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A prosa silenciosa de mundos vazios.

  • Foto do escritor: Gonçalo Pinto
    Gonçalo Pinto
  • há 2 dias
  • 5 min de leitura

Aquela imagem na minha tela sussurrava melancolia e aquele ambiente outrora luminoso gritava em cores cinzentas e mortas. Sem qualquer palavra dita, eu sabia o que se passara ali, ou, pelo menos, entendia um pouco mais. 


Apenas desta forma alguém consegue descrever o momento em que a ilusão de Anor Londo se quebra e é revelado que já não era uma cidade divina em que imperava o dourado, mas sim apenas os resquícios desse esplendor. Nos dias em que o jogo Dark souls se passa, esta cidade fictícia está destruída, os seus habitantes não passam de espectros do passado, e Gwyndolin, o filho mais novo do antigo soberano, Gwyn, guarda a mesma, mantendo-a numa ilusão de glamour, um fardo sem qualquer propósito.


Esta é apenas uma pequena ponta do iceberg que é o universo de Dark souls, e embora me pudesse estender por seis páginas a explicar a grandiosidade desta história, o passado por trás de todos os inimigos, “Boss fights” e áreas dos três jogos da saga, bem como os seus conteúdos extra, eu iria fugir do ponto principal: Como é que retive estas histórias num universo que pouco explica?


Os videojogos, tal como o cinema, começaram como uma média de imagens. A história, ainda que simples, era contada através dos pixels na tela – ela existia, mas servia apenas como base para justificar o jogo, um motivo que desse sentido à  gameplay


O Super Mario queria salvar a princesa Peach do Bowser, o Sonic queria derrotar Eggman e salvar os animais da Green Hill Zone, o Link queria salvar a Zelda, e por aí em diante, apenas jogos mais simples com músicas características de fundo que tornavam a experiência mais imersiva. Com o tempo, tal como o cinema evoluiu da simplicidade da sua génese, os videojogos também o fizeram, pois surgem sagas como Final Fantasy, com os seus contos épicos, românticos e fantásticos, Resident Evil, com as suas histórias de horror biológico e apocalipses zombie, Metal Gear Solid, com as suas histórias de espiões e conspirações internacionais, entre outras. 


Tudo isto culminou nos dias de hoje, em que certos jogos beiram o equivalente ao cinema, com narrativas complexas e direções criativas. É um universo que se assemelha cada vez mais com a indústria cinematográfica, ao ponto de terem surgido premiações dedicadas a  valorizar atores de voz, direção de arte e até distinguir o melhor jogo do ano.


Num mundo que evoluiu na forma de contar histórias em videojogos, um mundo em que as pequenas histórias simples viraram narrativas ricas e complexas, um homem entra numa desenvolvedora que precisava de um novo rumo, uma empresa que necessitava de encontrar a sua identidade no mundo dos jogos. Esse homem era Hidetaka Miyazaki. Em 2004, ele foi contratado pela FromSoftware, uma desenvolvedora de jogos japonesa onde, de diretor de jogos da saga Armored core, passou para presidente e diretor de todos os lançamentos da empresa. Foi um criador revolucionário por implementar o estilo de jogos “Souls-like”, jogos em que o desafio é elevado de modo a criar a sensação de superação para o jogador – se o personagem do jogador enfrentar um gigante, o desafio será naturalmente maior –, gerando uma sensação de épico, como uma história de David contra Golias, característica dos seus jogos desde o pioneiro Demon Souls até ao mais recente Elden Ring.


Porém, para mim, a característica mais incrível das obras de Miyazaki é o seu modo de contar histórias, que mistura um enredo rico, porém, subtilmente apresentado ao jogador através do seu mundo que este explora, misturando a falta de exposição do passado com os enredos mais complexos do presente, numa espécie de “retro moderno”. 


Começando pelo primeiro jogo deste género, aquele que seria uma experiência com notoriedade suficiente para pavimentar o sucesso futuro, em Demon Souls, tal como em todos os jogos de Miyazaki, a história é contada através de cutscenes com uma narração e banda sonora épicas, descrevendo acontecimentos anteriores aos eventos em que o jogador se encontra. É dito que, num reino de paz, o rei Allant usou de uma magia proibida que libertou demónios antigos e mergulhou o reino numa espessa névoa. Os habitantes tiveram as suas almas sugadas, tornando-se monstros vazios e em constante sofrimento, que matam tudo o que veem. Nada mais nos é diretamente comunicado desta história. 


Apenas nascemos neste ambiente assombroso que é o reino abandonado, cheio de criaturas que nos atacam no meio da névoa e descobrimos através dos diálogos com personagens, através das descrições de itens ou até mesmo recorrendo à pura interpretação da arquitetura e dos ambientes ao nosso redor, o que ali sucedeu, quem são os inimigos e demónios epopeicos que devemos enfrentar. Aprendemos sobre contos de cavaleiros caídos e cultos a dragões, ou sobre pessoas bondosas levadas a fazer o mal através do abuso da sua ingenuidade… Um enredo épico e denso, porém contado de forma não tão verborrágica.


Em 2011 surge o sucessor espiritual desta obra, o tão aclamado Dark souls, que aperfeiçoa a forma de expor os seus contos épicos e macabros. Na primeira entrada desta saga, sabemos apenas que a primeira chama, que dera início à chamada “Era de fogo” no mundo, começara a apagar-se. Na tentativa de a reacender, o rei Gwyn trouxe uma era de escuridão ao mundo, libertando as trevas e demónios na Terra. 


O jogador é o escolhido para reacender a chama e derrotar o antigo rei, agora tomado pela loucura e irá, assim, viver uma jornada tão ou até mais memorável do que no jogo anterior Conhece personagens mais marcantes e curiosos, tal como inimigos trágicos, vítimas das trevas que dominaram o mundo. O próprio rei Gwyn é o boss final do jogo e sentimos pena dele, pois este apenas tentara salvar todo o reino reacendendo a chama, um gesto que acabou por destruir o mundo. Agora, tomado por loucura, ele guarda o local onde a primeira chama existira, e é lá que devemos enfrentar e matar o antigo rei – tudo isto ao som de uma música melancólica que simboliza o sacrifício em vão do soberano.


Por muito que esta forma de narrativa seja algo inovadora, nem sempre Miyazaki a manteve. Em 2019, com Sekiro: Shadows Die Twice, ele tentou uma abordagem mais expositiva e comum na sua forma de contar a história, apresentando um conto de lealdade e perseverança de um shinobi para com o seu senhor, misturando fantasia com realidade. Esta mudança, porém, não retirou a magia e a eficácia do ambiente e do mundo ao redor na explicação das inúmeras histórias daquele universo, tal como já fora mostrado na trilogia Dark Souls, em Demon souls e na horripilante fantasia gótica, inspirada em H.P Lovecraft, que fora Bloodborne. 


Porém, em 2022, Miyazaki aliou-se ao renomado autor de fantasia George R. R. Martin, criando assim Elden Ring, contando uma história de intrigas de poder divinas entre família, intrigas que levariam à quebra do “Elden Ring” e, consequentemente, o mundo à loucura. Como o “maculado”, embarcamos num mundo aberto colossal, sem qualquer direção ou rumo. Pouco sabemos sobre os monumentos ou castelos que se erguem perante nós, sabemos apenas que devemos consertar o “Elden Ring” e restaurar a ordem, tornando-nos no novo “Elden Lord”. 


Também pouco sabemos sobre aqueles que devemos enfrentar: são antigos guerreiros, generais ou senhores de castelos que, após a quebra do Elden Ring, lutaram numa grande guerra pelo controlo de todas as “Terras intermédias” e caíram em batalha ou em desgraça de alguma forma. Vamos defrontando cada um destes inimigos, explorando os locais onde se confinaram e entendendo, assim, o porquê do seu confinamento, da sua queda, e da melancolia e loucura que tolda as suas mentes. 


Sabemos e compreendemos isto, não porque nos é contado de forma expositiva, mas porque o mundo nos mostra através da sua ambientação e excêntricos personagens. Tal como em qualquer obra de Miyazaki, o mundo grita mesmo que de forma silenciosa, ele sussurra de forma audível através do seu silêncio, e se estivermos atentos, descobriremos histórias tão profundas que marcarão o nosso coração e mente.


Gonçalo Pinto

Departamento Cultural


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