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Foto do escritorFrancisca Bastos

A misoginia não só não está extinta como vive bem confortável na nossa sociedade

O seguinte texto foca-se em casos de abuso sexual e de violência doméstica. Sendo o seu conteúdo bastante descritivo e podendo ferir suscetibilidades, recomenda-se que a pessoa leitora tenha este aspeto em consideração antes de iniciar a leitura do artigo.


Gisèle Pélicot


Está, neste momento, em julgamento o caso segundo o qual Gisèle Pélicot, de 72 anos, foi violentamente abusada durante cerca de uma década. Abusos que remontam a 2011 e que se estendem até 2020, e só agora é que o caso é levado à justiça. Porquê? Gisèle só tomou conhecimento do seu abuso por mero acaso, e nunca sequer o questionou por estar tremendamente sedada.


Em 2020, Dominique, de 71 anos, à data marido de Gisèle, foi apanhado a filmar as saias de clientes de um supermercado local. A polícia, ao examinar a casa da família em Mazan, uma pequena aldeia no sul de França, encontrou milhares de fotografias e vídeos de Gisèle no computador, numa pasta intitulada Abuso. Gisèle estava visivelmente inconsciente e, sobretudo, em posição fetal.


Não era só Dominique que violava a sua esposa. Sob pseudónimo, recrutava, no fórum Sem o seu conhecimento num site encerrado pelos tribunais em junho deste ano, homens desconhecidos para que também violassem Gisèle. Os investigadores contaram aproximadamente 200 episódios de violação – maior parte cometidos pelo seu marido, e mais de 90 por estranhos por ele recrutados. 


Apesar de Dominique afirmar que só fazia login no site ocasionalmente, foram encontradas várias conversas nas quais, por vezes, chegava mesmo a utilizar o termo violação, e dizia aos “candidatos” a agressores sexuais de Gisèle que lhe administrara comprimidos para dormir, permitindo-lhe abusar dela através de práticas que ela normalmente recusaria.


À grotesca questão colocada por parte dos advogados dos arguidos sobre se o casal tinha tido uma relação aberta ou se era credível que Gisèle nunca tivesse notado nada durante a década de abusos, Gisèle responde dizendo trataram-me como uma boneca de trapos, e acrescenta que só teve coragem de assistir às provas do seu violento e continuado abuso em maio deste ano, em preparação para o processo judicial. Não me falem de cenas de sexo, são cenas de violação.


Durante uma das sessões no tribunal, foi relatado que os investigadores encontraram ainda, no computador de Dominique, fotomontagens da sua filha com Gisèle, nua, numa pasta chamada À volta da minha filha, nua – a vítima, que também não tinha consciência do abuso sexual que sofreu, desfez-se em lágrimas e saiu da sala a tremer junto dos seus dois irmãos e do seu advogado.


Foram contabilizados cerca de 72 suspeitos no caso, de entre os quais foram identificados e localizados somente 51, sendo que um deles está a ser julgado à revelia – as autoridades não sabem do seu paradeiro.


O julgamento em curso determinará as sentenças dos arguidos, Dominique e os 50 homens identificados com idades compreendidas entre os 26 e os 74 anos, pelos crimes de violação e abuso sexual. Alguns destes já haviam sido condenados por violência doméstica ou violação.

Gisèle reconheceu um dos seus violadores, um homem que havia estado no seu lar a conversar com o seu ex-marido sobre ciclismo. Estatuiu que o via de vez em quando na padaria, cumprimentava-o, mas nunca pensei que ele viesse violar-me. Sinto-me enojada.


Pu-la a dormir, ofereci-a e filmei – confessou o violador e ex-marido de Gisèle quando foi detido.



Rebecca Cheptegei


Nascida no Uganda, a atleta Rebecca Cheptegei qualificou-se em 44º lugar nos Jogos Olímpicos de Paris em agosto deste ano.


Rebecca vivia com a irmã e as suas duas filhas, de 9 e 11 anos, em Endebess, no Quénia, cidade onde treinava, numa casa a 25 quilómetros da fronteira com a sua terra natal.


No primeiro domingo do mês de setembro de 2024, enquanto Rebecca e as suas filhas foram à igreja, o ex-companheiro da maratonista, Dickson Ndiema Marangach, invadiu a sua propriedade. Mais tarde, quando fazia o caminho de volta para o seu lar, Rebecca foi brutalmente atacada por Dickson – “atirou-lhe” gasolina e pegou-lhe fogo, tudo à frente das suas pequenas filhas.


Rebecca foi internada em estado crítico num hospital no Quénia com queimaduras que totalizavam mais de 80% do seu corpo.


E foi com apenas 33 anos que Rebecca Cheptegei faleceu, vítima de um brutal assassinato às mãos de Dickson Ndiema Marangach, o seu ex-companheiro, com quem disputava assuntos familiares constantemente.


À semelhança de Rebecca, também mais atletas foram vítimas de feminicídio, como, por exemplo, Damaris Mutua, que, em abril de 2022, foi encontrada morta num famoso local de treinos para corridas de longa distância, sendo o seu companheiro o suspeito do crime; e como Agnes Tirop, de somente 25 anos, que, em outubro de 2021, foi esfaqueada na sua casa e, apesar de negar as acusações, o seu marido, Emmanuel Ibrahim Rotich, está a ser julgado pelo seu homicídio.



Feminicídio e violência doméstica em Portugal


Em 2023 foram registados 30 323 crimes de violência doméstica, de entre os quais 2558 resultaram em detenções. Totalizam 22 as vítimas mortais de violência doméstica em Portugal, das quais 17 são mulheres.


No passado trimestre deste ano (abril a junho), foram registadas 3 vítimas (2 mulheres e 1 homem) de homicídio voluntário em contexto de violência doméstica. Já no primeiro trimestre de 2024 ocorreram 9 homicídios (8 mulheres e 1 homem).


Concluindo, de acordo com as estatísticas, desde janeiro a junho deste ano morreram 12 pessoas, fruto de crimes cometidos em violência doméstica e homicídios voluntários em contexto desta. Dessas 12 pessoas, 10 são mulheres.


Não resta dúvidas de que, apesar da pretensa equidade entre homens e mulheres, a misoginia continua a ser gritante. Desde feminicídios a um “simples piropo”, continuamos a ver traumas a nascerem e vidas a serem perdidas em prol da violência patriarcal e cisheteronormativa. A crença na impunibilidade que reveste cada homem que respira é absurda – convencido de que é capaz de tudo o que quiser para se satisfazer, sem olhar a limites e sem dar margem a contestação, o homem trata o mundo, e a mulher em concreto, a sua “súbdita”, como bem quiser.


Por este sistema patriarcal estar normalizado e ser uma das raízes da nossa sociedade, não importa quantas vanglórias e aclamações se façam ao nosso dito progressismo – enquanto existirem Gisèles Pélicot, Rebeccas Cheptegei, Damaris Mutua e Agnes Tirop, não estamos livres desta prisão.


Francisca Bastos

Departamento Sociedade

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