A Declaração dos Direitos do (de quem?) e do cidadão
- Luiza Toniolo
- há 4 dias
- 3 min de leitura
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[1], de 1789, emanada no contexto da Revolução Francesa, prevê uma série de direitos humanos ainda hoje reconhecidos e preservados. A sua referência a “Homem” não é, entretanto, feita por acaso, pelo que a palavra fora interpretada, durante décadas, e ainda em alguns países, da maneira mais estrita e redutora possível.
O artigo 1.º desta Declaração prevê que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos (...)”. Todavia, a escravatura apenas acabou em Portugal cerca de um século depois, em 1869, e no Brasil em 1888[2]. Nos Estados Unidos, antes e ainda depois do Civil Rights Movement (1954 a 1968) havia leis ostensivamente violadoras do princípio da igualdade e não discriminação na sua vertente racial. Isso dá a entender, pois, que os “homens livres e iguais” aí referidos são selecionados segundo critérios discriminatórios.
Especificamente quanto à mulher, é quase desnecessário referir que muitas apenas adquiriram direitos laborais e cívicos (como o direito de voto) no século passado. Em Portugal, até ao fim do Estado Novo e antes da Reforma do Código Civil de 1977[3], as mulheres casadas não tinham sequer o direito de trabalhar fora de casa sem a autorização dos seus maridos, bem como os direitos de viajar para o estrangeiro ou abrir conta bancária sem o seu consentimento[4]. A mulher casada era, oficial e legalmente, subordinada ao Homem. Para além das adversidades jurídicas e sociais enfrentadas, a própria Constituição de 1933[5] estabelecia, no seu artigo 5.º, que os cidadãos eram iguais perante a lei, “salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”. Pode-se, pois, bem imaginar tudo quanto essa alegada “diferença” procurou justificar.
O que a suprarreferida Declaração de direitos de 1789 realmente expressou e impôs, durante dois séculos, no mundo ocidental, pareceu ser uma mera igualdade entre as pessoas do sexo masculino e, mais especificamente, apenas entre aqueles pertencentes a uma etnia privilegiada, em desfavor doutras.
Uma das primeiras manifestações contra esta ordem das coisas foi um tratado sobre os direitos humanos das mulheres, datado de 1792 e redigido pela escritora e ativista feminista britânica Mary Wollstonecraft. Na obra A Vindication of the Rights of Woman[6], a autora disserta sobre como a educação recebida pelas mulheres impede o seu desenvolvimento intelectual e as prende em papéis sociais. Enquanto iluminista, Wollstonecraft acreditava na razão, no individualismo, na autodeterminação, na doutrina dos direitos naturais e na igualdade entre Mulheres e Homens. A escritora, polemicamente, apelida o casamento de legal prostitution, já que este era o único meio pelo qual as mulheres conseguiam sustento. O descontento perante as injustiças vividas pelas mulheres é transversal à obra de Wollstonecraft. Refere, por exemplo, que as mulheres são “criadas para ser o brinquedo do homem”. Ela advoga para as mulheres uma educação orientada pelo pensamento crítico, o ensino misto entre meninos e meninas, o sufrágio universal e o acesso a profissões como a medicina e ao comércio. Argumenta, por fim, que até os homens beneficiariam desta igualização dos papéis sociais, porque as mulheres poderiam, finalmente, casar-se não apenas por interesse económico.
Apesar de o Manifesto de Wollstonecraft se ter tornado um bestseller e ter influenciado os movimentos feministas britânicos e americanos, muito tempo passou (e em muitas sociedades ainda hoje se espera) até que as suas palavras fossem concretizadas. E assim, para que a expressão “Homem”, presente na “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão” fosse entendida como “humano”, na sua forma plena.
Luiza Toniolo
Departamento Sociedade
[1] Informação disponível em: https://pt.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao.
[2] Informação disponível em: https://www.portail-esclavage-reunion.fr/pt-pt/documentaires/abolicao-da-escravatura/cronologia-das-abolicoes/.
[3]Para mais informações, consultar: https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3D%3DBAAAAB%2BLCAAAAAAABAAzNjewBAC9xb1iBAAAAA%3D%3D.
[4]Disponível para visualização em: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/cod-civil-direitos-mulheres.aspx.
[5] Informação disponível em: https://www.parlamento.pt/parlamento/documents/crp-1933.pdf.
Comments