O estatuto da mulher na sociedade sempre foi alvo de debate, quase como se ela fosse um elemento estranho ao meio social e, durante muitos anos, na sala onde essa discussão ocorria, apenas estavam homens. Contudo, este debate constante ocorria também na cabeça de muitas mulheres e, muitas vezes, nos olhares que estas partilhavam entre si, olhares esses que evidenciavam a repressão.
Nestas discussões, compostas apenas pelos “mais iluminados”, não se entendia a utilidade da mulher para além da procriação e do embelezamento do ideal familiar. Era vista como algo adjacente à realidade masculina, como algo que apenas se definia em conjunto e nunca individualmente. Por exemplo, Rousseau na sua obra Emílio afirma que “depois de ter tentado formar o homem natural, vejamos também, para não deixar o nosso trabalho incompleto, como se deve formar a mulher que convém a este homem”.
A análise da revolução feminista é um tema extremamente vasto e diverso, na medida em que cada Estado, mediante as suas circunstâncias sociais, económicas e culturais, apresenta uma História diferente. Além disso, cai-se muitas vezes na falácia de analisar esta revolução como um momento histórico passado quando, (in)felizmente, permanece ainda hoje e só agora começa a dar os seus primeiros passos em alguns países. Embora haja esta diversidade e complexidade de análise há, ainda assim, uma linha comum a toda a ideia da luta por direitos: a revolução nasce da repressão, mas caminha através da educação.
A negação do direito à educação
No estudo dos crimes contra as mulheres perdemo-nos pelos crimes mais mórbidos e dolorosos como o femicídio, a violação e a mutilação genital, e compreende-se o porquê: são os que mais nos sensibilizam pela crueldade que representam, bem como pelo grafismo que as próprias palavras detêm. No entanto, há uma infinidade de outros crimes com os quais convivemos no dia-a-dia e que por vezes passam despercebidos. Um destes crimes é a negação do direito à educação previsto no art. 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Se o art. 7º da mesma declaração fosse, efetivamente, respeitado, não veríamos violações sucessivas deste direito apenas para as meninas. Um exemplo claro desta violação será a forma como o regime Talibã, após o regresso ao poder no Afeganistão, rapidamente revogou todos os direitos das meninas frequentarem o sistema de ensino. Desta discriminação direta e flagrante retira-se, facilmente, a ideia de que os regimes compreendem a forma como a educação é a arma que impede a manutenção de uma sociedade machista e misógena, e que despoleta uma revolução feminista.
Analisando atentamente a luta pelos direitos das mulheres, em diferentes contextos históricos e diferentes períodos temporais, é possível compreender a forma como a negação do direito à educação feminina sempre foi uma arma de repressão. Quando se nega o direito à educação está-se a colocar a jovem numa situação em que não poderá exercer uma profissão, não terá conhecimentos acerca do mundo que a rodeia e ficará limitada a um contexto doméstico e submissa a um marido. Ao averiguar, de uma forma geral, os processos de emancipação feminina, compreende-se o papel fundamental da educação na abertura dos seus horizontes, na medida em que permitiu à mulher a compreensão de que, estando instruída, poderia aceder a profissões remuneradas que a permitem estabelecer-se por si só, deixando de ter que estar para sempre agregada à sua fonte de sustento, o homem. A mulher vai mais além e compreende que pode existir de forma independente, que pode construir uma vida não convencional, onde não baseia a sua existência na obrigação de criar uma família. É da oportunidade de trabalhar e de se auto-sustentar que a mulher começa a aspirar esta tão importante, e tão inédita, existência individual.
Nesta luta pelo acesso ao ensino universitário, o lado repressivo argumentava sempre uma inerente incapacidade da mulher para prosseguir estudos intelectuais por motivos hormonais e menstruais. Para além disso, discutia-se muito se esta decisão não teria consequências irreversíveis para a manutenção do ideal do casamento e da família, dado que se começava a entender que o ensino universitário era um elemento essencial que desencadeava a possibilidade de acesso a mais profissões, melhores condições económicas e a uma inédita hipótese – a da independência feminina. Muitos diziam, ainda, que uma mulher instruída nunca iria querer casar e que isso seria o fim da Humanidade.
Os diferentes caminhos no acesso ao ensino universitário
O ensino universitário sempre foi uma das lutas feministas, originando uma grande discussão no meio intelectual, considerando as portas que este ensino abria e as barreiras sexistas que derrubava. Durante muito tempo não se entendia a necessidade da mulher aceder ao ensino universitário porque, mesmo nas classes mais baixas (em que a mulher tinha que trabalhar por razões de sobrevivência familiar), as profissões eram mais práticas e não implicavam grandes conhecimentos intelectuais. Por outro lado, a mulher burguesa nem questionava esta necessidade de trabalho, na medida em que a levava uma vida extremamente privilegiada em termos económicos, ocupando-se apenas da vida doméstica e social. Esta comparação é relevante na medida em que, dentro do estudo feminista, é sempre preciso conceber esta diferença de classes e a forma como, dentro de cada classe, a repressão era feita de forma diferente e com consequências diferentes.
Analisando a era Vitoriana no Reino Unido, podemos concluir que, por exemplo, nas famílias mais pobres a única forma de educação era a dada pelas ordens religiosas ao domingo e, mesmo neste caso, já existia uma falta de literacia mais forte nas meninas, dado que não havia um incentivo cultural para que elas aprendessem. Mesmo quando a Rainha Vitória impôs uma obrigação de instrução de todas as crianças dos 5 aos 10 anos continuava a existir uma diferença de currículos, dado que para as meninas as matérias lecionadas nunca iam para além da vida doméstica.
A luta pelo ensino universitário apenas começa a dar os seus primeiros sinais no último quartel do séc. XIX quando, em 1878, a Universidade de Londres abriu as portas do seu ensino às mulheres, passando a ser a única universidade do Reino Unido a permitir esse acesso. Também nos Estados Unidos da América este direito foi conferido pela primeira vez em 1837. Contudo, é preciso entender que este processo se prolongou por várias décadas e que a democratização do ensino universitário para a mulher apenas se começa a verificar mais significativamente nas décadas após a 2ª Guerra Mundial. Note-se, contudo, que estes dados pertencem a Estados que não viveram regimes ditatoriais e que, tendencialmente, apresentam uma História mais democrática e liberal no que toca à construção de um Estado de Direito com base em ideais de igualdade (muito embora esta afirmação possa ser, evidentemente, discutida à luz de inúmeras vertentes).
Esta disparidade de contextos, e a forma como isso influencia o progresso feminista, comprova-se através de alguns dados relativos ao analbafetismo feminino em Portugal durante o período anterior à Revolução de Abril. Segundo esses dados estatísticos, pensa-se que cerca de 1 em cada 3 mulheres era analfabeta na década de 70 e segundo os censos de 2021, essa taxa de analfabetismo feminino já é de apenas 3,1%. Estes dados evidenciam o quão longe Portugal estava em termos de acessibilidade ao ensino universitário para a mulher durante este período vergonhoso da nossa História. Daqui entende-se a forma como a luta pelo ensino universitário para a mulher sempre se fez (e faz) a velocidades diferentes em cada Estado, dada a diversidade dos contextos históricos, económicos, sociais e culturais.
A essência da luta feminista enquanto produto de diferentes variáveis
Analisando a essência da Revolução Feminista compreendemos que não se funda apenas em construções intelectuais adquiridas no ensino universitário, mas também (e principalmente) num sentimento de exaustão provocado por uma repressão geracional e transversal a todas as classes (não só aquelas que acederam ao mundo universitário). Há quem classifique esta essência como mais emocional do que a de outras revoluções, mas a História prova o contrário. À luz de uma vertente mais prática, é fácil compreender a forma como nenhuma revolução nasce única e exclusivamente de uma vontade intelectual, e de um desejo incessante de trazer ideais democráticos. Mesmo a Revolução Francesa, defendida como a trave-mestra das Revoluções, tinha um objetivo muito claro e prático – o fim do Antigo Regime e de uma monarquia de excessos. Aliada a esta vontade incessante de colocar um termo ao Absolutismo, surge depois uma construção intelectual baseada em valores democráticos provenientes do Iluminismo – liberté, egalité, fraternité.
Dentro das nossas fronteiras, há quem discuta a forma como o 25 de Abril não proveio de um desejo intrinsecamente intelectual e nacional de derrubar uma ditadura, mas sim de uma vontade militar de colocarem um ponto final a uma guerra que já estava perdida desde o primeiro dia.
A essência de qualquer revolução existe por si só nas pessoas, e pode acontecer apenas através deste sentimento de exaustão. Contudo, é através do ensino que adquire uma dimensão intelectual e ganha pernas para andar. Os períodos transitórios são excelentes casos de estudo para entender a forma como, por vezes, não existem, depois da revolução, pessoas suficientemente instruídas e capacitadas para criar aquilo pelo qual se lutou. A História comprova isso, considerando que alguns Estados voltaram a cair em regimes ainda mais autoritários do que aqueles de que tentaram escapar.
A falta de meios da mulher portuguesa
O que se pretende com os exemplos apresentados é demonstrar como o acesso precoce ao ensino universitário em países como o Reino Unido e os Estados Unidos da América, bem como as suas circunstâncias políticas e culturais, fez com que a luta feminista fosse feita com mais bases intelectuais. A luta da mulher norte-americana tinha por base uma Constituição, conhecimentos das lutas feministas noutros países, e era protegida pelo acesso à justiça, como forma fundamental de garantia dos direitos. Um exemplo disto é o caso Roe vs Wade (1973), em que McCorvey (encarna o anonimato na forma de Jane Roe) se depara com uma negação do seu direito ao aborto no Texas e consegue recorrer desta decisão até ao Supremo Tribunal. Assim se determinou o direito ao aborto como um direito constitucional de todas as mulheres dos Estados Unidos, assumindo a forma de law of the land. Voltando às nossas fronteiras, é fácil compreender que no séc. XX isto seria impossível de acontecer – primeiro porque vivíamos numa ditadura, e segundo porque cerca de 1/3 das mulheres eram analfabetas, pelo que o ensino universitário era algo que ainda nem se colocava numa equação possível. Durante o Estado Novo este sentimento de revolta face à repressão patriarcal não tinha meios para se afirmar intelectualmente, nem meios jurídicos para se defender.
Desta comparação entende-se o papel da instrução na construção do sentimento de revolta e na própria credibilidade da discussão feminista. Para além disso, retira-se que as mulheres norte-americanas viviam num espaço de maior liberdade, onde podiam discutir os seus direitos e eram reconhecidas judicialmente, enquanto que a maioria das mulheres portuguesas não conhecia o mundo para lá da vida doméstica, vivendo “orgulhosamente sós” como mães, mulheres e irmãs, nunca adquirindo uma existência individual, muito menos jurídica. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, e por isso é que a existência da mulher salazarista era sempre definida em relação a algo ou a alguém, e nunca pela sua simples existência enquanto ser humano.
Ainda numa análise feminista do período anterior à revolução, Irene Pimentel relata a forma como, mesmo dentro do Partido Comunista, as poucas mulheres que lá exerciam funções eram reduzidas a trabalhos domésticos e de auxílio dos funcionários. Isto apenas comprova que mesmo os revolucionários e defensores do fim da ditadura, ainda se encontravam embebidos numa lógica misógina. O papel da mulher era, por isso, algo secundário e intrínseco à sociedade, provando-se que, depois da queda do regime, ainda havia um longo percurso a percorrer na proteção dos direitos da mulher.
O percurso de emancipação da mulher portuguesa no pós-revolução ficou muito marcado pela democratização do ensino, consagrada nos art. 73º/1 e 74º/1 da Constituição de 1976, tendo-se criado um sistema de escolaridade obrigatória para todos. Esta consagração constitucional reforça a ideia de como o caminho da emancipação tem sempre que passar pela educação, de forma a que a mulher consiga construir a sua independência. Esta democratização traz-nos ao ano de 2021, no qual em 93000 pessoas que concluíram o ensino universitário, cerca de 55000 eram mulheres.
Mesmo no mundo do Direito, a mulher já ocupa uma posição predominante, como se pode comprovar, desde logo, durante o período universitário. O que se torna curioso é a forma como, mesmo num meio dominado por mulheres, continuamos a ter um sistema judicial intrinsecamente machista e que julga a mulher sempre com olhos diferentes. Esta discriminação e prisão de preconceitos sobressai especialmente em julgamentos do crime de violação sexual, nos quais ainda são ouvidos argumentos bizarros como: “A mulher não deve ficar alcoolizada se não quer ser violada”, “A mulher pôs-se a jeito com roupas reveladoras” e “Se foi violada porque é que não temos sinais de luta e de negação?”. A discussão torna-se ainda mais grave na medida em que existem várias convenções internacionais como a Convenção de Istambul (ratificada por Portugal em 2013 e, por isso, vigente no ordenamento jurídico nacional ao abrigo do art. 16º da Constituição da República Portuguesa) que nega por completo a validade jurídica deste tipo de argumentos, e define quais os critérios para determinar a ausência de consentimento sexual. Por esse motivo, torna-se cada vez mais urgente a necessidade de abandonar estes preconceitos que não existem apenas na mente dos juízes mas também na opinião pública.
A repressão da mulher vai sempre passar pela prisão da sua mente e dos seus sonhos. Quanto menos se conhece, menos se questiona, e a repressão apenas vigora enquanto a mulher não tiver os meios para a destruir. A educação representa o fósforo que desencadeia a chama da emancipação. É a partir desta luz que a mulher aspira a sua independência e a sua existência enquanto ser individual.
“Perhaps we need to know more specifically what we are fighting to achieve (not only what we are fighting to destroy), and what actions would be required for such an achievement, even after the fight has been won, if it is won.” – Miriam Toews em Women Talking.
Ana Picado
Departamento Mundo Universitário
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