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Foto do escritorJosé Santos

As Mãos Sujas – o expoente máximo da literatura Sartriana


Apesar de já ter escrito sobre livros, nunca discorri em demasia sobre nenhum em prosa. Tinha, até então, um grande receio de ser desnecessário e repetitivo (por escrever sobre algo que seguramente muitas e melhores pessoas já o teriam feito) ou irrelevante e inútil (por escrever sobre algo datado e que não domino ao máximo). Decidi, durante o verão, que este ano – o meu último como redator do Tribuna – acabaria com esse ceticismo autolimitador. Assim, apresento-vos a peça de teatro mais famosa de Sartre e uma das minhas leituras favoritas dos últimos meses.


As Mãos Sujas trata-se duma ode ao existencialismo e socialismo sartriano, os dois tópicos mais importantes da vida do autor. Ora, esta peça gira toda à volta do assassinato de um líder político comunista (Hoederer). O assassino conhecemo-lo logo nas primeiras páginas, tratando-se do nosso protagonista, Hugo. Este é, nada mais e nada menos, que uma caricatura e autorretrato do próprio Sartre: um jovem intelectual, atormentado por “nunca ter passado fome” e inflexível no seu idealismo. Hugo decide entrar para o Partido para dar algum sentido à sua vida, para ser um homem de ação. Resulta que no primeiro ano apenas dirige o jornal clandestino do mesmo e procura, a todo o custo, uma oportunidade para demonstrar que não é “um covarde”, ajudando na luta de forma direta.


Tendo este preâmbulo como contexto, entramos na trama da peça de teatro. Olga, mulher revolucionária do Partido, atesta por Hugo perante Luís, um dos líderes do mesmo. Este, percebendo claramente o tipo de pessoa que Hugo queria ser (uma pessoa com necessidade de mostrar que faria tudo pelo partido e capaz de seguir diretrizes cegamente), dá-lhe a oportunidade que ele tanto desejava para provar (a si mesmo, antes de tudo) o seu valor; vulgo, uma missão: assassinar Hoederer. A razão para cometer um crime tão hediondo? Pouco importa, uma vez que Hugo apenas pretende ser um homem de ação, libertando-se do seu intelectualismo e do marasmo que se tinha tornado a sua vida – (Hugo) - Um fulano que não tem vontade de viver para alguma coisa deve servir, se o souberem aproveitar”.


No entanto, Hugo sente que a sua motivação e os seus princípios se coadunam com a morte de Hoederer; na sua opinião (e, mais relevante, na de Luís), este seria um traidor à causa, independentemente do seu estatuto e posição de liderança. Esta opinião baseia-se numa análise simples de um problema complexo: Hoederer pretendia, de modo a evitar uma guerra civil, fazer as pazes com o Regente e com as forças do Pentágono, unindo todas as frentes do país (neste ponto, importa mencionar que a peça se passa no país fictício da Ilíria, havendo, no entanto, um paralelismo incontornável com a França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial – o Regente seria o Marechal Pétain, líder da República de Vichy, e o Pentágono a representação da burguesia e da influência americana), formando um governo de transição.


Hugo aceita trabalhar como secretário de Hoederer de modo a completar a tarefa que lhe foi designada, mas rapidamente percebe que por de trás do líder existe uma pessoa, complicando o que em teoria seria simples – o dilema ético e a forma como Sartre retrata o conflito interno de Hugo é fantástica (Hugo) - Há pensamentos a mais na minha cabeça. Tenho de os enxotar. (Hoederer) - Que género de pensamentos? (Hugo) - «Que estou aqui a fazer? Terei razão em querer o que quero? Não estarei a representar para mim próprio?» Parvoíces destas.. É neste cenário que conhecemos a terceira personagem mais importante da narração, Jéssica, a mulher de Hugo. Ela releva, não só por ser decisiva para o desenlace, mas também porque podemos considerá-la o herói existencialista que Sartre tanto almejava ser. Jéssica convive com o absurdo da existência de uma forma única, é um poço de sabedoria, amor e carinho para Hugo, mas este, atormentado, não lhe dá o devido valor – (Hoederer) - Porque é que casaste com ela? (Hugo) - Porque ela não me respeitava.”.


É também em casa de Hoederer que temos uma das interações mais hilariantes e perspicazes da obra, entre Hugo e os dois seguranças do líder comunista: numa discussão despoletada pela insistência em revistar as malas de Hugo e a recusa do mesmo, os dois “homens do povo” começam a ressentir o “intelectual” pelo seu estatuto e nascimento, trazendo ao de cima a motivação de cada um para fazer parte do Partido – (Hugo) - Grandes idiotas! Se entrei no Partido, foi para todos os homens, secretários os não, terem um dia esse (respeitar-se a si próprio) direito. (Jorge) - Manda-o calar, Slick, manda-o calar, ou rebentam-se as lágrimas. Nós, meu filho, se entrámos para o Partido, foi porque estávamos fartos de passar fome.”


Finalmente, e agora entrando talvez na parte mais política da peça, o clímax da narrativa encontra-se na discussão acesa entre Hugo e Hoederer sobre o rumo que o Partido e a Ilíria deveriam tomar, ou seja, a discussão entre um idealista e um pragmatista. Hugo é intransigente na sua posição, o Partido não se pode coligar (extremamente lato sensu!) com qualquer força contrária aos seus princípios; Hoederer prefere que o Partido tenha supremacia no governo pós-guerra, trazendo estabilidade à nação. Negociar esta supremacia com as outras forças não era, per si, fácil. Mas Hoederer, de forma bastante engenhosa (vale a pena ler o livro só pela arte de argumentação aqui demonstrada), lá consegue que as restantes forças cedam a este ultimato (o Partido nem tinha o apoio da maioria da população!).


Nem desta forma (onde o Partido seria predominante e teria poder para implementar todos os seus ideais, onde pararia a guerra e milhares de vidas seriam poupadas) Hugo está satisfeito. E é aqui que, de modo mais pessoal, a discussão da peça se torna realmente importante. Hoederer é tudo o que eu gostaria de ser se alguma vez me encontrasse numa posição de poder: um líder que vê pessoas antes de ideias, que está disposto a comprometer a pureza do pensamento para salvaguardar vidas e o bem-estar geral, enfim, uma pessoa que responde desta forma a um idealista – (Hoederer) - “Como tu prezas a tua pureza, meu filho! Que medo que tens de sujar as mãos! Pois bem, fica puro! Quem é que aproveitará com isso, e porque é que vens então meter-te connosco? A pureza é uma ideia de faquir e de monge. Vocês, os intelectuais, os anarquistas, utilizam-na como um pretexto para não fazer nada. Não fazer nada, ficar imóvel, apertar os cotovelos ao corpo, usar luvas. Pois eu tenho as mãos sujas. Até aos cotovelos. Mergulhei-as na merda e no sangue. E depois?.


Custa não revelar o final, mas, como não poderia deixar de ser com Sartre, sentimos que o desfecho já estava traçado. Hugo comete homicídio pelos seus princípios (apesar da motivação para premir o gatilho não ter sido essa) e acaba por perceber que o fez em vão. O Partido, que ele tanto quis impressionar e defender, traiu-o. A ironia transformada em tragédia. A realidade a sobrepor-se ao ideal. Hoederer tinha razão, e a razão acabou por matá-lo.


José Santos

Departamento Cultural


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