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Sete Palmos de Terra (ou de vida?)

  • Foto do escritor: Vicente Correia
    Vicente Correia
  • há 3 dias
  • 3 min de leitura

É ao som de Radiohead, já a meio da série, que nos deparamos com a família Fisher à volta da fogueira. Juntos, mas separados. Uma espécie de ilhas. Cada um dentro da sua própria escuridão. Mas há pontos de contacto. Há amor ali – nem sempre óbvio, nem sempre demonstrado. Como em todas as famílias. E eis que o ecrã de televisão se vai tornando espelho. Eu sou um pouco daquela família. Somos todos. Seremos todos. Ainda que tenham passado vinte anos desde o fim da série (sobre a morte?) que, afinal, era sobre a vida. 


Foi numa noite de junho, de comando na mão, com a televisão a seguir uma qualquer ordem que desconheço. Paro na imagem de um carro verde (por sinal, funerário) a seguir em frente. A rapariga ao volante, os cabelos ruivos fora do carro. E eu, sem saber porque é que tinha parado ali. Comando na mão. Começou o episódio. O genérico. Minutos depois, a morte. Inesperada. Banal. Implacável (como sempre). 


Era assim em todos os episódios: uma morte. Desde a mais comum à mais bizarra. A mulher que confunde bonecos pornográficos com anjos e é atropelada. O homem que vai buscar o jornal que tinha caído e é atropelado pelo próprio carro. A mulher atingida pelo lixo de um avião. O homem que vai até à funerária, estaciona o carro e morre. A funerária dos Fisher, que é onde a série se desenvolve. O pai morreu. Ficaram a mulher e os filhos. Todos diferentes e, ainda assim, todos tão parecidos. Diz-se que é uma família disfuncional. Tendo a discordar. Talvez sejamos todos pouco funcionais. Não é isso, afinal, ser humano?


E se há série que nos representa em todas as nossas virtudes e contradições, é Sete Palmos de Terra. Estão lá a bondade, a maldade, os erros, as falhas, os medos, as ilusões e as desilusões. As alegrias e as dores. E o luto – essa experiência universal e, ao mesmo tempo, profundamente pessoal. E, no meio disso, há o humor. Sempre presente, porque a vida é também isso – tragédia e comédia – e, às vezes, coincidem. É sobre a vida tal como ela é. Sobre aquelas pessoas e as suas lutas. Os dilemas e os conflitos interiores. E, no meio disso, encontramos sempre alguma espécie de compreensão e empatia. Como se nos revíssemos nas suas questões e nos seus problemas. Como espelhos onde nos vemos em todas as nossas facetas, até aquelas que não sabíamos que tínhamos. Sai-se de cada episódio com a sensação de que nos entendemos melhor a nós e aos outros. E que cada um dos personagens é um pouco de nós. Eu sou a contenção do David, o medo e a vontade de viver do Nate, a loucura da Brenda, a força e a fragilidade da Ruth, a ternura e a raiva do Keith e a sensibilidade da Claire. Torcemos por eles, não porque agem sempre de forma correta (e o que é isso de agir bem?), mas porque nos mostram toda a sua humanidade. Tal como nós, sempre imperfeitos, às cegas, à descoberta do Mundo e dos outros. 


Parece estranho que uma série mexa tanto connosco. Afinal, é ficção. Mas esta é diferente. Agarra-nos de uma forma que nenhuma outra consegue. Talvez seja pelo facto de lidar com a morte, esse conceito que continua a ser tabu, do qual não queremos falar, que rejeitamos. E que aqui somos obrigados a enfrentar. Essa que começa cada episódio e que se torna companheira. A única coisa certa. 


Cada episódio é um mergulho no humano, no real. Naquilo que somos, nas relações que estabelecemos com os outros, nos nossos medos e desejos, enfim, na nossa finitude. Não cai no melodramático, nem nos oferece respostas fáceis. Obriga-nos a segui-los e, pelo caminho, vamos-nos apercebendo de que somos muito mais parecidos com eles do que imaginávamos – de que a série que, na aparência, seria sobre a morte, é, afinal, sobre a vida na sua representação mais honesta.


Foi numa noite de agosto. De comando na mão, com a televisão a seguir uma qualquer ordem que desconheço. Paro na imagem de um carro verde (por sinal, funerário) a seguir em frente. A rapariga ao volante, os cabelos ruivos fora do carro. E eu, finalmente, a saber porque é que tinha parado ali. Comando na mão. Começou o episódio. O genérico. Era o fim – implacável, como sempre. 


E o amor, não o de novela, mas o amor real, profundo, imperfeito. Os instantes que fazem a nossa vida. Mas que vão. Acabam. Fotografemos o instante. Ainda que ele passe.  


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“Tu não és uma gota no oceano, tu és o oceano numa gota”

Poeta muçulmano (Pérsia, século XIII)


Vicente Correia

Departamento Cultural

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