A racionalidade do ser humano só é superada pelo seu engenho e durante toda a condicionalidade antropocêntrica aventurou expressar-se (e reinventar-se) através de algo que consciencializasse os substratos da sua própria fala.
Desde meros logogramas nas paredes de grutas e afins, passando pela descoberta do papiro, até à invenção de Gutenberg da imprensa, não esquecendo a caligrafia fluída e os diferentes estilos cursivos representativos de alto mérito, de moderna importância em documentos como a Constituição dos Estados Unidos: sempre tentámos gravar e dispersar no espaço, nomeadamente, no papel difundido, o nosso tempo de Ideias e Aprendizagens.
E que utensílio mais emblemático desse desígnio do que a caneta, seja de tinteiro ou esferográfica?
Mas, por tão icónica que seja, dedutivamente, pode dizer-se que não cumpre os requisitos da tribulada vida universitária… O computador e o seu teclado são a forma-regra para anotar apontamentos.
Percebe-se, in prima facie, que a oferta de uma maior acessibilidade, capacidade de pesquisa e edição convide a uma troca abrupta do caderno pelo ecrã, que, mais cedo ou mais tarde, acaba por chegar a todos. O que será de interrogar é a falta de fricção nessa mudança. Será que se queria uma maior lentidão e uma menor falta de constância nessa promessa? Frequentes deslizes para os métodos mais testados? Ou ainda, uma rebeldia completa à pressão social implícita de cedência ao fixo normativo dos “word processors”?
Citando Antônio Lobo Antunes: “É impossível alguém escrever para a gaveta”. Porém, escreve-se para um ficheiro e se assim apenas fosse o problema não seria grave, o dilema encontra-se na sua substância…
A faculdade é toda ela em si um “leitmotif” ao pensamento crítico, à reinvenção, ao desenvolvimento da nossa voz, não à destilação de conhecimentos descartáveis à primeira oportunidade que se tenha. É-lhe incongruente a completa transcrição do verbatim de aula para o computador, principalmente do ponto de vista da eficiência, como estudos indicam.
O ato de escutar, proceder a uma filtração cuidada e só depois passar a papel contribui para um melhor entendimento das matérias. Estamos ativamente a sintetizar, pondo já pequenos cunhos idiossincráticos que ajudam na memorização e, ainda, num momento posterior, a gerar um efeito exponencial quando ao estudar, afincadamente, duplamente se sintetiza e se chega mais facilmente à “raison d'être” das coisas. Acrescenta-se que a própria atividade psicomotora da escrita, as variadas tactilidades necessárias, ativa diferentes partes do cérebro, mais do que digitar, que se demonstram benéficas ao aluno.
Traduzindo Neil Gaiman: “O melhor conselho que vos posso dar [para serem bons escritores] é serem honestos na escrita.”.
Ora, a já falada imediatez do teclado dificulta tal tarefa, mas quiçá a própria “tela” será mais prejudicial do que isso, sendo risível a abada que uma mera folha de papel dá aos diferentes programas no que toca à liberdade gráfica, de modo a se elaborar a mais pessoal materialização do que se aprende, inclusive por meios estenográficos de abreviação, não fosse a escrita à mão um dos últimos redutos à inteligência artificial.
Mas porquê, sequer, falar da perspetiva do “ouvido”, quando o aluno costuma ser o “ouvinte”? Obviamente, porque esta fase de vida é efémera e precisamos de literacia para participarmos ativamente na sociedade.
Numa Ted Talk, Jake Weidmann fala de três tipos de literacia que advêm da caneta...
Já se aludiu à “literacia histórica” desse mesmo objeto. Aliás, o POTUS Lyndon Johnson, supostamente, assinou com 75 canetas o Civil Rights Act (´64) para as distribuir entre personalidades, como o Reverendo Martin Luther King Jr., o que demonstra a “gravitas” única deste artefacto.
De igual forma, já se denotou a “literacia intelectual”. Só falta a “literacia criativa”.
Os cursos universitários, no geral, são taxativos no aluno. É imperativo “válvulas de escape” às aspirações de perfecionismo que nos regem. O desporto, a poesia, ou o cinema são todos fundamentais a esse desiderato, no entanto, não será preciso ir tão longe: tudo depende da forma como entendemos a criatividade implícita (ou explícita) no que fazemos. Quem diz criatividade, diz sentimento, diz paixão.
Todos os dias apontamos e poderíamos brincar mais com isso. Arranjar mais o ducto das letras, a orientação e inclinação da escrita, a rapidez e a fluidez, a simples forma como cada caracter se conecta com o outro, enfim, os diferentes estilos de cursivo por aí existentes. Isso resultaria numa personalização consciente da rotina, numa amostra pública das sensibilidades artísticas intransmissíveis ao digital, o que pode resultar num aligeiramento das preocupações do dia-a-dia.
E falando em paixão, apresenta-se um conselho com o qual engracei na pesquisa para este artigo (noutra Ted Talk): Escrevam uma carta à mão! A quem quiserem, apenas escrevam e descobrirão algo que, se calhar, esqueceram e vão gostar de ter redescoberto.
Finda a racionalização do problema, passa-se a uma breve contextualização do que duas Professoras da Casa, alunas de outrora, têm a dizer sobre o assunto.
Quando perguntada se na universidade, enquanto estudante, escrevia à mão, a Senhora Prof.ª Doutora Glória Teixeira responde afirmativamente, tendo-se adaptado rapidamente ao computador, já no Mestrado, em Inglaterra.
Ainda hoje utiliza a caneta, em conferência e anotações, continuando a ser fulcral na sua vida académica, embora talvez não tanto como o mero telemóvel que nos acompanha. Afirma que se fizesse a licenciatura hoje, provavelmente, usaria o computador para apontamento de notas.
A Senhora Prof.ª Brígida Malheiro conta que gosta e sente falta de escrever. Não faria diferente do que fez quando, com o avolumar das matérias, começou a utilizar o computador a partir do 2º ano da licenciatura.
Mesmo que não se enamore com a ideia de repensar a caneta, ao menos, agradece-se à curiosidade da vida e ao que levou a um jovem Steve Jobs atender a aulas de caligrafia, às quais nem estava inscrito, para contentarmo-nos com diversas fontes gráficas nos nossos “personal computers”, que poucos, ao fim ao cabo, usam, mas por si já vale a pena.
P.S.: Boas festividades, caro Leitor!
José Pedro Carvalho
Departamento Mundo Universitário
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