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Florbela Espanca, a irmã da Saudade

  • Foto do escritor: Maria Queirós
    Maria Queirós
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura
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No dia 8 de dezembro assinala-se uma data simbólica no universo da poesia portuguesa: o nascimento e a morte de Florbela Espanca. Poetisa emocional e de alma inquieta, Florbela Espanca cantava a paixão, a solidão, o sofrimento e a sensualidade em trabalhosos sonetos, permanecendo até hoje como uma das figuras femininas mais importantes da literatura portuguesa.


Flor Bela Lobo (Florbela d’Alma da Conceição Espanca, como se auto-designa) nasceu a 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, no Alentejo. O início de vida da escritora já anunciava uma certa turbulência que a marcaria. O seu pai, João Maria Espanca, era casado com Maria do Carmo Toscano; porém, devido à infertilidade da última, esta autorizou que João mantivesse uma relação com a camponesa Antónia da Conceição Lobo. Desta relação nasceram dois filhos – Florbela e Apeles –, que foram registados como filhos de mãe solteira e de pai “incógnito”. Apesar de ter crescido com Maria do Carmo como sua madrinha, e ter sido criada também pelo seu pai após a morte de Antónia, João Maria só reconheceu Florbela como sua filha anos depois da morte da poetisa.


Tal como a sua poesia, a vida pessoal de Espanca foi intensa e repleta de desilusões. Nasceu numa situação familiar pouco convencional, num ambiente conservador; casou-se três vezes, e divorciou-se duas delas; sofreu dois abortos espontâneos; e lidou ainda com uma saúde frágil, tanto física quanto mental, ao longo toda a sua vida. Tudo isto, contudo, poderá ter sido a força motriz emocional e fonte de inspiração para uma poesia repleta de confissões.


Com apenas oito anos, Florbela escreveu as suas primeiras composições, entre elas o seu primeiro poema – “A Vida e a Morte” – manifestando já a sua tendência para temas melancólicos e amargos que marcariam a sua obra. Ingressou no Liceu Nacional de Évora, onde permaneceu até 1912, e é durante este período que inicia contacto com as obras de Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Guerra Junqueiro, entre outros. 


Em 1917, completou o curso complementar de Letras e ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sendo uma das poucas mulheres entre centenas de homens que aí estudavam. Esta foi uma decisão ousada que, numa época em que o destino social feminino ainda era significativamente circunscrito ao lar e à maternidade, manifesta um ato de emancipação e afirmação cultural, sendo considerada uma das primeiras feministas de Portugal.


Publicou o seu primeiro livro, “Livro de Mágoas”, em 1919, inspirado nos acontecimentos tumultuosos da sua vida, nas suas frustrações internas e no seu anseio de alcançar a felicidade. Já nesta primeira obra, Florbela demonstra o seu domínio da forma do soneto e exprime, sem qualquer distância ou abstração, aquilo que atormenta a sua alma e que a inquieta. Mais uma vez, num tempo em que as mulheres eram desencorajadas a revelar a sua subjetividade, Florbela opta por fazer exatamente o contrário. Em 1923, publicou a sua segunda obra, “Livro de Soror Saudade”, na qual a intensidade da saudade parece surgir como uma condição da vida.


Em junho de 1927, Apeles Espanca, irmão da poetisa, sofreu um acidente de avião que resultou na sua morte, algo que abalou intensamente a autora e a levou a compor o conjunto de contos “As máscaras do Destino”, apenas publicado postumamente. A sua saúde mental deteriorou-se significativamente e, em 1928, Florbela tenta suicidar-se pela primeira vez.


Em 1930, depois de lhe ser diagnosticado um edema pulmonar e já com uma débil saúde mental, Espanca tenta suicidar-se pela terceira vez, não resistindo, e acabando por morrer por overdose no dia do seu 36º aniversário, em Matosinhos. Pouco depois, foi publicada a última obra que a mesma escreveu: “Charneca em Flor”. Perdeu o mundo, nesse dia, uma “alma sonhadora”, como lhe chamou Fernando Pessoa no poema “À memória de Florbela Espanca”.


Até hoje somos lembrados do legado de Florbela Espanca, através de instituições com o seu nome, como é caso da Biblioteca Municipal Florbela Espanca, em Matosinhos, e por novas abordagens à sua arte, como é o caso da música “Perdidamente”, da banda portuguesa Trovante, uma adaptação musical do seu poema “Ser poeta”. 


Os seus versos perduram no tempo, como uma imortalização daquilo que ela sentiu, pensou e sonhou. Num mundo cada vez mais apático, em que a manifestação mais pura de emoção é vista como fraqueza, exagero ou embaraçoso, Florbela Espanca continua a romper convenções, mostrando a beleza e a intensidade da capacidade de sentir. Celebrar o dia 8 não é apenas celebrar o nascimento e a despedida da artista, mas é também celebrar a ousadia e liberdade da sua poesia e da expressão da nossa alma.


“Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada!


Quantas morrem saudosa duma imagem.

Adorada que amaram doidamente!

Quantas e quantas almas endoidecem

Enquanto a boca rir alegremente!


Quanta paixão e amor às vezes têm

Sem nunca o confessarem a ninguém

Doce alma de dor e sofrimento!


Paixão que faria a felicidade.

Dum rei; amor de sonho e de saudade,

Que se esvai e que foge num lamento!”


  • “A Mulher”, Florbela Espanca


Maria Queirós

Departamento Cultural

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