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Foto do escritorFrancisco Paredes

A mãe da bomba atómica

«Conseguirei tornar-me cientista?», questionava-se Lisa Meitner. Com efeito, para conseguirmos apurar a resposta a esta pergunta há que, num primeiro momento, regressar à sua idade mais tenra. Já nessa altura punha de lado os “livros para crianças” e trocava-os por lições de Matemática e Ciências, áreas que a fascinavam. Estava, porém, limitada às compilações de estudos e ensaios que o pai lhe trazia, já que eram matérias que não se lecionavam na escola feminina. Não foi isso impedimento para si, de forma alguma.


No começo do século XX, ver uma mulher prosseguir os estudos era um evento raríssimo. Lisa, nesse aspeto, foi extremamente afortunada: o pai, advogado e liberal, preferia comprar-lhe livros a apertar-lhe o corpete. Durante dois anos, estudou os quatro anos do liceu, que estava confinado apenas aos homens, e preparou-se para o exame final que lhe permitiria aceder ao ensino superior, ainda que sempre sujeita a uma autorização para tal.


Enveredou pela Física na faculdade. Teve como professor teórico Ludwig Boltzmann, uma figura paternal que lhe permitiu “realmente estudar” a sua área. Por ele foi desafiada a explorar novos caminhos, a testar os limites do conhecimento. Isso, por um lado, só foi possível por Meitner trabalhar de forma diligente e, a par, ser uma jovem inteligente, talentosa e brilhante. Para infortúnio seu — não obstante a sua ignorância nesse aspeto —, o físico padecia de uma doença terminal, tendo cometido suicídio em 1906.


Para ocupar a sua vaga, algo que seria difícil dadas as qualidades e características inéditas de Boltzmann, foi convidado Max Planck, que recusou. Também a cientista em ascensão rejeitou ficar por ali: aos 28 anos de idade saiu de casa e partiu para Berlim ao encontro do seu novo substituto. Nessa altura, a capital alemã era o cerne do mundo científico. Dali emanavam os grandes Prémios Nobel, que, de certo modo, contribuíam para um ambiente elitista.


Abriram-lhe uma exceção, em 1907. Naquele espírito, era inconcebível que uma mulher se imiscuísse naqueles meios. Destruía por completo a ordem da sociedade. De mão em mão, Lisa passou de Planck para Heinrich Rubens e dele para Otto Hahn, que a convidou para trabalhar consigo. Compreenderam-se sempre e esse sentimento perdurou por cerca, ou mais, de seis décadas — para alguns foram a prova de que é possível existir uma amizade verdadeira entre um homem e uma mulher sem sexo, quebrando uma crença secular. Foram capazes de unir, sob a égide da radioatividade, a física teórica e a radioquímica.


O seu trabalho, todavia, foi intercetado pelo deflagrar da Guerra. Otto, durante esse período, desenvolveu toxinas como armas, investiu em munições químicas e chegou a realizar experiências químicas muito perigosas. Por oposição, Lise foi submetida à jurisdição do exército, já que era austríaca e judia não praticante, tendo sido encaminhada para a frente oriental, em 1916, onde serviu a ala hospitalar enquanto enfermeira, operando na radiologia. Ambos serviram o “seu” país. Só mais tarde é que se confrontaram com as questões éticas que se levantaram pela matriz química daquela guerra.


Escolher entre o casamento e a Ciência não foi, de forma alguma, uma decisão fácil. Comprometida a seguir carreira naquilo que tanto lutou por, afastou irreversivelmente o matrimónio da sua esfera. Recusou a cortesia do oficial Muffat e assumiu que não estava talhada para aquilo.


Nos anos 20, a Física atinge o seu período áureo. Muitos foram os progressos na física atómica e na física nuclear. O círculo de amizades de Meitner era incrível: Otto Hahn, Max Planck, James Frank, Hertz, Max Born, Einstein, entre outros. Aos 33 anos de idade foi considerada, pelo último, como a “Marie Curie alemã”. A eles coube a imitação de algumas experiências transuranianas já testadas por alguns cientistas anteriores. Foram aquelas descobertas que, mais tarde, levaram às armas radioativas, embora num modelo muito precoce, uma espécie de embrião seu.


O avançar do conflito foi terrível. Muitos partiram e a física também o teve de fazer, por mais que se continuasse a iludir. Passado algum tempo e com cerca de 50 anos, Lise não se encontrava a salvo: estava desprotegida, era uma apátrida e o exílio estava breve. Os seus amigos, para a salvaguardar, organizaram um estratagema perigoso para evitar que ela passasse no controlo fronteiriço de documentos da SS e, assim, fosse capaz de chegar a Estocolmo sã e salva.


Suécia, 1938. Impedida de realizar as suas experiências, contentava-se com as cartas que o seu parceiro Hahn lhe enviava. Contava-lhe, sem esconder um pormenor sequer, todos os seus avanços nos seus estudos e pesquisas. A dada altura, foi preciso que aqueles dois cientistas se aliassem e formassem a mais pura soma da física com a química, algo nunca antes visto. E foi assim que, para o bem ou para o mal, descobriram a bomba atómica. Mais uma vez, tudo graças aos momentos de genialidade da mulher.


De nada lhes serviram os agouros e os anseios quanto ao potencial destrutivo daquilo que tinham acabado de descobrir. Os Estados Unidos da América arquitetaram o Projeto Manhattan: 2000 pessoas, incluindo cientistas alemães, sobre imensa pressão, foram conduzidas à construção de uma bomba atómica em tempo recorde, com vista ao seu “habitual” pioneirismo. A Alemanha não podia, a todos os custos, chegar lá primeiro. Também ali a doutrina se dividia — expressão a que muitos se encontram familiarizados —: por um lado, não teria quaisquer efeitos; por outro, poderia ser o fim do mundo.


A primeira bomba explodiu a julho de 1945 no deserto do Novo México. A partir daí… um caminho sem volta. Os políticos americanos pretendiam pôr termo à guerra o quanto antes assim que o Japão decidiu intervir. Hiroshima. A ética nunca esteve dentro da agenda dos EUA. Pelo contrário, interessava apenas vencer e impor o poderio americano face à URSS comunista. Entrelinhas, altas patentes da potência ocidental consideraram o bombardeamento atómico algo, de facto, desnecessário.


«Caiu uma sombra sobre a ciência […]. A Ciência não é má, as pessoas é que o são», declarou Meitner numa das suas cartas a Otto depois do evento. Os núcleos atómicos foram uma Caixa de Pandora. O seu trabalho, para nada daquilo tendia, contudo, ele próprio tornou-se na (ou numa das) arma mais devastadora que atualmente conhecemos. A ela coube a descoberta inicial. Aos outros, usá-la para a destruição. Ei-la, a mãe da bomba atómica.


Hahn recebeu um Nobel pela descoberta da fissão nuclear. O contributo decisivo da sua companheira, até hoje, não foi reconhecido. Perante isto, é impossível não deixar claro que o papel da cientista foi, mais uma vez e à semelhança de muitas outras — olhemos para a sua conterrânea Simone de Beauvoir —, abafado. Ainda, por questões de urgência, e é isso que realmente assusta, o nosso mundo assiste a uma escalada armamentista.


Afinal, terá Lise Meitner concretizado o seu sonho? E o que acharia ela destes homens que fazem das forças atómica e nuclear os seus peões num tabuleiro de xadrez chamado planeta Terra?


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