A Liberdade também se faz à Moda do Porto
- Rita Ferreira, Vitória Ferreira
- há 15 horas
- 11 min de leitura
Quando se fala do 25 de Abril de 1974, a memória coletiva tende a fixar-se em Lisboa — nos tanques a descer a Avenida da Liberdade, no cerco ao Quartel do Carmo, nas transmissões da Rádio Clube Português. Mas a Revolução dos Cravos não se confinou à capital. Foi o culminar de décadas de resistência dispersa, de pequenas e grandes lutas que se fizeram sentir de norte a sul do país. Muito antes da madrugada revolucionária, já se tinham levantado vozes contra a repressão — como no Porto, onde, em fevereiro de 1927, teve lugar a primeira revolta contra a ditadura militar que viria a dar origem ao Estado Novo. O Porto, historicamente conhecido como Cidade Invicta e palco de diversas manifestações de resistência, não poderia ser esquecido numa data tão significativa como o 25 de Abril.
Neste contexto, O Tribuna entrevistou representantes da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), que viveram na primeira pessoa o pulsar da resistência na margem norte do Douro e, agora, partilhamos seus testemunhos sobre a vida antes e depois da Revolução dos Cravos.
Maria José Ribeiro, presa 2 vezes pela PIDE, integrou a Comissão de Jovens de apoio à candidatura do General Humberto Delgado às eleições presidenciais de 1958, foi Presidente do Sindicato dos Profissionais de Seguros e membro da Assembleia Municipal de Matosinhos. Encabeçou, ainda, no Dia da Mulher de 1962, a manifestação “Pela Paz, contra a Guerra Colonial”, que reuniu milhares de pessoas na Praça da Liberdade e foi alvo de brutal carga policial.
José Manuel Dantas Ferreira, advogado, natural da Póvoa de Varzim, pertencente à Comissão Nacional do Movimento Democrático Português, foi, também, professor, administrador, formador de Direito do Trabalho e membro da Assembleia de Freguesia de Paranhos.
Manuel Barra foi operário metalúrgico na Sonafi, EMIR, dirigente do Sindicato e da Federação Nacional da Metalurgia e Metalomecânica e da União de Sindicatos do Porto e ativista na Comissão de Jovens do Sindicato, no Movimento de Jovens Trabalhadores e na Juventude Operária Católica. Atualmente é presidente da delegação do Porto da Associação Portuguesa de Deficientes.
1 – Como foi viver o ambiente pré-revolucionário na cidade do Porto, desde os eventos com maior destaque aos mais pequenos atos de resistência quotidiana?
Maria José Ribeiro: Direi que o ambiente pré-revolucionário foi vivido durante os 48 anos de regime fascista, pois a esperança de mudança esteve sempre presente na vida de cada um – dos que resistiam com a certeza de que um dia a situação iria alterar-se e o povo português iria viver, finalmente, em liberdade e com acesso aos direitos que lhe eram devidos, tal como dos que, tolhidos pelo medo, não evidenciavam os anseios de mudança, mas acreditavam que um dia aconteceria.
Apesar da opressão, da repressão, da violência e da prisão, resistia-se, lutava-se contra a miséria, pelo trabalho, pelo pão, contra a exploração, pelo ensino, pela Liberdade, pela Paz, e contra a guerra. Disso são exemplo as várias lutas travadas a todos os níveis: nas fábricas, no campo e no mar, nas escolas e nas ruas; no Porto, como noutros locais. A greve era proibida, e eram reprimidos os que a usavam como arma de luta. Mas, sempre que necessário, os trabalhadores a ela recorriam.
Durante os 48 anos de ditadura, muitos foram os eventos, com maior ou menor expressão, que se sucederam. Nos períodos eleitorais com que o regime mascarava a falta de liberdade e a Oposição, o povo aproveitava para se manifestar, sobretudo, na celebração de datas que lhes eram queridas.
Fruto dessa resistência tenaz e criativa, recordo o III Congresso da Oposição Democrática, realizado em abril de 1973, na cidade de Aveiro. Milhares de pessoas nele participaram, apresentando teses sobre todos os problemas que nos afligiam, entre eles a Guerra Colonial, demonstrando maturidade e inspirando. Inclusive, o Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) concretizou, com a sua ação, a luta resistente travada por tantos e tantas durante quase meio século de regime fascista. Devolveu-nos a liberdade de expressão e manifestação, aboliu a censura, instituiu o direito universal ao voto, e a eleições livres, pôs fim à Guerra Colonial e criou condições para que fosse eleita a Assembleia Constituinte que votou a Constituição da República, que ainda hoje, 50 anos volvidos, continua a ser a mãe de todas as leis.
Manuel Barra: Falando da minha experiência em particular, desde 1970 que participei na Juventude Operária Católica, na Comissão de Jovens do Sindicato dos Metalúrgicos do Porto e no Movimento da Juventude Trabalhadora (MJT), que tinha uma vertente mais política, bem como nas atividades do MDP/CDE, na atividade mais geral da resistência política e no III Congresso da Oposição Democrática em abril de 1973, em Aveiro. Seguidamente integrei uma comissão de jovens para participar no X Festival da Juventude, em agosto de 1973, na RDA. Em novembro de 1973, participei numa reunião em Itália com a presença de membros do Comité Central do PCP, para discutir o trabalho da juventude na luta contra a resistência. Em 1972, participei ativamente numa manifestação sobre o custo de vida e a Guerra Colonial, na baixa do Porto, em que a polícia e a PIDE exerceram repressão e prenderam vários manifestantes.
No São João de 1973 colaborei na distribuição das teses do III Congresso da Oposição Democrática de Aveiro e protestei contra a carestia de vida e contra a Guerra Colonial. Junto à Igreja dos Congregados apareceu a PIDE de pistolas na mão, mas os presentes reagiram e, antes de dispersar, um camarada deu um murro num PIDE.
Participei, ainda, nas assembleias do Sindicato dos Metalúrgicos do Porto, em defesa do contrato coletivo de trabalho, assembleias essas muito concorridas e vigiadas pela PIDE. Enfim, acompanhei sempre a luta da resistência e sinto orgulho em ter contribuído para a mudança de regime.
2 – O 25 de Abril foi um dia inesquecível para o país, mas, também, para muitos a nível pessoal. O que mais o marcou nesse dia? Há alguma memória que nunca esqueceu?
Dantas Ferreira: O dia 25 de Abril… ainda o vivi com alguma apreensão, pois, embora fosse acompanhando as notícias pela rádio e tivesse já a informação de que algo acontecera, havia dúvidas sobre o tipo do golpe.
Tinha-se medo que fosse um golpe de direita, organizado pelo Kaúlza, oficial militar fascista. Só já mais tarde, durante a noite, fui percebendo que o golpe havia sido dado por militares de esquerda e aí descansei e vivi a esperança de uma mudança de regime que trouxesse a liberdade e uma vida melhor para o povo que tinha vivido 48 anos sob um regime opressor, terrorista e fascista. A memória mais agradável e esperançosa do dia 25 de Abril de 1974 foi a participação numa manifestação na baixa do Porto de várias dezenas de pessoas que exigiam o fim do fascismo, reprimidos, ainda, pelas forças policiais. Para quem, desde os 18 anos, desejava a queda do regime fascista e havia lutado para tal desiderato, essa tarde foi uma lufada de alegria e esperança de que o povo estava com a mudança e o fim da opressão, o que veio a confirmar-se com a libertação dos presos políticos da PIDE, na Rua do Heroísmo e no 1º de Maio, após o golpe.
Manuel Barra: Cerca de duas semanas antes do 25 de Abril tive a informação de que iria acontecer alguma coisa, ainda, antes do 1º Maio.
Nesse dia, parti para a baixa do Porto, onde assisti à explosão de alegria de muita gente que euforicamente gritava pelo fim do fascismo, pela instauração da liberdade e contra a Guerra Colonial. Engrossei a manifestação que, nesse mesmo dia, se verificou junto à sede da PIDE, na Rua do Heroísmo, ato que, ainda hoje, relembro com emoção.
3 – Após a queda do Estado Novo, o país mergulhou num período de grandes transformações, marcado tanto pelo entusiasmo popular como pela incerteza. No Porto, cidade com forte consciência social e política, esse momento viveu-se de forma intensa. Como descreveria o ambiente nas ruas do Porto nos tempos que se seguiram à Revolução?
Maria José Ribeiro: O ambiente nas ruas do Porto, nos tempos que se seguiram à Revolução, foi, sem dúvida, de alegria e confiança. Muitos deixaram de ter uma noite seguida de sono, tal era a sede de liberdade e de descoberta da sua identidade. Todos os dias renovava-se a vida, as pessoas sentiam-se, naturalmente, convocadas para participar na construção de um país novo. Como por encanto, olhava-se o “outro”, antes desconhecido, como um amigo, com um sorriso aberto, uma vontade imensa de partilhar sonhos e de os concretizar.
As mulheres, a quem tudo fora negado pelo regime opressor e apenas era lícito ter a casa como horizonte, descobriram dentro de si a força que as impulsionou a vir para a rua tomar o seu lugar na sociedade que queriam construir. Alegria, Esperança, Confiança! Porém, aqui e além, algo estranho ia acontecendo que quem vivia este sonho lindo se recusava a aceitar. Eram os ventos do antigamente a soprar…
Nas eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras eleições livres, foi comovente e exaltante ver-se as imensas filas que, desde o local mais recôndito à mais aberta cidade, se formaram junto às mesas de voto. Mulheres e homens, partilhando alegremente o mesmo espaço e o mesmo objetivo sem restrições. Uns e outros, com o seu voto, podiam expressar o que queriam para as suas vidas, num país em que a palavra “Democracia” ainda soava a estranho, mas se sabia ser algo bom para todos.
Dantas Ferreira: A queda do regime fascista trouxe para a rua todos os portuenses que vitoriavam a mudança, os militares revoltosos e a liberdade. Notava-se nas pessoas a alegria esfuziante e a solidariedade, procurando, desde logo, tomar nas suas mãos o destino pessoal e coletivo.
Pela primeira vez, praticava-se uma democracia participativa em que as pessoas se agrupavam para resolver os seus problemas mais imediatos, sem esperar pela intervenção da governação, e tudo isto com muita alegria.
4 – Quando ouvimos os testemunhos de quem viveu a Revolução dos Cravos, a palavra "esperança" surge quase sempre — esperança na mudança, na liberdade, num país mais justo. Que esperanças tinha para o futuro naquele momento? E, olhando para estes 50 anos de democracia, sente que essas esperanças se concretizaram?
Manuel Barra: A Revolução do 25 de Abril criou a esperança e a ilusão de se conseguir pôr ao serviço do povo um novo regime que promovesse a liberdade, melhores condições de vida e que acabasse com a Guerra Colonial e a escravidão no trabalho. Esperava, também, a criação de um salário mínimo para todos os trabalhadores, a fim de melhorar o seu modo de vida.
Em determinado período após o 25 de Abril, essa esperança tornou-se realidade, contudo, depois, regrediu com o golpe do 25 de Novembro. Daí a importância de continuarmos a lutar.
Dantas Ferreira: A esperança de toda a gente, incluindo a minha, era que se instalasse um regime democrático, com as mais amplas liberdades, a melhoria da vida dos mais desfavorecidos, a resolução da Guerra Colonial, que havia sacrificado milhares de jovens, sangrando a Nação, uma economia que servisse todos sem exceção e o castigo dos algozes que haviam sacrificado, matado e oprimido os portugueses, nomeadamente a PIDE e outras forças que com ela colaboraram.
Esperança que foi aumentando à medida que os primeiros governos revolucionários, o Conselho da Revolução e a figura excecional e inesquecível do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves adotaram medidas nesse sentido, como a instituição do salário mínimo, as nacionalizações, a Reforma Agrária e as eleições para a Assembleia Constituinte... Esperança que se desvaneceu com a traição de alguns militares, do PS e das forças de direita, concretizada no golpe de 25 de Novembro de 1975, a partir do qual houve uma perda de direitos, com sacrifício, sobretudo, dos trabalhadores e das camadas mais desfavorecidas da população. Razão porque não podemos dizer que aquela esperança, 50 anos depois, se tenha concretizado e pior: encontra-se hoje mais ameaçada. Porém, acreditamos no Povo e nas forças mais progressistas do nosso país para que todas as esperanças, com luta, se concretizem mais cedo do que tarde.
5 – A Constituição de 1976 foi um marco essencial na institucionalização da democracia e na consagração dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Que importância atribui à Constituição como instrumento de concretização dos valores do 25 de Abril? Há aspetos constitucionais que, no seu entender, carecem de revisão à luz dos desafios atuais?
Maria José Ribeiro: A Constituição da República Portuguesa foi mesmo aprovada – ainda que alfinetada por forças, poucas, a quem continuava a incomodar o que o seu Preâmbulo e tudo o que soava a conquistas de Abril, em termos de direitos e garantias, ainda continha. Essa Constituição, com os seus 49 anos de vida, cumpridos no passado dia 2 de Abril, embora amputada aqui e além, continua a manter o seu esteio e a ser o garante e consistência do regime em que vivemos, que Abril nos proporcionou. Por mim, penso que não é de revisão que precisa, mas de concretização, porque continua atual nos seus princípios. Há que lê-la, relê-la, estudá-la, para melhor a sabermos defender.
Os desafios atuais, com os perigos que comportam, precisam de ter como orientação aquilo que, nos seus mais importantes artigos, a Constituição consagra. Nada de fascismos, nada de guerra. Sim, de progresso social, de igualdade de oportunidades em todas as esferas da vida, de respeito pela cidadania, de cooperação entre os povos, de Paz.
Dantas Ferreira: A Constituição da República Portuguesa, escrita e aprovada em 1976 pela Assembleia Constituinte, é a raiz matricial do regime, a Constituição mais progressista da Europa, apesar das sucessivas alterações que as forças de direita com o apoio do PS conseguiram aprovar. Ainda subsistem na nossa Constituição os princípios e as bases suficientes para se cumprir Abril, sem necessidade de a alterar mais. É necessário, porém, aplicá-la e cumpri-la, o que, neste momento, não acontece.
6 – Com a rutura abrupta com o regime ditatorial e a tentativa de destruição de documentação por parte dos que pertenciam ao regime, sente que ficaram questões por resolver ou por esclarecer — sobretudo no que diz respeito às prisões políticas ou à atuação da PIDE no Porto?
Maria José Ribeiro: No que respeita à PIDE e os seus horrores, a primeira questão não resolvida foi o julgamento real da Polícia Política – PIDE –, sustentáculo do regime fascista que oprimiu o povo português durante décadas. Os documentos, em sua grande parte, foram enviados para o Arquivo Nacional na Torre do Tombo, onde podem ser consultados.
A outra questão – a preservação da memória histórica e a sua difusão, a partir dos locais onde a ação foi desenvolvida pela Polícia Política – tem vindo a ser tomada em mãos, nomeadamente, pela URAP e outras organizações afins, de molde a que esses espaços de horror sejam transformados em museus, como o já conseguido Museu da Resistência e da Liberdade do Aljube, em Lisboa, e o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche.
No Porto, continua de pé o edifício que foi a delegação da PIDE no Norte e prisão por onde passaram, durante mais de quarenta anos, um número superior a 7.600 cidadãos, presos, torturados e até assassinados. Nele está instalado, desde 1980, o Museu Militar do Porto, onde deveria estar o Museu da Resistência. Não se entende que assim seja. Se é certo que a Revolução de Abril foi feita com intervenção militar e foram os militares que libertaram os presos políticos e acabaram com a PIDE, também era expectável que o edifício fosse reservado à memória daqueles milhares, homens e mulheres, que resistiram e contribuíram para a queda do regime e que ali foram presos e violentados. Mas não: precisavam de um espaço para juntar o espólio disperso por outros locais, inebriaram-se e foram surdos aos protestos da população do Porto, que, desde sempre, tem clamado pela existência do Museu da Resistência no Porto no edifício da Rua do Heroísmo, 329.
A URAP lutou para conseguir que lhe fosse confiado um espaço para que, enquanto o Museu não existir, ali seja preservada a memória da resistência, através do Projeto Museológico “do Heroísmo à firmeza”. Está, também, em curso, um abaixo assinado, promovido pela URAP, com vista a serem criadas condições para o edifício ser ocupado pelo “Museu da Resistência” no Porto.
Manuel Barra: É evidente que ficaram muitas questões por resolver, o que não é de admirar, visto que os juízes que julgaram os PIDE eram, na sua maioria, homens da confiança do regime fascista. Faltou afastar os juízes comprometidos com o Estado Novo e substituí-los por outros progressistas e empenhados na mudança necessária. Já nessa época as forças saudosistas do fascismo manobravam no sentido de evitar grandes mudanças.
No Porto, a PIDE torturou inúmeros resistentes e matou outros, sem que esses crimes fossem punidos. Penso, também, que se não fez, ainda, aos presos políticos o reconhecimento que merecem pela vida pessoal que sacrificaram em prol do país. Comportaram-se como autênticos heróis. Ainda falta cumprir Abril.
Rita Ferreira e Vitória Ferreira
Departamento Grande Entrevista
Commenti