários que ameaçam o partido único e a “democracia” do país. Esse grupo é liderado por Száva Zsolt (colega de Geri no infantário e o nosso segundo co-star), o clássico e estereotipado jovem revolucionário: excelente orador, ladies' man, intransigente nas suas crenças e disposto a fazer tudo para dar aval ao seu plano para libertar o país.

Dito tudo isto, e sabendo que existem milhares de produções à distância de um clique para serem vistas em streaming, que terá A besúgó de singular; de que forma se destaca num mar de infinitas possibilidades? Da minha perspetiva – ávido consumidor de séries – trata-se de uma combinação de vários fatores, uns já conhecidos pelo seu sucesso, e outros únicos e específicos desta produção; comecemos pelos primeiros.


Todo o argumento revolve à volta de Geri e da sua capacidade para obter informação ao longo dos oito episódios; mas este fá-lo num meio periclitante, to say the least. Ou seja, e como aludi na introdução, Demeter nunca tem tempo para respirar: ora conspira para obter a informação pretendida pelo governo, ora tenta desembaraçar-se da chantagem e ajudar o grupo a chegar aos seus últimos objetivos; isto remete-nos para cenas sherlokianas, onde sentimos que a inteligência peculiar de Geri está sempre um passo à frente do resto (aqui encontramos o familiar, a característica de outros grandes protagonistas, tais como Michael Scofield, Thomas Shelby, Jimmy McNulty, Frank Underwood, entre muitos outros). Logo no primeiro episódio, para ganhar a confiança de Zsolt (uma conquista árdua, dada a desconfiança natural do jovem líder), denuncia-o anonimamente à polícia (pela posse de cartazes subversivos) e simultaneamente avisa-o da chegada da mesma, colocando-se em risco e dando-lhe a entender que a luta também é sua. Como esta situação existem inúmeras ao longo da série, deixando-nos sempre, desculpem o centésimo anglicismo, on the edge of our seat. Claro que juntamente ao thriller baseado na inteligência do protagonista, não poderia faltar outro dos elementos mais comuns no sucesso de uma série: o drama entre relações amorosas. Aqui tanto Geri como Zsolt entram em cena: Geri não escapa ao cliché de génio incompreendido; tem uma notória dificuldade em falar com mulheres, no entanto, deambula entre uma relação platónica com Kata (namorada de Zsolt) e uma crush na jovem Judit Kiss (sim, o nome Kiss não é coincidência; Geri, sem saber, apaixona-se pela filha do agente que o extorque durante toda a série). Zsolt, por sua vez, passa de uma relação estável (mas tóxica) com Kata para um romance fulguroso com Adél (membro dos Jovens Comunistas e rival num debate político). O desmoronamento do primeiro dá-se pela única razão possível, um desentendimento na forma como o grupo deveria atuar, vulgo, pela ação revolucionária – o centro da vida de Zsolt; o segundo inicia-se num primeiro contacto marcado por uma tensão sexual enorme e se desenvolve pela atração intelectual que à primeira vista nos pareceria impossível: um jovem que tem como único objetivo de vida acabar com o regime apaixona-se por uma rapariga membro e cúmplice desse regime? Aparentemente.


Ora, conhecendo estes ingredientes indispensáveis, ou pelo menos extremamente necessários, para captar o grande público, compreendemos a superficialidade da trama, mas a verdadeira mensagem encontra-se em pequenos diálogos que fazem desta produção um must watch. Não me mal interpretem, não teço critica alguma aos elementos corriqueiros e dramáticos da série; fazem parte integrante do prazer que obtemos ao passar algumas horas frente ao computador (ou à televisão). Não obstante, sou da opinião que algumas séries merecem um olhar mais atento, uma análise um pouco mais além do evidente, para ficarmos não só com uma sensação de regozijo ao longo dos episódios, mas também com o sentimento de significância, mais permanente e duradouro.


Portanto, que retiramos de A besúgó? Os aproximadamente trezentos e vinte minutos de ação deste grupo de jovens trata-se, nada mais e nada menos, duma ode aos heróis da revolução de 1956 – lembrar que esta foi, para Camus, a verdadeira revolução socialista da história, não pelas suas raízes dogmáticas, mas pela organicidade e autenticidade da mesma face a um Estado repressor. O leitor talvez estará confuso (e com a sua quota de razão); a série não se passava nos anos oitenta? Sim, sem dúvida. Mas a trama concretiza, demonstra e homenageia, de certa forma, a luta que três décadas antes fora feita pelos seus antepassados. Os pontos de debate e discussão são os mesmos; a reclamação e o objetivo final, também: Liberdade. Mas a liberdade tem um preço, e Geri apercebe-se disso: “Sabem que o calcanhar de Aquiles de toda a gente é a família. E têm razão. A liberdade é ótima, mas não à custa dos nossos entes queridos.” Ou seja, na mão dos dois protagonistas compreendemos a dualidade e a luta interna que os consome: lutar pela liberdade ou sucumbir à repressão? Ambos e nenhum. A resposta é paradoxal porque a escolha é impossível; a abstração e o idealismo acabam quando começam as escolhas com impactos reais na vida do Homem. Queremos acreditar que ambos desejam lutar pela liberdade – e fazem-no! – mas não descuramos que Zsolt luta porque não teme o futuro, é literalmente um cadáver adiado que procria (devido a uma doença cardíaca incurável que, a qualquer momento, pode resultar no seu último suspiro) e, sem adiantar o final, percebemos que o amor fá-lo fraquejar (não totalmente, mas coloca-o numa situação em que nunca pensou estar: escolher entre a luta e o coração); Geri, no entanto, sempre se dedicou a salvar o irmão. Esse valor e sentido de missão sobrepunha-se a todos os outros. A Liberdade do país era-lhe importante? Claro. Passou imenso tempo e gastou inúmeras energias a conspirar contra o regime? Sem dúvida. Uma Hungria livre não o teria obrigado a perder um campeonato de xadrez contra um soviético por questões políticas; uma Hungria livre daria um futuro melhor ao irmão. Mas a realidade é outra e o pragmatismo de Demeter não deixa rasto para dúvidas: o mundo injusto não lhe permite almejar e lutar incondicionalmente por uma Hungria diferente; fá-lo por necessidade, não por desígnio.


É com isto que ficamos. Com a dor de dois jovens e de uma geração que só desejava ser responsável pelo seu próprio destino. Acompanhem pelo thriller ou pela mensagem, mas não deixem de dar uma oportunidade a esta série húngara que me surpreendeu de início ao fim.


Nota: devido à fusão da Discovery com a WarnerMedia que veio alterar a ownership e controlo da HBO Max, esta série (e várias outras da HBO Europe) deixaram de estar disponíveis na plataforma devido a uma tática para “salvar” custos em licenças e para “libertar o catálogo”. Isto, claro, à custa da qualidade e diversidade das produções internacionais – vulgo, não americanas. A série encontra-se agora sem plataforma streaming oficial, mas ainda disponível no mundo infindável que é a internet.


José Santos

Departamento Cultural


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