top of page
Buscar
Foto do escritorDepartamento Cultural

Angola, Brasil, França e Moçambique: sobre as origens dos nossos estudantes internacionais -PARTE II

Quando recuamos à nossa entrada na Universidade do Porto, é provável que nos deparemos com memórias comuns; uma delas será, certamente, o desejo que trazíamos de conhecer pessoas novas e “diferentes”. Mas quem percorre os corredores da FDUP saberá o quão fácil é ser-se surpreendido pelo alcance da diversidade entre os estudantes. A verdade é que cedo nos apercebemos da possibilidade de contactar com colegas, não só de outras regiões do país, como também dos vários cantos do mundo. Falamos dos “nossos” estudantes internacionais, que muito enriquecem a identidade académica do Porto, seja com passagens temporárias pela cidade, onde deixam o seu rasto, seja com projetos de um futuro mais duradouro em Portugal.


A francesa Anaelle Exposito (estudante de mobilidade ERASMUS+), a moçambicana Andrea Martins, o brasileiro David Savignon e a angolana Erika Naulyla aceitaram partilhar com o Tribuna alguns factos característicos dos seus países de origem, fazendo também um balanço do seu percurso em Portugal. Aqui fica a PARTE II dos seus testemunhos.

  1. Marcos da infância

Lembras-te de algum som, cheiro, objeto, sabor ou expressão popular que associes diretamente ao meio em que cresceste? Podes explicar o seu significado?

moqueca capixaba, prato de peixe típico de Espírito Santo (Brasil)

David nasceu e cresceu numa ilha – a ilha de Vitória, capital do estado brasileiro Espírito Santo -, pelo que o cheiro a peixe fresco evocará sempre as suas origens. Em homenagem a esse que é um símbolo gastronómico da região, destaca um prato típico: a moqueca capixaba. Segundo a explicação de David, o termo “moqueca” significa “guisado de peixe” e “capixaba” é um adjetivo que se reporta a Espírito

Santo. Quanto a expressões populares, salienta o verbo “pocar”, que significa estourar ou arrebentar - «”vai pocar o balão” está para “vai estourar o balão”», esclarece. Uma outra expressão que preencheu a sua infância foi “à beça”, muito utilizada pela sua avó: «trata-se de uma locução adverbial que expressa quantidade, excesso, demasiado»; por exemplo, «corri à beça para chegar lá» está para «corri muito para chegar lá», exemplifica.

Mufete, prato típico angolano

Já Erika, angolana de Luanda, não consegue conter o desabafo, entre risos algo nostálgicos: «tenho saudades do cheiro dos pratos típicos comidos ao sábado». A este propósito recorda, sonhadora: «Um bom Mufete ao sábado ou um Funge ao domingo fazem qualquer semana valer a pena, e o sono após comê-los (pois é impossível permanecer acordada) também é revigorante. Tardes de sábado no meu país são a minha melhor recordação e a maior saudade».


Entre o elenco infindável de expressões típicas angolanas, como o “orrôh”, e as suas imensas variações - «que não têm significado específico, mas todas expressam surpresa» – Erika destaca a sua favorita de momento: «não estragou nada»; uma expressão simples, mas que transporta consigo toda uma filosofia. «A vida é repleta de surpresas, e muitas vezes desagradáveis, mas não nos podemos deixar abalar pelos imprevistos. Dizer que “não estragou nada” é equivalente a dizer que não há qualquer problema, vamos superar. Vamos seguir com a vida. “Não estragou” ou então “Não estragou nada” demonstra o quão difíceis de abalar nós somos, e o quão capazes de lidar com as adversidades da vida de forma leve, e essa é a essência do povo angolano. Nós passamos por tanta coisa há já tanto tempo, que não é qualquer imprevisto que nos vai desestabilizar. Não estragou.», termina, sabiamente.


Em contraste com David e Erika, Andrea admite alguma dificuldade na busca de referências típicas moçambicanas que lhe sejam familiares. Consciente de que se insere no pequeno grupo social de moçambicanos que nasceu e sempre viveu no meio urbano (em Maputo), afirma que o contacto com as tradições rurais – que, a seu ver, definem Moçambique - foi sempre muito reduzido. Contudo, a moçambicana não deixa de recordar com saudade o cheiro a caril dos cozinhados da sua avó, entre eles, um prato que envolve batatas aos cubinhos e louro. Recorda também a semelhança entre as tradições culinárias portuguesas e a cozinha moçambicana, destacando entre os pratos mais comuns em Moçambique o arroz de feijão preto com picanha, o bacalhau e o caldo verde. Fala-nos ainda de comidas tradicionais à base de verduras que sabe serem especialmente preparadas nos meios rurais: a matapa, a cacana, a xiguinha e a chima (um substituto de arroz). Quanto a expressões orais características do meio citadino em que cresceu, Andrea destaca o “estou maning nice” enquanto expressão muito utilizada pelos jovens, que, numa mistura com o inglês, aponta para o “estou muito bem”.

Doce de cereja típico do País Basco francês

Saltando para memórias francesas, Anaelle diz ter muito presente o odor a madeira queimada, que sempre acompanha os invernos rigorosos da sua terra natal - «[no País Basco francês] as pessoas utilizam com muita frequência as suas lareiras», relata. Também o sabor a doce de cereja, típico dessa região, é para si sinónimo de “casa”.



2. Referências culturais


Nomeia uma ou algumas das tuas referências culturais no teu país de origem. Tens alguma em Portugal?


DAVID (Brasil) - «A maior referência cultural do Brasil que qualquer pessoa a nível mundial reconhece são os memes. Personalidades como a Gretchen, a Tulla Luana, a Nazaré, o Faustão e a Maria José, ainda que não sejam conhecidas pelo nome, certamente alguém já se deparou com um meme, uma imagem ou um vídeo deles.


A nível musical, o Brasil é frequentemente associado ao funk, ainda que não seja o meu género musical. Igualmente pode-se falar do samba (e do Carnaval). Falando de artistas, nomes como o da Anitta, Pabllo Vittar, Luísa Sonza e a dupla Simone e Simaria, por exemplo, são também conhecidos.


A título pessoal, gosto muito da Pitty, que elabora o género de “rock brasileiro”, por assim se dizer, e da Clarice Falcão».


ERIKA (Angola) - «O que não falta em Angola são pessoas excecionais e angolanamente excêntricas, mas hoje escolho mencionar Israel Campos, um jovem jornalista angolano de 20 e poucos anos, residente agora no Reino Unido e que demonstra, como ninguém, tudo que eu espero da minha geração: inteligência sem barreiras, espírito incorruptível, desejo incessante de ver o seu país a crescer e distribuidor de verdades difíceis de engolir, mas necessárias de ouvir. O Israel tem contado a realidade de Angola como ninguém; tem mostrado a Angola nua e crua, e trazido ao debate questões que os jovens (e não só) escolhem se abster. Ainda não tenho nenhuma referência específica em Portugal, mas estou já a tentar abrir os meus horizontes para o que de facto é esse país fora da minha Faculdade e da minha comunidade cá».


ANDREA (Moçambique) - «O Mia Couto é um escritor incrível e por isso não consigo escolher apenas um livro (diria todos mesmo). Também gosto muito dos livros de José Rodrigues de Santos, que nasceu e viveu em Moçambique durante um tempo e agora vive em Portugal: o meu livro favorito dele é “O último segredo”. Há ainda a Paulina Chiziane, que ganhou o prémio de literatura Camões em 2021. Em Portugal acho que ainda não tenho ninguém, mas espero vir a ter, já que agora estou mais próxima da cultura portuguesa».


ANAELLE (França) - «Quanto a escritores, diria Molière, Alexandre Dumas (“Le Chevalier d’Harmental” – uma boa história de amor), Marivaux e Victor Hugo, claro. No que toca à pintura, bem…tenho demasiadas referências. Na categoria do cinema, são fantásticos os filmes do Luc Besson e claro que não podemos esquecer a enorme referência que é o filme “Intouchables” (“Amigos improváveis”, de 2011). Um “orgulho francês” é também Thomas Pesquet, um astronauta.


As minhas referências culturais em Portugal são ainda muito pequenas: resumem-se a fado, Fernando Pessoa, Teolinda Gersão (estou neste momento a ler “A mulher que prendeu a chuva”), António Variações e os pastéis de nata, se estes também forem considerados referências culturais».


3. O futuro e Portugal


Pretendes permanecer em Portugal depois de concluíres o ensino superior? Qual/quais a(s) razão/razões?


David hesita na resposta: «em princípio sim; primeiramente porque se aprendi o Direito português, não faria muito sentido exercer em outro país». Para além disso, assume ser uma pessoa de criar «muitas raízes no lugar em que está» - algo que pensa ser uma espécie de reação natural à dificuldade que sente em sair da sua zona de conforto. Assim, «ao que tudo indica», permanecerá em Portugal após concluir o ensino superior; mas deixa em aberto: «tudo pode mudar, nunca sabemos o dia de amanhã».


Por seu turno, Erika não contém o desejo que lhe enche o peito: retornar a casa em breve - «embora a vida em Portugal seja muito mais acessível e facilitada (mas isso bastante superficialmente e por negligência dos dirigentes africanos), eu não vejo a hora de voltar para o meu país». Comprometida com o desenvolvimento de Angola, Erika pretende empenhar-se na missão de tornar o seu país um lugar «que os estudantes estrangeiros tenham vontade de conhecer e se formar» motivados pelas mesmas razões pelas quais ela veio estudar para Portugal. Nesse sentido, a angolana revela ter vindo para o nosso país em busca de uma «educação melhor e mais desafiante» – e, sem dúvida, que encontrou o desafio («inclusive, socorro!», solta em tom cómico). Todavia, quando falamos de perspetivas para o futuro não restam dúvidas: «assim que me formar, à terra mãe irei voltar; pois o bom filho à casa torna».

Lago da hidroelétrica de Cahora Bassa (província de Tete, Moçambique) - foto tirada por Andrea

À semelhança de Erika, Andrea declara que inicialmente nunca pretendeu - e continua sem pretender - permanecer em Portugal após o término da sua formação académica. Não esconde, portanto, que a sua vontade é «voltar para Moçambique» para lá exercer a sua profissão. Não obstante, admite que «consoante as oportunidades» que surgirem, as perspetivas podem mudar: «nada é certo e eu estou de mente aberta para o que der e vier».


Já Anaelle começa por confessar que ficar em Portugal por mais tempo e, em especial, no Porto, seria algo de que gostaria muito: «sinto-me muito bem aqui». Diz-nos ainda que todos os seus amigos de Erasmus se apaixonaram igualmente pela nossa «linda cidade». Numa avaliação global da sua experiência enquanto estudante Erasmus no Porto e na FDUP, Anaelle afirma que a sua passagem pela Invicta está a ser «fantástica», em grande parte graças à equipa da ESN (Erasmus Student Nework), mas também devido ao estilo de vida dos portugueses, ao ambiente da cidade e ao clima. Em contraste, no que toca ao acolhimento na FDUP, Anaelle nota, desapontada, que «alguns professores não demonstram interesse em que percebas o que dizem nas aulas, ou sequer se compreendes os enunciados dos exames; o que é um pouco triste» - na sua opinião, os docentes poderiam pelo menos «disponibilizar os enunciados dos exames em inglês». Ainda assim, Anaelle continua a afirmar, com entusiasmo, um balanço francamente positivo do seu intercâmbio: «tudo o resto tem sido magnífico aqui!».



Beatriz Castro e Clara Castro


0 comentário

Comments


bottom of page