Entrevista a Sofia Cabrita
Atriz, encenadora, locutora e professora, desenvolve o seu trabalho artístico no âmbito da criação de espetáculos a partir de pessoas, histórias e lugares, usando as máscaras e os objetos como mediadores desses espetáculos-encontro.
É pós-graduada em Comunicação e Artes pela FCSH, formada pelas escolas de Teatro do Gesto Estudis de Teatre (Barcelona) e Kíklos-Scuola Internazionale di Creazione Teatrale (Pádua) e licenciada em Formação de Atores-Encenadores pela ESTC. Leciona Teatro do Gesto e Máscaras desde 2003, no ensino artístico superior (ESTC, ESMAE, ESAD, Un. Évora e ESTAL), no ensino profissional e em escolas de ensino não formal.
Encenou e colaborou com várias Companhias de teatro e criadores. Apresentou criações em Espanha, Itália, Venezuela e Brasil. Foi bolseira da DGARTES no Brasil, num projeto de teatro de máscaras e pesquisa em tempo real, com o Grupo de Teatro Público. Foi aluna de Donato Sartori, no Seminário Internazionale - L´Arte della Maschera, em Abano.
Enquanto arte-educadora, colabora com o Serviço do Museu Gulbenkian desde 2012 e tem estado ligada a vários projetos de formação sobre práticas artísticas aplicadas a contextos não artísticos.
Colabora como formadora de mediadores com a EGEAC, DMC e Plano Nacional das Artes. Foi a responsável artística do projeto de teatro e literacia, no Conselho Português para os Refugiados (CPR) – PARTIS I e colaborou no PARTIS III com o Projeto Lado P, no Estabelecimento Prisional de Caxias. É ainda coautora da obra “Caderno de Práticas Teatrais para a Aprendizagem da língua”, com Isabel Galvão.
@ZOV
De onde surgiu a motivação para escolher o teatro? Foi influenciada por alguém? Ou por alguma circunstância em concreto?
Quem me conhece desde miúda sabe que o teatro sempre me interessou. Sou mesmo um cliché! Talvez o facto de os meus pais sempre me terem levado ao teatro, à ópera, a concertos, museus, exposições de artes plásticas, a viajar, sempre me terem exposto à cultura artística, tenha tido uma forte influência também. Infelizmente, a fruição cultural ainda não é um bem acessível a todos nem a todo o território nacional… Já conheci muitas crianças, jovens e adultos que nunca foram ao teatro – fica a nota.
Havia, na verdade, muitos assuntos que me interessavam, queria poder ser e conhecer muito, achei (e bem), que o teatro podia trazer essa multiplicidade à minha vida, não só por poder representar personagens várias mas porque o teatro abrange muitas áreas: da História, à sociologia, antropologia, literatura, línguas, até ao Direito... Já trabalhei num Estabelecimento Prisional e tive de aprender muito sobre o sistema prisional para ajudar a pensar o documentário e para entender muitas das coisas que acontecem nesse contexto.
De resto, os meus pais e professores sempre me incentivaram, nunca me tentaram dissuadir, pelo contrário. Estudei em Barcelona, em Pádua, licenciei-me na ESTC, comecei a trabalhar logo que pude e continuei sempre a viajar e a estudar.
Que mulheres na sua área profissional, ou fora dela, considera como referência no exercício do seu trabalho?
Estas perguntas são sempre difíceis porque implicam, eventualmente, deixar alguém de fora. Inspiram-me grandes artistas e também grandes mulheres (não artistas). Pensando em artistas, pelo seu trabalho, lembro-me neste momento de Helena Almeida, Ana Vieira, Ana Hatherly, Deb Margolin, Ariane Mnouckine, a atriz Giuletta Masina, também as escritoras Susan Sonntag, Paulina Chiziane… São muitas as mulheres que me têm influenciado e, dependendo do momento em que estou, são referências importantes. Menos conhecidas dos outros, são as mulheres que me rodeiam no dia-a-dia, da família às amigas e colegas de trabalho, tenho a sorte de estar muito bem acompanhada!
Qual a palavra que melhor define a atriz Sofia Cabrita, ou que gostasse que definisse?
Por estranho que pareça, não será “atriz” a palavra que melhor ajuda a definir o que sou e faço. Tenho trabalhado mais como encenadora e professora de teatro do que como intérprete. Conforme fui definindo o meu caminho como artista, fui encontrando na encenação um lugar de liberdade e criação que não encontrava no trabalho de atriz. Uma espécie de urgência em comunicar. Comunicar é uma boa palavra. Penso que é isso que estou constantemente a tentar fazer através do teatro, nas suas várias vertentes.
As desigualdades de género verificam-se na sua área de trabalho? Que exemplos pode dar das mesmas que tenha atravessado ou que ainda atravesse?
O teatro ainda tem uma presença masculina muito mais forte do que a feminina, embora esteja melhor do que há vinte anos atrás, quando comecei. Os meus professores de disciplinas práticas foram quase todos homens, os dramaturgos que estudámos também, os encenadores e diretores de Companhias então, nem se fala…
Se olharmos com atenção, vemos que ainda é assim, está bastante melhor, mas infelizmente ainda há que fazer um esforço acrescido para que exista igualdade de género (nos concursos a apoios financeiros é valorizada a paridade, há concursos de dramaturgia feminina, para cargos de direção é preciso lembrar que escolher uma mulher pode ficar bem, etc..). Eu sou mãe de 3 filhos e uma das coisas que sempre me preocupou foi como fazer com os horários de trabalho, que são sobretudo noturnos e aos fins-de-semana, e com as digressões e viagens que algumas encenações implicam.
Acredito que uma mulher nesta área tem dificuldades acrescidas no que respeita ao tempo com a família e sei que sim, pode ser preterida em relação a outras colegas. Eu e o meu companheiro gerimos juntos estes horários e viagens, mas quando percebem que estou a vários km de casa e por vários dias, ainda há quem me pergunte: “Então e os miúdos, ficaram com quem?”
Quais os pormenores que distinguem a Sofia no seu trabalho dos demais profissionais na sua área?
Não sei responder. A única coisa que talvez seja verdade é que tenho uma área de especialidade ligada às máscaras e ao teatro que assenta mais nas linguagens do corpo e dos objetos e é nessa área de pesquisa que tenho desenvolvido o meu trabalho. Sou professora de Técnica da Máscara, construo espetáculos com máscaras e objetos e é uma zona de criação teatral menos comum em Portugal.
Na área do teatro, quais considera serem as principais necessidades a satisfazer das atrizes? Tanto no local de trabalho, como no exercício de funções. Estão elas satisfeitas?
Somos todas diferentes, mas do que observo, diria que ainda existem padrões e estereótipos sexistas sobretudo para televisão, cinema e para teatro (ainda que menos). Padrões estéticos que se sobrepõem à competência profissional e que devolvem às atrizes e ao público uma “personagem-tipo”, altamente ultrapassada e desajustada da realidade.
Quanto à maternidade, poderia haver um ajuste de horários de trabalho para quem tem filhos pequenos, sem que isso constituísse um problema para as equipas ou sem que trouxesse a sensação de encargo para a produção, devia ser uma opção mais comum.
Que palavras tem para as jovens estudantes na sua área que ambicionam atingir o sucesso da Sofia? Para que devem elas estar preparadas?
Como dou aulas em licenciaturas em Teatro e Formação de Atores, já estou habituada a um discurso motivacional e às vezes “desmotivacional”. O sucesso, como vocês dizem, é medido de maneira diferente a cada projeto, a cada etapa. Ser atriz ou ator é uma montanha russa: artista e material coincidem, temos de cuidar da nossa saúde física e mental, manter uma prática técnica e artística, ter ética de trabalho, escutar os outros, saber o que é trabalhar em equipa e ser consciente da importância de cada função (o teatro é feito por um coletivo), conhecer os processos burocráticos e os direitos laborais, saber o que é preciso para levantar um projeto, manter-se ligado ao que acontece no mundo, ter uma postura crítica e respeitar imensamente o que nos rodeia.
A Sofia já participou em diversas peças, relativas a várias histórias, sobre os mais diversos temas. Na sua opinião, qual aquela que mais a cativou, e porquê?
Já participei em muitas criações, sim, mas o que mais gosto de fazer são espetáculos que tenham um lado documental, histórias que ainda não foram escritas - às vezes pequenos nadas, outras vezes grandes temas. O espetáculo que mais guardo é, claro, o primeiro que concebi e dirigi. Chamava-se “Aniñando”, era uma tragicomédia sobre a solidão, estreou em 2005 e pude trabalhar com atrizes que admiro muito e que são grandes amigas, pude escolher toda a equipa e definir o processo de criação (bilingue), tive espaço para experimentar e para errar, e isso é um privilégio raro. Pesquisámos e trabalhamos à distância (por cartas, não por Zoom!), durante um ano.
Depois, o que mais me cativou e cativa são os projetos que implicaram conhecer outras realidades, outras histórias que valem a pena serem contadas, como as dos objetos perdidos em Lisboa e guardados na PSP, ou a da Mina de S. Domingos, em Mértola, onde estou agora a trabalhar com uma aldeia inteira e que estreia em junho.
De todas as funções que uma atriz pode desempenhar, qual a que considera mais apelativa? E qual a que considera menos apelativa?
Considero mais apelativo um trabalho em que a criatividade e o potencial da atriz são convocados para o processo e para o resultado final e menos apelativo um trabalho de interpretação que seja muito dirigido, com menos espaço para a descoberta e para a participação.
A imagem que a população tem dos atores é a adequada na sua opinião? Caso não seja, qual considera que devia ser?
Acho que ainda existe aquela ideia de glamour associada ao trabalho de ator ou atriz, uma criatura que nasceu com um talento e que só tem de o pôr ao serviço e no fim receber aplausos. Isto não é a realidade. Por outro lado, imagina-se o ator como alguém que está totalmente sujeito à flutuação do mercado, à espera de ser chamado para um trabalho, sem poder fazer nada em relação a isso. Esta segunda parte é parcialmente verdade, no sentido em que um ator está realmente dependente de ser escolhido ou convidado, mas a maioria dos atores que conheço trabalham fora da cena noutras áreas do teatro, criam oportunidades, especializam-se, geram trabalho.
Sabemos que quando há instabilidade profissional, não há glamour nenhum e se alguém escolher esta profissão à procura disso, escolheu mal. Por outro lado, senti sempre muito carinho e admiração da parte do público e das pessoas a quem o meu trabalho chega. Em Portugal é muito difícil ser ator e viver disso, começando pela precariedade a que este sector como um todo está votado, sem que o Estado se disponha a entender realmente o que é preciso e como funcionam as profissões da área da cultura.
Numas últimas palavras, o que considera a Sofia ser de extrema importância partilhar com os leitores do jornal?
Vão ao teatro, façam teatro universitário, defendam o acesso da população à cultura (toda a gente, em todo o território)!
Pedro Vara
Departamento Grande Entrevista
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