Se a relação do consumidor com a revolução digital fosse um filme, pareceria numa primeira instância algo como um romance blockbuster, em que nós, ao conhecer as várias qualidades do streaming, nos apaixonamos com a sua acessibilidade, custos baixos e variedade. Contudo, com o passar do tempo, algo mudou, e o que aparentava ser um amor para sempre lentamente se transformou num desgosto para os nossos corações. Noutras palavras, os problemas da indústria cinematográfica e televisiva parecem não só estar a corroê-la por dentro, mas externamente também, logo, é mais que a altura certa de levantar o véu e desvendar o que se está a passar no mundo da arte audiovisual.
Pela primeira vez desde 1960, os escritores e atores de Hollywood estiveram conjuntamente em greve. Esta paralisação de um dos maiores centros cinematográficos do mundo reflete os problemas que muitos trabalhadores na área têm vindo a sentir nos últimos anos: a deterioração das condições de trabalho e das remunerações pelo trabalho feito.
Nas palavras que transmitiu aos jornalistas, a presidente do Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists, o sindicato norte-americano que representa atores, locutores, apresentadores de programas, e muitos outros profissionais dos media, disse que “o modelo de negócios inteiro foi alterado pela transmissão, digitalização e inteligência artificial”, e ainda que “se não nos posicionarmos firmemente agora, todos nós estaremos em apuros. Estaremos todos em perigo de sermos substituídos por máquinas e grandes empresas que se importam mais com Wall Street do que com vocês e a vossa família (…).”
Fig. 1 Protesto em frente ao estúdio da Paramount Pictures por Valerie Macon
@GettyImages
Basta recuar 10 anos para ver como a indústria de entretenimento foi afetada pela tecnologia. Em 2013, a Netflix tinha 35,6 milhões de subscritores. Nos dias de hoje, este número encontra-se nos 238,39 milhões. Se esta mudança nos faz refletir, enquanto consumidores, sobre o modo como alteramos os nossos padrões de consumo, para muitos atores e escritores da classe trabalhadora, esta mudança significou uma revolução do seu modelo de trabalho.
Em Portugal, uma breve meditação sobre estas mudanças faz-nos pensar sobre a recente entrada de produções nacionais diretamente no mercado internacional. Principalmente, e já com o conhecimento de todos, Rabo de Peixe (2023) mudou para sempre a perceção do alcance que a televisão portuguesa pode ter no estrangeiro. Quando em junho deste ano a série entrou na lista de top 10 da Netflix para séries em línguas que não o inglês; os cabeçalhos dos jornais portugueses davam conta de que se fazia história e, de facto, o fenómeno veio mostrar o impacto do streaming na forma como os conteúdos são distribuídos e ganham popularidade.
Mas, se por um lado, podemos celebrar o alcance que a arte feita por cá tem encontrado, por outro lado, para muitos trabalhadores a mudança no modo de produção e distribuição não se revelou, nem por isso, um mar de rosas.
Em Hollywood, as cadeiras dos escritores estiveram vazias durante mais de 5 meses, e a razão prende-se mais uma vez nas mudanças a que assistimos. Se há conteúdo português a chegar às televisões à volta do globo, estas séries encontram-se num mar de conteúdo que é disponibilizado todas as semanas. Com uma indústria cada vez mais preocupada em lançar conteúdo rapidamente e em grande quantidade, existe um controlo sério dos orçamentos disponibilizados, o que leva a que os trabalhadores por trás da câmara acabem por ser alguns dos mais afetados.
Nas várias razões de queixa que os sindicalizados apresentaram, destacam-se a descida dos salários (que para muitos não permitem um rendimento suficiente para viver), e o prático desaparecimento dos chamados pagamentos residuais, ou seja, formas de pagamento através dos “reruns” de séries nos canais de televisão, que agora não se realizam, visto que são vendidas à Netflix, HBO Max e a outras plataformas de streaming.
Se os escritores já chegaram a um consenso com os estúdios, os atores continuam a protestar por melhores condições, preocupados também com a inexistência de pagamentos residuais quer com os salários baixos.
Todavia, outro ponto central destas reivindicações tem sido a proteção contra a inteligência artificial. Muitos trabalhadores querem a segurança de saber que as suas funções não vão ser substituídas por esta tecnologia, segurança esta que inclui a garantia de que as expressões, movimentos e vozes dos atores não sejam replicados ou substituídos, ou até mesmo de que os guiões dos escritores não sejam escritos por um computador.
Pode-se dizer que as oportunidades trazidas pela revolução digital vieram a dar oportunidade ao mercado internacional de reconhecer a indústria portuguesa, contudo, as mudanças de paradigma deixam alguns profissionais receosos do que isso significaria para Portugal e o conteúdo que por cá é feito.
Em entrevista ao Sol, Nuno Lopes, ator português, disse no início deste ano: “preocupa-me que seja quase obrigatório que um conteúdo tenha de ter sucesso nos seus primeiros vinte dias ou pela quantidade de pessoas que estão a ver a série de seguida.” Referiu ainda que teme que se esteja “a perder um lado artístico e original em detrimento de uma obsessão pelo consumo imediato dos espectadores e do seu consumo consecutivo”.
A paralisação quase completa de Hollywood, nos últimos meses, deu visibilidade às dificuldades sentidas nos Estados Unidos da América com os novos modelos de produção. Contudo, com a estandardização destes modelos e o alastramento de gigantes como a Netflix ou a Disney Plus aos quatro cantos do mundo, o receio que a linha que divide o artista e o produtor se torne maior é vivido um pouco por todo o lado.
Apesar da experiência do consumidor se ter tornado mais acessível e rica através da digitalização do entretenimento, e apesar da maior diversidade do conteúdo disponibilizado, este progresso não deve vir à custa duma competição justa entre empresas, do respeito pela criação artística como foi imaginada ou do pagamento justo e digno aos vários trabalhadores relacionados com a criação dos projetos.
Estamos perante uma indústria cada vez mais monolítica, obcecada com “remakes” e blockbusters, e adversa a criações originais. Coincidentemente, a fusão e aquisição de pequenas empresas pelos “grandes senhores” da indústria, como a Disney ou a Warner Bros, vieram formar um oligopólio em que quem sai prejudicado são todos aqueles menos os que se encontram no topo.
Para terminar, deixo como exemplo digno de reflexão o facto do estúdio de cinema A24, apesar de muito mais pequeno do que empresas como a Disney, ter aceitado os requerimentos dos atores integralmente e ter podido continuar a rodagem dos filmes em produção. A proteção dos direitos laborais deve continuar a ser uma luta que nós, enquanto consumidores, apoiamos. Para além do facto evidente de que qualquer trabalhador merece ser tratado dignamente, estas greves simbolizam a defesa dos direitos de todos aqueles cuja arte persistentemente enriquece as nossas vidas.
Manuel Faro
Departamento Fazer Pensar
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