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O que o silêncio eternamente perpétua

  • Foto do escritor: Margarida Afonso Leal
    Margarida Afonso Leal
  • há 2 horas
  • 6 min de leitura

Após o 25 Abril de 1974, dizem-nos para não tomarmos como garantidos a nossa liberdade e os nossos direitos… Para as mulheres, esta realidade é particularmente evidente, uma vez que continuam, ainda hoje, a ter que lutar diariamente. Abusos, violência e medo fazem parte do quotidiano de muitas mulheres. Há sempre  precauções que devem ser tomadas - a segurança plena continua a não estar garantida. 

Seria de esperar  que, em contexto académico - repleto de progresso e mentes brilhantes envolvidas - se questionasse e combatesse a persistência  da violência na vida das mulheres. Mas não. Parece não ser um problema grande o suficiente, pelo menos, aos olhos da sociedade. Dada a aparente pequenez, fruto da normalização da violência praticada contra meninas e mulheres, cabe aos órgãos de comunicação social, coletivos feministas e organizações não governamentais a tarefa de abrir os olhos ao comum mortal Um exemplo sucedeu-se na passada quinta-feira, dia 3 de abril, quando Inês Marinho, presidente da associação Não Partilhes, revelou, através da rede social Instagram, a alegada existência de uma prática contínua na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto: a partilha de vídeos íntimos de estudantes, num grupo de WhatsApp, sem o consentimento das mesmas. A gravidade da situação aumenta com o alegado envolvimento de membros masculinos da associação estudantil nesse grupo. O episódio especificamente denunciado ocorreu na gala de aniversário da Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde, num contexto de festa e descontração, várias raparigas foram fotografadas de forma íntima sem o seu consentimento , como relata a jovem ativista no vídeo que partilhou. 

Estando apresentados os alegados factos que serão refletidos neste artigo, julgo ser importante explicar os objetivos da associação Não Partilhes. Esta Organização Não Governamental foi criada com o intuito de apoiar vítimas de violência sexual online e de consciencializar a sociedade para a existência e gravidade deste crime. Para além do serviço público prestado pela presidente da associação ao realizar a denúncia, importa destacar a sua coragem ao expor a identidade dos alegados membros masculinos da associação estudantil envolvidos. Este ato pareceu-me uma tentativa de pôr fim ao tabu de que a privacidade dos agressores deve ser protegida ao mesmo nível da das vítimas - como fez, por exemplo, o canal televisivo SIC Notícias. Esta abordagem é fundamental para  alterar a mentalidade da sociedade quanto à prática da violência sexual,  que  tem de deixar de ser normalizada. 

Neste sentido, em conversa com a presidente do FEMFDUP, Beatriz Morgado, foi evidenciada a ironia que esta exposição provocou: a eliminação das publicações da lista vencedora da associação de estudantes. Bem, parece-me prudente afirmar que estes jovens não deveriam ter nada a temer, e que apenas pretendem  proteger a sua privacidade e o seu direito à intimidade - tal como, seguramente o desejariam as raparigas filmadas na gala da associação de estudantes da FEUP, de forma a garantir, de facto, o “bem de todos os estudantes”. Com a necessidade de manter a integridade da associação, de discutir as resoluções e as consequências a aplicar aos membros da associação que,  alegadamente, estiveram envolvidos com a partilha de imagens íntimas online, e apurar os factos, os estudantes convocaram uma Assembleia Geral Extraordinária. Este órgão é “o principal órgão de decisão da AEFEUP”, visto que TODOS os alunos podem votar e apresentar propostas, sendo incitada a sua presença. Uma pequena nota (é spoiler dos acontecimentos): o sentido da palavra “todos” já deixa claro que não há exceções. Mas, pelos vistos, há engenheiros  que desconhecem o significado de certos termos. “Consentimento” não é, infelizmente, a única palavra ausente do  seu vocabulário. 

Assim, inicialmente,  convocada para quarta-feira, dia 9 de abril, a assembleia foi,  curiosamente, e para espanto de todos, antecipada para terça-feira (adivinhem) dia 8 de abril. Além disto, a entrada foi limitada  exclusivamente a estudantes da FEUP, numa tentativa de  abafar e ocultar as resoluções que seriam tomadas. Tudo isto parece ter sido feito, não com o intuito de fazer justiça  em nome das vítimas ou de  apurar a verdade, mas antes para controlar os danos e preservar a imagem da associação.

Assim sendo, estando conhecidos os factos e despertada a revolta , o Coletivo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto organizou uma manifestação de solidariedade para com as vítimas de violência sexual da FEUP, em frente da associação de estudantes. A iniciativa  teve uma forte  adesão, onde se entoaram cânticos, como “Nem mais uma”, “Nem mais um dia de violência sexual na academia” e “Violência machista, resistência feminista”. Estas palavras  evidenciam parte das reivindicações consagradas no direito à liberdade de reunião e manifestação,  previsto no artigo 45º da Constituição da República Portuguesa.

Várias foram as motivações do FEMFDUP para a organização desta manifestação tranquila. Em primeiro lugar, importa afirmar que as mulheres da Universidade do Porto não são meros objetos e agentes passivos e, como tal, não permitirão os seus direitos serem violados por agentes associativos. Assim, o FEMFDUP, deixou a sua nota de repúdio para com a Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto porque, alegadamente, esta associação terá compactuado com a prática da partilha não consentida de fotografias íntimas , uma vez que,  apesar de, alegadamente, terem  conhecimento prévio da existência dos grupos de partilha deste conteúdo  e da sua  perpetuação no tempo  nada fizeram e permaneceram em silêncio 

Ficou, portanto, o grito silencioso de todas as vítimas que sofrem, enquanto os homens aprovam, aplaudem e calam. 

Além disto, na minha conversa com a Beatriz Morgado, foi reforçado que a prática de violência sexual baseada na partilha de imagens não deveria estar enquadrada na preservação da vida privada, como está previsto nos artigos 192.º, 193.º, 197.º e 199.º do Código Penal. Ao invés, deveria estar contido na secção de crimes contra a liberdade sexual, visto que este ilícito tem consequências semelhantes às sofridas por  vítimas de violação. 

Quanto aos objetivos do coletivo feminista, ficou clara a exigência da demissão dos dirigentes associativos que,  alegadamente, compactuaram com a presente situação, assim como a retirada da sua candidatura a cargos associativos futuros. A prossecução de uma investigação criminal e a responsabilização judicial dos envolvidos também foi apontada como uma medida necessária, quer pela alegada intromissão devassa da vida privada, quer pelas alegadas violações que ocorreram no café FEUP. Adicionalmente, foi sublinhada a necessidade de a FEUP aplicar consequências disciplinares aos estudantes da instituição que abusaram dos privilégios atribuídos democraticamente pela comunidade estudantil. Com isto, foi reforçada que esta não é apenas uma situação de má conduta, mas que foi verdadeiramente realizado um crime. Como tal, os dirigentes não devem deixar de sofrer consequências, ausentar-se dos cargos de poder não basta!  

Por fim, o coletivo considera que deve ser elaborado um plano de ação pela direção das faculdades, em conjunto com a Reitoria da Universidade do Porto, a Federação Académica do Porto e que tenha a participação ativa dos diferentes coletivos e grupos feministas da UP, enquanto órgãos consultivos de forma a combater os atos de abuso contra a mulher e a violência sexual na Academia. 

Quanto à resoluções da Assembleia Geral de alunos, estas ficaram muito aquém do desejado. Foi confirmado que as vítimas do abuso foram identificadas e que “lhes está a ser prestado um apoio individualizado e solidário”. No entanto, quanto aos membros envolvidos foi confirmado que, o Presidente e o Tesoureiro da associação realizaram a sua demissão formal à Mesa da Assembleia Geral. Nota-se um grande silêncio de diversas entidades da Academia do Porto, o que não deixa de ser criticável. Portanto, só posso concluir que estes jovens associativos terão um futuro promissor e sorridente.

A última farpa, antes de uma reflexão final, é dirigida à conduta de funcionamento da Assembleia Geral. Foi, efetivamente, extraordinária, pois certos alunos ordinários, não puderam participar na assembleia, visto que, a certa altura, foi barrada a entrada de estudantes que frequentam o estabelecimento de ensino universitário sob a égide de “lotação esgotada”. Eu não sabia que era necessário comprar uma pulseira para ter acesso a um direito comum a todos os estudantes, mas pelos vistos a Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto pode violar os estatutos. Só que, adivinhem, por mais estranho que pareça, e lamento desapontar-vos, a FEUP não é especial. Assim, alguns estudantes solicitaram a anulação dos resultados desta assembleia, considerando-a ilegal. Não sei se os resultados seriam ou serão diferentes, mas fica a questão no ar.

Em título de conclusão, gostaria de reforçar a necessidade do combate da violência que é constantemente praticada contra a mulher. Questiono-me quando é que esta deixará de ser uma prática geral reiterada e apelo ao fim da sua normalização, num momento em que nesta nova época tudo é legítimo e desculpável, especialmente quando se trata de comportamentos praticados por um homem.

 Termino então com um apelo: 

Mulheres, uni-vos e lutai, que abril ainda não terminou.


Margarida Afonso Leal

Departamento Mundo Universitário

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