Ainda mal comecei a escrever e já sinto metade dos leitores a revirar os olhos perante um assunto tão batido como é o da misoginia. “É uma coisa do passado! As mulheres já têm oportunidade de trabalhar, de estudar, de votar!”. Tentam fazer esquecer o facto de que tais direitos, como muitos mais, lhes foram barrados até há menos de um século. Mas o que é um século na História do mundo? Pouco ou nada importa, porque a mente colmeia da Humanidade mantém a memória muscular desta discriminação, que se continua a manifestar nos mais ínfimos detalhes.
As meninas hoje em dia podem ter oportunidade de estudar e construir a sua vida, mas ainda lhes pesa sobre os ombros a imposição de “cumprir o seu propósito” de ter uma família, de procriar. E ai dela que não queira! Uma mulher pode fazer toda uma vida para si mesma, para o seu conforto, cumprindo os seus objetivos pessoais, mas existirá sempre, sempre, alguém que olhará para ela e dirá: “Sim, mas não há modo de arranjar marido! Infeliz! Coitadinha!” Ora pois claro! Porque afinal a vida de uma mulher, o seu corpo, a sua voz, nunca lhe pertence a ela; pertence a alguém que ela ainda não conheceu, alguém que virá para lhe dar valor porque, aparentemente, isso não é algo que lhe é inerente.
Numa cínica tentativa de apaziguar a culpa, a sociedade aclama uma cultura individualista e de extravagância na internet, largamente protagonizada por mulheres, tão expostas e ofuscadas pelas luzes das suas vanity desks que não notam o desdém. A própria expressão “vanity”, o nome que atribuem a um objeto que mulheres usam para enaltecer a sua própria beleza, significa vaidade negativa, presunção. É irónico, não é? Ela que aprecie a sua beleza, mas não demasiado! Lembrem-se das vossas lições, meninas: As flores mais bonitas são sempre colhidas primeiro. Há sempre alguém à espreita e, hoje em dia, a tecnologia permitiu uma maior facilidade e, principalmente, impunidade dos crimes de misoginia. A desumanização da mulher cresce a um ritmo alarmante, reduzindo-a a uma imagem bonita para ser partilhada para o prazer masculino em fóruns de conversa, em redes sociais, como se a sua intimidade fosse um assunto público!
Porque não há uma maior fiscalização de quem pratica este tipo de atos? Porque não são eles perseguidos até serem descobertos e as suas identidades, as suas caras, as suas vidas, expostas ao mundo como foram as das suas vítimas?! A resposta é simples: simplesmente não é viável. Aparentemente é muito difícil para os órgãos de autoridade e de justiça aplicar punições aos milhares de agressores (porque é precisamente isso que eles são); afinal, tantas vidas estragadas, tanta chatice! As vítimas, de gerações passadas e futuras? Elas que se acautelem! Que continuem a criar as meninas com paranóias, versadas em todo um leque de formas de olhar por cima dos ombros e antecipar ataques; elas que amadureçam mais rapidamente que a sua contraparte masculina, para serem capazes de decifrar intenções nefastas escondidas por detrás de palavras adocicadas.
Como Ícaro, todas as meninas nascem para construir asas de sonhos e cera e, como o Deus Sol, haverá sempre alguém pronto para as incendiar se estiverem no seu alcance. Conta com a indiferença da sociedade que, de olhos baixos, sabe evitar ser ofuscada pela selvageria de tal ato. E é apenas conforme o corpo, de todos e de ninguém, despenca para o abismo, que a sociedade olha com resignação e pena ensaiados para aquela cena tão triste. Sacodem as cabeças e resmungam: “Ai que tristeza! Afinal, porque não ficou ela em casa?”
Não confundam este devaneio indignado com vitimismo. O ódio é uma arma e a misoginia é um dos tipos de ódio mais perigoso porque é tolerada. Os factos falam por si. Chegámos ao absurdo de ver uma imposição total de silêncio sobre toda uma nação de mulheres: mães, filhas, irmãs cujas vozes não existirão para ninguém a não ser o homem que as possua. É por isso que devemos insistir, que não devemos ficar em silêncio. A revolta será sempre justificada enquanto existir medo e opressão; enquanto existirem lugares onde até um inseto tem mais direito de existir do que uma mulher.
Madalena Almeida
Departamento Crónicas
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