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Foto do escritorClara Castro

De herói de filme a terrorista? - A história do gerente de “Hotel Ruanda”

Paul Rusesabagina, ruandês de 67 anos, viu-se a braços com a fama internacional

após a estreia do filme Hotel Ruanda, em 2004.

Baseado em factos verídicos, o filme retrata-o como herói do genocídio de 1994,

no Ruanda, onde ajudou a salvar mais de mil pessoas.

Depois de anos como político e palestrante pelo mundo, Rusesabagina enfrenta 25 anos de prisão por crimes de terrorismo, de acordo com a sentença proferida por um Tribunal ruandês no passado dia 20 de setembro de 2021.


Imagem do filme.

O genocídio


Há pouco mais de duas décadas, a televisão exibia os horrores da missão de limpeza étnica dos Tutsis, levada a cabo por uma fação extremista da etnia rival, os Hutus. Algum tempo depois, os guionistas Terry George e Keir Pearson, com um novo projeto em mente e um guião por escrever, sabiam exatamente a quem telefonar: iriam dar a conhecer a história do herói do Hotel Mille Collines, Paul Rusesabagina.

O guião acabou, no entanto, por ir mais longe do que um simples retrato biográfico. Quem assiste à longa-metragem de 2004 fica a saber, numa conversa entre personagens, que o âmago do conflito (a diferenciação étnica) não nasceu no seio da comunidade ruandesa, mas foi antes “plantado” por um colonizador ocidental.

Eles escolhiam pessoas: os que tinham narizes mais finos e pele mais clara. Costumavam medir a largura do nariz” , explica-nos a personagem do jornalista de Kigali, referindo-se aos belgas. Portanto, os Tutsis correspondiam aos ruandeses que, reunindo estas características físicas, eram colocados à disposição dos colonizadores para governar o país. Mais não será preciso dizer.


A rivalidade étnica escalou de tal forma nos anos posteriores à descolonização, que a vingança dos Hutus pelos anos de repressão Tutsi culminou no “banho de sangue de 1994”. Durante o curso de 100 dias, começando em abril de 1994, cerca de 800.000 pessoas (a maioria da etnia Tutsi) foram massacradas.

Os mais de mil refugiados no Hotel Mille Collines foram a exceção. Mal surgiu a oportunidade, Paul Rusesabagina, o gerente de serviço, não hesitou em dar abrigo a Tutsis e Hutus moderados que se encontravam desalojados e em fuga; mas tudo esteve prestes a ser em vão. Com o hotel de quatro estrelas cercado por milícias, Rusesabagina tinha apenas uma arma à sua disposição, da qual soube tirar o melhor proveito – a diplomacia.

Não deixa, por isso, de ser curioso que na sua autobiografia An Ordinary Man (2006) Paul se apresente como um homem comum em tempos extraordinários. No livro, o Hutu casado com uma Tutsi recorda de forma viva aquilo que testemunhamos no filme. O Hotel foi cercado por centenas de milícias com lanças, machetes e espingardas e, pouco depois, mandaram-no evacuar o edifício. “Seria uma zona de morte... numa hora”, concluiu. Rapidamente telefonou para o maior número de altos funcionários que conseguiu. Um deles cancelou o ataque.


A vida depois do filme


“Hotel Ruanda” foi muito aclamado pela crítica, tendo merecido três nomeações para os Óscares, incluindo a nomeação para melhor argumento original.

Rusesabagina serviu-se da fama global que o filme lhe trouxe para mudar de vida. De taxista nas ruas belgas, passou a orador com agendamentos no American Programme Bureau nos EUA e no London Speaker Bureau. Desde escolas e universidades a igrejas e empresas, raramente recusou um convite para palestras que incidiam, incontornavelmente, sobre a sua experiência do ano de 1994.

Em novembro de 2005, foi-lhe reconhecida, pelo então Presidente George W. Bush, a medalha presidencial para a liberdade por “coragem notável e compaixão perante o terror do genocídio(remarkable courage and compassion in the face of genocidal terror), o reconhecimento civil mais elevado nos Estados Unidos da América.

Para além de palestrante, o herói de Hotel Ruanda encarnou uma forte vertente política, ao adotar uma posição profundamente antigovernamental e converter-se num aberto opositor do Presidente ruandês Paul Kagame.

Em junho de 2006, exilado em Washington D.C., fundou um partido político: Partido da Democracia no Ruanda (PDR-Ihumure). Ainda que a ideologia do partido seja algo indeterminada, como Rusesabagina descreveu num discurso de 2012, este privilegia a “luta política pela libertação do Ruanda da atual ditadura da RPF [Frente Patriótica do Ruanda]”. O partido fundado por Rusesabagina conta com membros maioritariamente de etnia Hutu, tendo quase toda a sua base no estrangeiro – particularmente na Bélgica e nos EUA.

Em janeiro de 2016, Rusesabagina anunciou que pretendia candidatar-se à Presidência do Ruanda.

A detenção


A 31 de agosto de 2020, Rusesabagina é detido no aeroporto internacional de Kigali com acusações de terrorismo, incêndio culposo, rapto e “homicídio perpetrado contra civis ruandeses desarmados e inocentes em território ruandês”.

As acusações referem-se aos ataques terroristas que tiveram lugar no Sul do Ruanda, perto da fronteira, em 2018, onde pelo menos nove pessoas foram mortas, incluindo duas crianças. De acordo com a publicação do Twitter pela Rwanda Investigation Bureau, Rusesabagina foi preso em Kigali com um mandado internacional por ser o “fundador, líder, patrocinador e membro de grupos violentos, armados e extremistas”, incluindo o PDR-Ihumure, o MRCD (Movimento Ruandês pela Mudança Democrática) e o FLN (Forças Nacionais de Libertação), constituindo esta última associação o braço armado dos dois partidos.

A detenção gerou grande controvérsia, desde logo porque Rusesabagina embarcara no jato privado convencido de que o propósito da viagem era o de dar mais uma palestra sua num país estrangeiro; seria ao engano que aterraria no território da terra natal, onde não regressara desde os acontecimentos de 1994.

A filha adotiva de Rusesabagina, Carine Kanimba, é uma das personalidades que mais contestação pública tem oferecido desde a polémica detenção.

Soube pelas notícias que chamavam terrorista ao meu pai”, declarou a ativista de 28 anos, de acordo com o Expresso. Em emissão da BBC World News, Carine defendeu que o julgamento não passou de um esquema encenado: “O meu pai foi raptado além-fronteiras e arrastado por fronteiras internacionais em violação do Direito internacional, sem extradição legal e depois foi torturado durante quatro dias numa casa de tortura ruandesa”. Acrescentou ainda que lhe foram "quase todos os seus direitos básicos, como o direito a escolher um advogado. As Regras Nelson Mandela foram violadas, porque o meu pai foi fechado numa solitária durante 250 dias [as referidas Regras definem 15 dias como máximo], o que também incluiu tortura psicológica.” Num outro momento, a filha de Rusesabagina esclareceu a sua luta: “O meu pai é um preso político, é preciso uma solução política para este problema”.


© Clement Uwiringiyimana/REUTERS

Em Tribunal, Rusesabagina não negou a conexão com o FLN:Nós formamos [o grupo] como uma asa armada, não como um grupo terrorista tal como a procuradoria tem continuado a dizer. Não nego que o FNL cometeu crimes, mas o meu papel era a diplomacia”.

Acrescentou ainda que nunca ordenou a ninguém que atingisse civis. Contudo, no início deste ano, pediu para não estar presente em julgamento defendendo que não estava a ter uma audição justa.

Paul Kagame é o único juiz no Tribunal, disse Carine à BBC, declarando que o presidente pretende “vingança pessoal” contra o seu pai. Segundo o Expresso, reforçou que as ameaças do Presidente não são recentes: “Kagame tentou catalogá-lo como negacionista do genocídio, o que no Ruanda é crime, tentando destruir o estatuto de herói causado pelo filme. Não funcionou, até porque o meu pai fez um filme sobre o genocídio e adotou-me a mim e à minha irmã.

Os advogados de Rusesabagina argumentaram que a sua prisão foi motivada pelas críticas abertas que dirigia ao Governo ruandês, o que não é uma novidade em face de outras condenações e alegados desaparecimentos de dissidentes sob a presidência de Paul Kagame. Tal como Carine, também defenderam publicamente que o voo para o Ruanda foi ilegal à luz do Direito Internacional.

Em fevereiro de 2021, o Ministro da Justiça, Johnston Busingye, em entrevista no Al Jazeera, admitiu que o Governo ruandês tinha pago pelo jato privado que levou Rusesabagina para Kigali. Aliás, alguns membros da família do condenado já estão a processar a companhia aérea GainJet por não ter revelado o verdadeiro destino do voo.

Depois da sentença de 25 anos de prisão, proferida a 20 de setembro de 2021, o que acontecerá daqui em diante é, como os anglo-saxónicos diriam, “history in the making.

Resta-nos esperar que, desta vez, a comunidade internacional não demonstre a mesma passividade de 1994.

E que assim não volte a revelar-se acertada a previsão do jornalista americano de Hotel Ruanda (interpretado por Joaquin Phoenix):


“I think that when people see this footage [of the attacks] will say ‘Oh my god, it’s horrible’… and then will keep eating their dinners”.


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