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Alvorada

É cruel a visão em branco da ausência de escrita. Penso sobre tudo e, ao mesmo tempo não sou capaz de formular pensamentos sobre nada. Como se o que vai na minha cabeça nada fosse mais que um grande novelo emaranhado de cordel que, por mais que tente, não consigo desfazer e tornar ordenado. Um nó górdio mental. E talvez seja um momento como este, de reflexão, que serve de espada de Alexandre e que me permite paz e um pouco de coerência.


Deitado na minha cama, estendido enquanto primo o dedo nas teclas para formar uma sequência com sentido de pequenas figurinhas que lá inventámos das nossas cabeças, consigo transparecer para um outro, “o outro”, aquilo que sou. Escrever é um ato de amor, parte da ideia que o caracteriza, de que somos todos sujeitos.


Tenho ao meu lado O Mandarim, do Eça, e, entediado de uma leitura que se iniciou do tédio de não querer fazer mais nada senão ler, lá me levou, após algumas horas, a divagar e a deambular pelos corredores frios de mim mesmo. O que será que sou? Serei eu próprio, será que existo como os outros – eles aparecem-me inteiros, como quando eu me vejo ao espelho. Mas eu não acredito no espelho, mente-me, sinto-me vazio, como se me tivessem escavado um buraco no peito. Gostava de ser como os outros.


É de manhã, uma das raras manhãs que não desperdiço a dormir, pelo que devo agradecer aos cavalheiros que se ocupam em tertúlias por frente da Mirita, ocasionalmente entre as quatro e as seis da manhã; desconfio mesmo que alguns estão a ler este preciso artigo. Fui ontem sair, jantar fora, etc. bebendo uma quantidade moderada de cerveja e fumando pouco, ou parafraseando o meu correligionário, aproveitar os pequenos prazeres da vida, é aí que está a felicidade. Não sou feliz, mas por momentos pensei sê-lo. O que é a felicidade senão a perceção do fenómeno de uma particular forma? Não existe felicidade nas coisas, não existe tampouco em nós, é simplesmente uma forma de vermos as coisas e de estarmos abertos para as recebermos.


Vou beber café. Bom remédio para retirar o ar de enjoado com que acordo, o que me leva a crer que o meu inconsciente não deve ser muito agradável. Não sou feliz. Talvez não o seja porque o quero ser; e louvo o criador por me ter feito nascer em Portugal, terra onde se distingue o ser do estar, mas que, por maldição, não impede uma certa influência anglo-saxónica, com o seu pensamento toscamente monocórdico. To be, eis a ambição de toda a gente. A este ponto mais vale pedir também um croissant.


Está sol, sinto-o bater na face, trazendo com ele notas de verão. Mas é inverno, e se não tiver cuidado ainda me vou constipar. É treta que exista dentro de nós um verão invencível, tenho frio, pisei uma poça e começo a achar o Camus francamente parvo. Deambulo, não como Cesário, mas como quem tem frio, por entre a multidão: gosto de viver na cidade, ninguém me conhece, ninguém quer saber quem sou. Deambulo pelas ruas da mesma forma como deambulo por dentro de mim mesmo. Gosto da rua, gosto da indiferença. E chego a casa, sozinho, e deito-me na minha cama, tendo-me previamente despido e colocado o pijama verde. Acho que isto é estar feliz, mas não sou feliz, ninguém o pode ser.


Releio um poema que escrevi, trágico, como se tivesse pena de mim mesmo. Fala sobre a infelicidade de não ser infeliz, porque nada sou; mas penso, e ao pensar não posso deixar de imaginar o que seria ser de outra maneira. Sou progressivamente infeliz como consequência de não conseguir ser nada. É a própria infelicidade algo de simulada. Não o sou verdadeiramente, mas descontento-me por não conseguir ser algo, como os outros. O que vejo neles não consigo ver em mim, não tenho uma definição, não sei o que sou apesar de saber o que eles são. É o não ser nada que me deixa infeliz, mas não sou verdadeiramente infeliz, não sou sequer o próprio nada. Não sou, limito-me a existir.


Acho que é por isto que leio e por isto que amo. Não conheço outros mecanismos de me convencer de que os outros estão tão vazios como eu e que se apresentam a mim da mesma forma como me apresento a eles e a mim próprio no espelho – e que eles me veem como eu me vejo ao espelho, de fora, inteiro. Ninguém nunca saberá o vazio que existe dentro de mim. Sou esse vazio. O sujeito, ao contrário do objeto, caracteriza-se pela negativa, pelo que não é.


Ninguém nunca saberá o que é ser eu, mas é algo de reconfortante saber que, por detrás de tudo, sou só mais um a deambular por aí, a duvidar da mesma forma que os outros duvidam, a sentir-me diferente de todos, da mesma forma que os outros todos se acham diferentes de todos os outros. No fundo, somos todos objetos uns dos outros. Gosto de viver na cidade. Já chega, vou voltar a dormir.


Simão Gomes

Estudante do 2.º Ano de Direito

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