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Foto do escritorBeatriz Morgado

A caça às bruxas na Europa: o genocídio feminino

Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, ao mesmo tempo, juiz e parte, escreveu François Poullain de La Barre, filósofo cartesiano do século XVII. É à luz da problemática de ausência de prova e com o auxílio da obra Calibã e a Bruxa (de Silvia Federici), que exploro a origem da bruxa na Europa e a perseguição de que foi alvo, que foi apagada das páginas da História, apesar de constituir a maior perseguição às mulheres a acontecer em solo europeu. 


Para estranheza de muitos, esta “caça às mulheres” não proliferou naquilo a que chamamos de Idade Média, o período de dez séculos que antecede o Renascimento, a que associamos o primado da Igreja Católica e do Santo Ofício. A verdade é que, nesse milénio, não foram perseguidas bruxas per se, apesar das acusações e julgamentos por heresia terem sido abundantes, como aconteceu, por exemplo, com Joana D’Arc, no início do século XV – se bem que os seus acusadores não acreditavam verdadeiramente na natureza diabólica da sua pessoa, sendo que o seu assassinato teria sido, acima de tudo, uma ação política, na medida em que Joana fora alvo de variadíssimos inquéritos judiciais de teor eclesiástico antes do seu julgamento.


A dita loucura da caça às bruxas começa mais tarde, já no século XVI, em que se deram os primeiros julgamentos de bruxas por toda a Europa, na consequência da Bula Papal Summis desiderantes affectibus, emitida em 1484, por Inocêncio VIII. Foi nesta altura que se deu uma mudança interessante: a iniciativa de perseguição passou da Inquisição para as cortes seculares. Sem querer, claro, desvalorizar o papel da Igreja na criação das estruturas que serviriam de mote para uma perseguição maciça, a verdade é que a caça às bruxas não se deu por um motivo religioso. Aliás, é legítimo afirmar que este genocídio foi o primeiro grande assunto unificador da Europa após a Cisão da Igreja, sendo que, ao contrário da campanha contra judeus e hereges, esta não era sintomática da influência de Roma, tendo-se proliferado independentemente da fé católica. 


Na verdade, vários filósofos e intelectuais de prestígio que, ainda hoje, são conhecidos como os pais do racionalismo e do progresso, promoveram a perseguição das bruxas, apesar de serem muitas vezes céticos à existência da bruxaria em si. Aqui destacamos nomes como Thomas Hobbes, que não acreditava que as mulheres consideradas bruxas fossem culpadas dos atos demoníacos de que eram acusadas, considerando, porém, que estas deviam ser perseguidas pela convicção de serem capazes de desafiar o poder do Estado. Também é oportuno nomear Jean Bodin, que elaborou uma obra sobre tipos de provas que incriminavam a mulher bruxa - De la démonomanie des sorciers, (1580) – classificando a bruxaria como um crimen exceptum, um crime especial, que seria passível de investigação através de tortura e de punição, mesmo na ausência de danos patrimoniais e não patrimoniais.


O problema inicial do estudo da caça às bruxas reside na inexistência de separação formal e material entre quem elaborava os documentos enviesados, quem acusava e quem julgava, uma vez que os mesmos que se dedicavam ao estudo das bruxas também presidiam os julgamentos e as sessões de tortura. Nesse sentido, é impossível retirar qualquer fundamento lógico e racional dos documentos existentes da época. Já os que surgiram mais tarde para estudar este fenómeno, apesar de não serem os acusadores diretos, herdaram os seus conhecimentos falsos ao retratar as vítimas como doentes desequilibradas e histéricas, despolitizando o genocídio e associando-o a preocupações de uma sociedade mais salubre. 


Silvia Federici argumenta que não é coincidência nem acaso que esta perseguição em massa tenha ocorrido numa altura de grande convulsão social e de transição para um novo sistema económico – do feudalismo para um capitalismo primitivo –, pois esta campanha de terror contra a mulher enfraqueceu a capacidade de resistência das camponesas, face aos ataques provenientes da privatização das terras, do aumento dos impostos, entre outras políticas características deste período.


Esta perseguição foi também singular, porque se apoiou nos meios de comunicação (muito primitivos, claro), como fazem todos os regimes de terror quando procuram espalhar desinformação em relação a determinada categoria ou grupo: contrataram-se inúmeros artistas para que realizassem os mais horrendos retratos de bruxas, que também eram utilizados para promover os julgamentos e mover as massas. 



Resta colocar a seguinte questão: qual foi a causa desta política de perseguição multifacetada? E porque teve como alvo mulheres? Porque não uma caça aos bruxos e feiticeiros e não às bruxas? Apesar de não termos respostas concretas a esta questão, muito devido à falta de prova que não fossem os processos dos próprios acusadores, com acusações unicamente grotescas e exageradas (tendo como factos incriminadores o ter vendido a sua alma ao diabo, sugado o sangue de crianças, morto o gado e cultivos alheios, entre outros), Federici aponta uma razão principal: a resistência que as mulheres apresentaram à difusão das relações capitalistas e o poder que tinham em virtude da sua sexualidade e controlo sobre a reprodução; tratava-se de eliminar o comportamento feminino que já não era tolerado, para isso/tal sendo necessário transformá-lo em “abominável”


O facto de a maior parte dos crimes de que as acusavam serem factos cometidos décadas antes da incriminação e o facto de a bruxaria se ter tornado num crimen exceptum são indícios que sugerem que a bruxaria não era uma ação socialmente reprovável e condenável, mas antes algo que foi incutido na população para facilitar a limpeza que os Estados queriam levar a cabo, afirma Federici. Aqui, vale a pena mencionar uma outra obra que explora este significado da caça às bruxas associado à mudança de sistema económico, The Devil and Commodity Fetishism in South America, de Michael T. Taussig (2016). Este livro explora o significado político e social do Diabo no domínio dos camponeses e mineiros na América do Sul: aqui o autor argumenta que as crenças diabólicas tendem a surgir em períodos em que existe uma rutura do modelo de produção e acumulação dos sistemas económicos, mudando a ordem social e as conceções de criação de valor e da natureza humana, que muitas vezes são antagónicas ao  costume das populações, eliminando-se forçosamente os direitos consuetudinários para impor um novo regime.


A calamidade tão minuciosamente tratada nesta obra, representa muito mais do que um período sombrio de perseguição: desmascara um sistema de opressão muitíssimo complexo, enraizado no patriarcado e no capitalismo emergente, destinado a suprimir qualquer forma de resistência, especialmente aquela encarnada pelas mulheres – donas da capacidade reprodutora que tanto se pretendia controlar


Devemos olhar para esta obra não só como uma lembrança da obscuridade do passado, mas também como um cautionary tale para os perigos do presente. Quando olhamos para tentativas recentes de eliminar os direitos fundamentais que já se assumiam como garantidos, nomeadamente as questões levantadas quanto à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e os esforços de subverter a posição que a mulher arduamente conquistou na sociedade: querem-nos de volta ao lar, quietas e caladas, mas as mulheres sempre resistiram e resistirão à clausura imposta, do século XV ao XXI - e até quando for preciso.

 

Beatriz Morgado

Departamento Cultural








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