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Foto do escritorBárbara Pedrosa

Afeganistão: Cemitério dos impérios e dos direitos das mulheres

Durante a vigência do Regime Talibã, entre 1996 e 2001, com base na sua interpretação da Sharia (lei islâmica), viu-se imposto sobre as mulheres e meninas afegãs uma lista de 29 proibições. Estas proibições incluíam: não poder trabalhar fora de casa, não poderem ser observadas por um médico do sexo masculino (consequentemente, levando ao falecimento desnecessário de muitas mulheres afegãs), não poderem frequentar a escola, o uso obrigatório da burca, não poderem ir à janela ou varanda para não ser vistas, etc.


Com a vitória dos EUA sob o Regime Talibã em 2001, assistimos ao reconquistar progressivo dos direitos das mulheres, bem como do seu lugar na política e na vida social do país. Os maiores ganhos verificaram-se ao nível da educação, de tal forma que segundo um estudo da UNESCO, desde 2001 a 2008 o número de estudantes em todo o Afeganistão passou de 1 milhão de para 10 milhões. Sendo que, ao nível da escola primária, passaram de uma participação quase inexistente de meninas afegãs em 2001, para o ingresso de aproximadamente 2.5 milhões de meninas até 2018 (assim, a essa data, 4 em 10 estudantes na escola primária eram do sexo feminino). Este fenómeno verificou-se igualmente ao nível do ensino superior, em que de uma frequência à volta de 5,000 mulheres afegãs (2001), se viu aumentar esse número para 90,000 de mulheres afegãs até 2018 .


Não obstante, é da maior relevância entender que, apesar da presença dos EUA ter sido uma ajuda fundamental para o florescer dos direitos das mulheres afegãs, a realidade é que as mesmas têm vindo a lutar pelos seus próprios direitos ao longo dos anos. Existe uma longa história de resistência pelo que as mulheres não devem ser vistas como vítimas passivas e necessitadas de proteção — visto que, por exemplo, conseguiram conquistar a implementação de uma lei que proclamava a igualdade de direitos entre Homens e Mulheres, na Constituição Afegã de 2004. Além do mais, lutaram para ter presença no Parlamento (passando a ocupar 20% dos lugares parlamentares) e por fim, inserindo-se em áreas como o Direito, o Governo e Comunicação. Deste modo, deve a comunidade internacional ouvir as suas preocupações, ideias e possíveis modos de ação, com o intuito de apoiar de forma mais adequada às suas aspirações para um futuro marcado pela presença forte e livre das mulheres no Afeganistão.


Com a invasão por parte dos EUA, sentiu-se um avançar das mentalidades e consequentemente, uma valorização e florescimento das mulheres nos mais variados campos da sociedade afegã nas regiões mais urbanas do Afeganistão — todavia, isso não se fez sentir nas regiões mais rurais do país, que viam os seus direitos bastante restringidos.



Com o avanço progressivo dos Talibãs a nível territorial instaurou-se um sentimento de medo e desespero entre as mulheres. Medo este, que se veio a confirmar após a tomada de poder Talibã, isto porque, apesar do que se vê retratado pelos Tabilã aquando das interações com a comunidade jornalística internacional — em que, por exemplo, se viu o porta-voz talibã, Zabihullah Mujahid, afirmar o seguinte: “Asseguramos à comunidade internacional que não haverá discriminação contra as mulheres, mas, é claro, dentro das estruturas que temos.” —, a verdade, é que a realidade no terreno é outra e muito mais sombria.


As mulheres afegãs viram-se restringidas nos seus direitos, tendo sido proibidas de atender aos seus trabalhos (tendo sido mandadas para casa), meninas e jovens adultas viram-se proibidas de frequentar as escolas ou faculdades, as mulheres viram-se obrigadas a utilizar obrigatoriamente burca (tendo de tapar o seu rosto) , bem como se viram proibidas de sair de casa sem a companhia de um familiar do género masculino (por exemplo, o pai, irmão ou o marido). Para além disso, sabe-se que os Talibãs começaram, desde logo a averiguar a existência de famílias com mulheres solteiras, entre os 14 e os 45 anos, de modo a casá-las com os seus soldados. Isto levou a que muitas famílias casassem as suas filhas com amigos da família, de forma a impedir que vivessem uma vida marcada pela violência, abuso e terror.


Tudo isto levou a que, ao longo destes quatro meses, se tenha assistido à realização de vários protestos originados por uma panóplia de grupos de mulheres e Organizações feministas situadas por todo o Afeganistão. Deste modo, as mulheres afegãs afirmam que não irão desistir dos seus direitos, da sua liberdade e do futuro das gerações futuras, reforçando a ideia de que o Afeganistão de 2021 não é o mesmo Afeganistão que os Talibãs encontraram aquando da sua liderança entre 1996 e 2001. Demarcam, neste sentido, o facto das mulheres afegãs de 2021 e até a sociedade afegã urbana no seu geral, ser mais consciente e instruída, não tendo por isso vontade de voltar a um contexto social em que a mulher se vê despojada de todos os seus direitos e conquistas.


Como seria de imaginar, estes protestos deram génese a uma reação violenta e opressora por parte dos Talibã, que acabou por recair não só sobre os ativistas (muitos tendo sido perseguidos, ameaçados e amedrontados), mas também sobre os jornalistas/repórteres que se pronunciavam sobre o tema (estas ações resultaram no aprisionamento e inclusive tortura dos mesmos).


No entanto, o pior ainda estaria por vir. A 6 de novembro foi reportada a morte de Frozan Saf, conhecida ativista afegã, de 29 anos e professora de economia. A jovem ativista foi encontrada numa vala e apenas foi reconhecida através das suas roupas, isto porque, fruto de ter sido baleada múltiplas vezes, se encontrava totalmente desfigurada. Pressupõem-se, então, que esta tenha falecido às mãos do regime Talibã. Com base no testemunho de várias ativistas afegãs, estas têm sido perseguidas e intimidadas, visto que os Talibã se têm conseguido infiltrar nos grupos de mulheres, bem como têm utilizado outras táticas, de modo a enganar e iludir as mesmas com o intuito de torturá-las, calá-las ou até colocar termo às suas vidas.



Desde meados de agosto, as mulheres têm realizado protestos regulares por todo o país contra os Talibã, exigindo que os seus direitos sejam restaurados e protegidos. Dificilmente passa um dia no Afeganistão sem que os direitos das mulheres diminuam ainda mais. As meninas são de fato proibidas de frequentar a escola secundária, o novo governo é composto apenas por homens e as mulheres foram proibidas de praticar muitos desportos e trabalhar.


Uma outra situação que reforçou a ideia de que os Talibã se encontravam a desviar das promessas anteriormente realizadas, no que toca ao respeito pelos direitos das mulheres (por exemplo, aquando da assinatura do acordo de Doha, elaborado entre os Talibã e os EUA), foi o facto de se constatar a dissolução do Ministério da Mulher (substituindo-o, pelo Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício), bem como de não ter sido designada qualquer mulher para integrar o Governo.


Com o regresso dos Talibã ao poder, o Afeganistão mergulhou numa profunda crise sócio-económica, isto porque, não só deixaram de contar com a ajuda externa/internacional a nível monetário, como também se verificou a perda de rendimentos dos agregados familiares, este último resultante da proibição de trabalhar para as mulheres afegãs — estes dois fatores agregados deram génese a variadas situações de pobreza e fome.

Alison Davidian, representante da UN Women, no Afeganistão, afirmou que “A única maneira que o Afeganistão tem para enfrentar estes desafios é garantir que todo o seu povo esteja a bordo, homens e mulheres, reunindo-se de modo a encontrar uma saída à crise e catástrofe sentidas. A plena participação e liderança das mulheres na vida pública e política é crítica para o futuro e para o desenvolvimento a longo prazo do Afeganistão, bem como para manter a paz e criar uma economia vibrante capaz de se recuperar de qualquer crise.


Testemunho de duas sobreviventes ao atual Regime Talibã


Estas duas sobreviventes vieram para Portugal de modo a escapar à crueldade sentida no Afeganistão, por parte dos Talibã, tendo partilhado connosco histórias reais e difíceis de ler, mas da maior relevância.


Como é que a presença americana no Afeganistão alterou a vossa realidade ?


Há uma grande diferença, entre o Afeganistão aquando da presença dos EUA e após a sua retirada, uma vez que nessa altura podíamos sair de casa, frequentar festas e hotéis — falámos de hotéis, uma vez que, regularmente, celebrávamos cerimónias de casamento, o que era muito comum e famoso na nossa cultura. Assim, éramos livres para aproveitar este tipo de celebrações, sendo frequentadas tanto por mulheres, como homens, crianças e famílias. Para além disso, a música fazia-se ouvir todas as vezes que nos deslocávamos a algum restaurante. Nós, mulheres, podíamos frequentar as escolas e universidades, exercer profissões, bem como utilizar até roupas mais “curtas”, coisa que agora se encontra totalmente banido.


Não há comparação, já que atualmente é tudo ilegal e no caso de alguma infração a resposta é a prisão (por exemplo, não é sequer permitido ouvir música). Qualquer coisa que esteja relacionado com nós mulheres tem sido proibido. Têm existido até raparigas que se encontram a ser punidas por se sentarem no banco da frente do carro de família, deste modo, os talibãs retiram as mesmas e punem-nas (isto, porque afirmam que as mesmas se deveriam sentar no banco detrás do carro).


A verdade é que, desde a presença da União Soviética no Afeganistão, que nós mulheres não experienciamos uma liberdade absoluta, mas pelo menos vivíamos numa liberdade parcial — aceite por todos — nestes últimos 20 anos. Isto porque, apesar de termos tido os nossos direitos, os talibã possuíam imenso poder e acabavam por colocar em risco a nossa segurança, por via de ataques suicidas perto de escolas/universidades, colocavam bombas em carros de jornalistas, de mulheres que se encontravam na política, etc.


Como se sentiram quando tiveram de assistir à redução progressiva dos vossos direitos e liberdades ?


Antes dos Talibã invadirem visivelmente Cabul, já pairava um sentimento de guerra. Por conseguinte, em vez de se verificar uma guerra “face to face”, já se observavam situações como a utilização de bombas. Os Talibã explodiam alvos específicos, tendo falecido muitas pessoas de bom caráter, simpáticas e até muitos dos nossos amigos mais chegados.


Por isso, na realidade nunca deixámos de sentir o medo e o receio do que estava por vir. Contudo, o nosso medo não era somente relativo à perda de direitos que estávamos a sofrer, mas também às condições de vida que iríamos experienciar, já que com a chegada ao poder dos talibã: os bancos fecharam, o país entrou em bancarrota, a economia fechou, o dinheiro do banco central ficou congelado, não havendo salários, o que consequentemente levava a perda dos seus negócios — como por exemplo, o arrendamento de propriedades deixou de ser possível — e à falta de comida. Sendo que, passei 20 dias sem comer, o horror que se estava a viver tornava impossível conseguir ingerir fosse o que fosse (desde comer uns biscoitos a beber uma gota de água). E, apesar do sentimento de receio sentido ao longo dos anos, tudo o que aconteceu era, ainda assim, inimaginável para nós. Temos o conhecimento de raparigas que se encontravam prestes a acabar o curso e que agora viram os seus sonhos simplesmente desvanecer; para além de que, muitas vezes, trabalhavam em simultâneo e portanto ao ficarem sem os seus empregos e salários, o apoio económico prestado por nós mulheres no nosso seio familiar desapareceu.


Podíamos sair de casa sozinhas se fosse para percorrer distâncias muito curtas, mas não havia, nem há no momento segurança para que nos sintamos livres para o fazer — por exemplo, sabemos de uma rapariga que foi agredida somente por estar com o telemóvel (o mesmo continha música, que é um dos maiores crimes, isto, segundo os talibã). Tem-se verificado o desaparecimento de muitas pessoas que costumavam trabalhar para o Governo afegão ou que apoiavam as mais variadas Organizações internacionais.


Há uma falta de coerência, os talibã tentam localizar as pessoas que recorrem aos programas de evacuação (de modo a intimidá-las), enquanto que, simultaneamente, realizaram um acordo com os EUA, afirmando que estes poderiam avançar com o processo de evacuação e que o mesmo seria respeitado (o que não se verificou). Deste modo, o que se vê nos media não é a realidade vivida atualmente no Afeganistão, sendo que nós só temos conhecimento do verdadeiro estado do mesmo e das pessoas que ficaram através da nossa família que continua lá a viver.


Outro exemplo que podemos referir é o facto dos Talibã afirmarem que as meninas e mulheres podem voltar aos seus estudos aquando da construção de salas separadas, mas o Afeganistão encontra-se com uma economia tão pobre, que não é possível que eles construam essas escolas específicas para as mulheres. No final das contas, iremos continuar a ver mulheres a serem privadas dos seus estudos.


Que tipo de apoios sentiram vindos da comunidade internacional ?


Esta é uma questão simples de responder, uma vez que não havia qualquer comunidade internacional que pudesse ajudar, pois toda ela foi embora do Afeganistão. A multidão, que se viu nos noticiários, no aeroporto de Cabul era na sua grande maioria pessoas que faziam parte dessa comunidade internacional, sendo que apenas uma minoria era afegã. Assim, a comunidade internacional foi embora nos primeiros voos, até porque no dia em que Cabul se viu dominado pelos Talibã, os aviões que lá se encontravam (de países como o EUA, a Grã-Bretanha, Alemanha) começaram a levar os civis, o staff de hotéis e por fim, o seu próprio staff. Isto porque, também não nos deixavam, a nós afegãos, chegar aos aeroportos.


Tanto eu como a minha mãe vimo-nos barradas dessa possibilidade pelos Talibã. Mesmo as organizações internacionais que nos tentavam ajudar, não tinham como o fazer. Este apoio tem mesmo de ser realizado através dos Governos. Houve uma missão de uma organização americana, por exemplo, que retirou algumas pessoas, mas não é algo que seja recorrente.


Nessa altura, as organizações internacionais, também já não se encontravam presentes, pois foram o primeiro alvo dos Talibã, como foi o meu caso que fazia parte de uma organização de apoio às mulheres.


No entanto, gostávamos de evidenciar o apoio que foi dado à nossa família, aqui em Portugal, uma vez que os meus familiares sentiram um enorme apoio por parte de toda a comunidade portuguesa e até brasileira.


O que seria necessário para se sentirem confortáveis em voltar para o Afeganistão ? E se isso é algo que desejam.


A partir do momento em que o nosso país entre em paz e se torne, por exemplo, um país como Portugal, seremos os primeiros a apanhar um voo e voltar. Infelizmente, não acreditamos que essa paz seja possível de alcançar uma vez que, para além dos problemas atuais, ainda temos outros, como é o caso dos interesses da China, da Rússia, do Irão, do Paquistão e da presença do ISIS. Isto porque, o grande problema do nosso país é o facto deste se encontrar a travar uma guerra económica, ou seja, todos estes pólos querem ter poder sobre o território afegão, de modo a ter vantagem estratégica sobre os demais. Deste modo, todos nós temos esperança que a paz chegue, mas é uma esperança um pouco oca, já que olhando para esta última experiência (com os EUA) vemos que, mesmo tendo tido a duração de 21 anos, acabou de forma desastrosa.


Nós viemos para cá, mas deixámos o nosso coração no Afeganistão. Porque, a verdade é que, nunca haverá como substituir o sentimento que o nosso país, cultura, família, amigos e lar nos é capaz de dar. Contudo, estamos todos muito gratos por podermos recomeçar a nossa vida num país tão seguro e acolhedor quanto Portugal.


Se pudessem, qual o apelo que fariam à comunidade internacional ?


O nosso pedido seria que os Talibã não sejam reconhecidos como Governo, eles são terroristas e isso é tudo o que deveriam ser — porque, este reconhecimento levaria a uma violência sem questionamento, não haveria qualquer possibilidade de intervenção e teríamos de permanecer desta forma por anos e anos. Ademais, a comunidade internacional deve manter o seu apoio no que toca à questão dos Direitos Humanos.


Por último, se pudéssemos decidir iríamos querer que estes fossem expulsos do país, de modo a ser possível instalar-se uma verdadeira democracia, marcada pela paz e liberdade que tanto sonhamos.


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