Acho que me apaixonei pela música mesmo antes de saber falar. Cedo percebi que o mundo era um lugar de regras e contenção, mas que o universo musical era um espaço diferente, onde a expressividade não era mal vista, antes encorajada. Além dos grandes talentos que fazem da música a arte que é, pergunto-me de onde virá a força de vontade que nos leva a nós, mortais comuns, colocarmo-nos em tamanha posição de vulnerabilidade, exposição e possível humilhação? Afinal, poucos de nós nos consideramos talentosos cantores, estrelas de rock ou performers, mas uma força interior incompreensível acorda-nos ocasionalmente para a vida e faz-nos puxar das cordas vocais para cantar as nossas músicas favoritas no chuveiro, no carro, ou ainda, para os mais corajosos, em público.
Embora existam várias teorias que sustentam as razões para a sua existência, vejo a música como uma experiência que nega a suposta racionalidade pela qual nos guiamos no dia a dia – um mistério antropológico, mas também romântico. Talvez seja por esse motivo que nos entregamos a um prazer estranho como é o de desafinar num bar de karaoke, ou no trânsito. Fora uns certos senhores do decoro que olham com desprezo para a nossa desafinação, o mundo sonoro parece ser um dos poucos espaços onde nos autorizamos a ser precisamente irracionais.
A situação é a mesma, quer falemos de cânticos tribais africanos, do hip-pop americano ou da ópera italiana: a música revela sons inaudíveis num mero diálogo, mas que são, ainda assim, profundamente genuínos, constituindo uma rara forma de expressão que consegue dizer tudo a soletrar pouco - um fenómeno inexplicável que pode apenas ser descrito como espiritual.
Não há, assim, dúvidas quanto à razão da música ter sido uma das artes mais policiadas da história, nem o porquê das mulheres afegãs estarem hoje proibidas de cantar em público: quando as nossas vozes e mentes são sequestradas por uma autoridade, a liberdade torna-se uma realidade distante. Por outro lado, é precisamente quando essa autoridade se impõe que a sua utilização se torna um ato de resistência. O que é, afinal, cantar, senão o uso mais corajoso da nossa própria voz, tantas vezes sufocada pelo politicamente correto e pela pressão de sermos compreendidos? Cantar é uma forma primitiva e direta de expressão, e sermos donos das nossas vozes é sermos livres.
O desejo tão grande de união da Humanidade, de ouvirmos e sermos ouvidos, manifesta-se brevemente quando partilhamos uma língua comum, onde o ritmo e a harmonia são amados por todos. Infelizmente, quando o disco para de rodar e a realidade se faz ouvir, os muros que nos separam revelam-se tão altos como sempre. Com o começo de mais um ano do Tribuna, também nós nos arriscamos a revelar a um mundo hostil à expressão individual. A maior diferença será talvez a de que a cantar podemos aproveitar as palavras de outros, enquanto que a escrever seremos nós a escolhê-las…
Manuel Brito e Faro
Departamento Crónicas
Comments