A Voz das Mulheres: (Not) an act of female imagination
- Beatriz Morgado
- 19 de abr. de 2023
- 3 min de leitura
“O que se segue é um ato de imaginação feminina”. É assim que somos apresentados à brilhante adaptação cinematográfica do romance de Miriam Toews, realizada por Sarah Polley, que nos conta a história das mulheres e meninas de uma comunidade rural ultrarreligiosa, isolada da restante sociedade moderna, que se apercebem que têm sido drogadas com tranquilizantes de gado e violadas durante o sono pelos homens da colónia no decurso de vários anos, durante os quais lhes foi assegurado que os hematomas, gravidezes e infeções que sofriam teriam sido provocados por fantasmas e por uma selvagem imaginação feminina. Quando um dos atacantes é apanhado em flagrante e denuncia os restantes, os acusados são encaminhados para a prisão para se protegerem da raiva das mulheres, que têm dois dias para perdoar os homens antes que estes retornem à colónia, sob pena de serem excomungadas da comunidade e da fé.

Não fazer nada e perdoar os homens, ficar e lutar ou ir embora. São estas as três opções sob as quais as mulheres deliberam para decidir o seu futuro numa secreta corrida contra o tempo. Mulheres que não sabiam ler nem escrever, dominadas durante toda a vida por uma estrutura teocrática e patriarcal, são agora obrigadas a votar para decidir em que mundo as futuras gerações viriam a crescer. Assim, a cena desenrola-se em torno da discussão entre oito mulheres, que ficaram encarregues de tomar a decisão final, quase que reinventando o cenário do clássico 12 Angry Men, em que doze homens discutem o futuro de um alegado homicida, altercando entre a inocência ou a pena capital. Também n’ A Voz das Mulheres se discute a Vida e a Morte, mas agora com 8 Angry Women, que problematizam o seu futuro e a sua condição enquanto mulheres num ambiente que as sufoca, numa corda bamba constante entre a emancipação que desejam e a fé que as obriga a perdoar.
“If God is omnipotent, then why has He not protected the women and girls of this colony? I will destroy any living thing that harms my child. […] I will challenge God on the spot to strike me dead if I have sinned by protecting my child from evil, and by destroying that evil so that it may not harm another! I will lie, I will hunt, I will kill. I will dance on graves and I will burn forever in hell before I allow another man to satisfy his violent urges with the body of my four-year-old child!”.
Por muito que este cenário possa parecer digno de pesadelos, este não deriva, infelizmente, da imaginação feminina da autora, sendo que é inspirado num caso real, de uma comunidade ultrarreligiosa e isolada na Bolívia, a colónia Manitoba, em que 8 homens foram acusados de drogar e violar durante o sono cerca de 130 mulheres deste grupo, de 2005 a 2009. Na adaptação cinematográfica, esta estranha atualidade dos factos é revelada pela aparição de um carro que visa contar os habitantes para os Censos de 2010, sendo que, até então, julgamos estar perante uma comunidade agrícola quase medieval.
Polley, ao contrário de muitos outros cineastas, apoia-se na poderosa força da sugestão e da nuance, demonstrando a completa inutilidade de cenas de violência sexual gratuita, ao manter as atrocidades fora do ecrã, servindo-se da imaginação e perceção humana para pintar os horrores sofridos pelas mulheres da colónia.
Apesar das especificidades da comunidade e local onde se desenrola a ação, este filme vinga pela universalidade, ao abordar temas e sentimentos que são comuns a todas as vítimas de violência sexual, estejam estas inseridas num meio rural isolado ou num centro urbano cosmopolita. Por exemplo, esta opta por captar as cenas que sugerem violência de cima para baixo, simbolizando a experiência extracorpórea que advém da dissociação da vítima e, simultaneamente, os olhos de Deus, que passivamente observa os crimes, sem nada fazer para os impedir (“Many of us saw ourselves from above. I'm not sure if it was God and we were seeing ourselves through his eyes. Or if we just couldn't be there. In our own bodies.”).
Beatriz Morgado
Departamento Sociedade
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