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  • Edéria Lopes, Francisca Sá

Castigos Físicos a Crianças - Educação ou Violação de Direitos?

Por uma educação mais respeitosa e menos danosa


Glossário

CF - Castigos Físicos

CRP - Constituição da República Portuguesa

CC - Código Civil

CP - Código Penal

STJ - Supremo Tribunal de Justiça

TEDH - Tribunal Europeu de Direitos Humanos

CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem

IAC - Instituto de Apoio à Criança

OMCT - Organização Mundial contra a Tortura

APPROACH - Associação para Proteção de Todas as Crianças

CEDS - Comité Europeu dos Direitos Sociais


Introdução


A análise elaborada neste trabalho tem por base a interessante e controversa questão “Castigos físicos a crianças – Educação ou Violação de Direitos?”. Questão essa que só tem lugar, desde logo, porque a criança é, hoje, encarada como um verdadeiro sujeito de direitos. Ademais, a evolução da sociedade espelha-se de forma inequívoca em matérias desta natureza. A sociedade evolui e aquilo que se considera aceitável e correto em determinada altura, deixa de o ser noutra ou vice-versa, cabendo ao Direito acompanhar essa evolução e, por vezes, ser impulsionador da mesma. Se o poder paternal começou por ser um poder de domínio, hoje não é mais do que um poder-dever funcionalizado e, é nesse sentido, que a discussão em torno da legitimidade ou não dos CF a menores, adquire relevo no seio da comunidade civil e jurídica.


Desta feita, o estudo, de seguida apresentado, consiste num percurso essencialmente jurídico e social, da utilização dos castigos corporais na educação das crianças ao longo do tempo, tendo como objetivo último, perceber em que ponto nos encontramos e qual o caminho que ainda falta trilhar.


A história da infância é um pesadelo do qual apenas agora estamos a começar a acordar”.

Lloyd de Mause


@ForBabiesBrain


Abordagem Jurídica


Ordenamento Supranacional

Convenção sobre os Direitos da Criança


A Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em vigor em 1990, tornando-se o instrumento de direitos humanos mais aceite na história universal, sendo ratificado por 196 países. No âmbito desta convenção, foi criada a Comissão dos Direitos da Criança, a qual desempenha um papel fundamental na sensibilização contra o uso de castigos corporais. Desde que iniciou funções, a Comissão tem vindo, ao longo de vários anos, a assinalar a urgência dos Estados aderentes adotarem “medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência”, sob pena de violação do artigo 19 da Convenção supramencionada.


Carta Social Europeia


Em 2002, entrou em vigor no ordenamento interno português, a Carta Social Europeia. Com a finalidade de monitorizar a aplicação deste diploma, surge o CEDS, o responsável pela apreciação de duas queixas deduzidas contra Portugal, pela Organização Mundial contra a Tortura. Ambas as queixas imputavam a Portugal a violação do artigo 17 da Carta Social Europeia, pela não eficaz e explícita proibição de castigos corporais das crianças. No seguimento da queixa coletiva no 20/2003 (1a queixa), Portugal alegou que a agressão física como forma de educação e disciplina de uma criança não é verdadeiramente permitida pelo direito português, sustentando a sua posição nos artigos 143.o da CRP e 152.o do CP, munindo-se de três Acórdãos dos Tribunais Superiores Nacionais.


Uma vez analisada esta argumentação, o Comité entendeu pela não violação do artigo 17 da Carta. Todavia, em 2006, na sequência de um Acórdão proferido pelo STJ, foi apresentada a 2a queixa coletiva, no 34/2006 pela mesma organização (OMCT). O Estado Português manteve a mesma contestação, que o Comité considerou no momento, manifestamente insatisfatória, exigindo que as disposições legais fossem suficientemente claras, não deixando margem aos tribunais para a não aplicação das mesmas. Pela violação do mesmo artigo, mais recentemente, no ano de 2014, a APPROACH deduziu semelhante queixa contra França, a qual resultou também na sua condenação.


Jurisprudência TEDH


O TEDH, órgão competente para garantir o cumprimento dos compromissos resultantes da CEDH, tem vindo a condenar a utilização de castigos corporais, invocando sobretudo o artigo 3o da Convenção supracitada, que proíbe os tratamentos desumanos ou degradantes. Nesse sentido, analisemos, de seguida, alguns casos. Em 1978, no caso Tyrer v. United Kingdom, o TEDH entendeu ter-se verificado a violação do artigo 3o da CEDH, no seguimento de uma sentença judicial, que decretava a imposição de CF sobre um menor de idade. No caso Campbell and Cosans v. United Kingdom (1982), o TEDH foi invocado para se pronunciar acerca da possibilidade de as escolas poderem aplicar castigos corporais. Nesta sequência, o Tribunal considerou que não estava em causa a desaplicação do artigo 3o da CEDH, dado se tratar de uma mera suscetibilidade. Contudo, entendeu que estava a ser violada a segunda parte do artigo 2o do 1o Protocolo adicional à CEDH, já que os queixosos objetavam a aplicação destes castigos sobre os seus filhos. Mais tarde, em 1998, no caso A. v. United Kingdom, o Reino Unido acabou por ser novamente condenado, uma vez que o TEDH entendeu que a sua lei não conferia às crianças a proteção necessária contra os castigos corporais no seio familiar, estando em causa, mais uma vez, a violação do artigo 3o da CEDH.


Recentemente, o TEDH tornou a debruçar-se sobre esta matéria, nos casos Tlapak and others v. Germany e Wetjen and others v. Germany. A questão em litígio remetia para a violação do direito ao respeito pela vida familiar, previsto no artigo 8o CEDH, decorrente da remoção parcial de poder paternal por parte do Estado Alemão.


Ordenamento Jurídico Português


No que diz respeito à previsão legal portuguesa relativa a esta temática, cumpre, em primeiro lugar, fazer referência àquela que é a lei fundamental do país, a CRP. De forma mais ampla, o artigo 18.o CRP estatui que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”, consagrando o artigo 25.o/1 do mesmo diploma que a integridade física e moral das pessoas é inviolável. É nos artigos 36.o/5 e 67.o/2/c) CRP que se faz especial referência à educação das crianças, atribuindo, respetivamente, aos pais o poder- dever de educar os filhos e ao Estado a devida cooperação nessa tarefa com os pais.


Não obstante, é no CC e no CP que iremos centrar a nossa atenção. A primeira nota a fazer à evolução legislativa do CC, no seio desta matéria, prende-se com o facto de que não encontramos hoje, na secção referente às responsabilidades parentais, uma previsão de um poder de correção dos pais, mas sim um dever de educar. Os poderes-deveres dos progenitores são, agora, exercidos no interesse dos filhos, nos termos do artigo 1878.o CC. Porém, apontamos uma segunda nota mais crítica a esta evolução, é que aquando da Reforma de 1977 do CC, o legislador não estabeleceu uma proibição expressa dos castigos moderados empregues na educação das crianças. É neste sentido, que o CP ganha relevo na punição dos CF. Só em 2007, por via da Lei 59/2007, que levou a cabo a 23a alteração ao CP é que se incluiu explicitamente os castigos corporais a crianças como elemento do tipo legal. Autonomizou-se o crime de maus-tratos a menores, no artigo 152.o-A CP a par do crime de violência doméstica, no artigo 152.o CP.


Preliminarmente à análise destes artigos, é de assinalar que esta alteração ao CP, não parece alheia à condenação de Portugal, já abordada, pelo CEDS, pela violação do artigo 17.o da Carta Social Europeia. Condenação que, teve essencialmente origem, no Acórdão do STJ de 05.04.2006. Além do mais, para os mais céticos quanto à autonomização destes tipos legais, uma vez que já constavam do nosso CP outras previsões como os artigos 143.o, 144.o e 145.o, reitere-se que, como de seguida fundamentado, o bem jurídico protegido por estes dois novos artigos vai além da proteção da integridade física. É nas alíneas b) e c) do artigo 152.o-A CP que se conclui que cabem no seu domínio situações que não configuram necessariamente um crime de ofensa à integridade física.


De acordo com o Dr. Taipa de Carvalho, os bens jurídicos em causa nos dois tipos legais de crime são os mesmos, a dignidade pessoal e a saúde, incluindo as suas componentes físicas, psíquicas e mentais. Ademais, entende que as condutas descritas por ambos os artigos coincidem igualmente. Desta forma, distingue o artigo 152.o e 152.o-A CP somente quanto às relações existentes entre o agente e a vítima. O artigo 152.o CP parece dirigir-se a um contexto familiar/doméstico e o artigo 152.o-A a um âmbito institucional.


O professor aponta três requisitos para o sujeito passivo do crime do artigo 152.o-A CP. Exige, em primeiro lugar, que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço. O segundo requisito impõe que a pessoa maltratada seja menor ou particularmente indefesa em razão de idade avançada, de deficiência, de doença ou de gravidez. Já o terceiro requisito pressupõe que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação, pois nesse caso estará em causa um crime de violência doméstica, à luz da alínea d) do no 1 do artigo 152.o CP.


Esta distinção tem pertinência, uma vez que apesar de o nosso estudo versar mais vincadamente sobre a relação entre pai/filho, não nos podemos descuidar da questão das crianças institucionalizadas e até mesmo da relação professor/aluno em qualquer escola. Ouvimos, com frequência, falar do medo outrora imposto no seio da comunidade escolar, através de expressões como “Levei muitas reguadas”.


Neste âmbito, destacam-se ainda três diplomas legislativos portugueses, o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e a Lei Tutelar Educativa. Contudo, como é sabido, no nosso CP encontram-se previstas algumas causas de justificação, que representam uma espécie de contratipos, isto é, o legislador descreve situações excecionais que excluem o desvalor jurídico penal à conduta que é subsumível ao tipo incriminador.


Tradicionalmente, alegam-se três causas de justificação. A primeira causa de justificação diz respeito ao exercício de um direito, nos termos do artigo 31.o/2/b) CP. Doutrina e jurisprudência aplicavam esta causa justificadora no sentido em que entendiam haver autorização legal civil baseada no poder paternal e dever de correção (Antigo artigo 1884.o CC). A segunda causa de justificação refere-se ao cumprimento de um dever, como dispõe agora a alínea c) do no 2 do artigo 31.o CP, utilizando aqui como fundamento o dever de dirigir a educação do menor, consagrado no artigo 1878.o CC. Por fim, é ainda apontada como causa de justificação o consentimento do titular do interesse jurídico lesado, firmada no artigo 31.o/2/d) CP.


A Doutora Laura Fernandes Madeira discorda da aplicação de qualquer uma das causas referidas. Por fim, faremos alusão à teoria da adequação social e ao princípio bagatelar. Nas palavras de Welzel, o responsável pela teoria da adequação, a mesma tem como fim último “excluir do conceito de ilícito todas as condutas que se movem funcionalmente dentro da ordenação social historicamente desenvolvida”. Esta teoria importa no que toca aos CF, porque subsiste na nossa sociedade a ideia de que tais comportamentos são aceitáveis e até necessários para a educação dos menores, pelo que a ideia subjacente é que sendo a conduta socialmente normal e tolerada, não atingirá o nível de ofensividade suficiente capaz de fundar a ilicitude penal. No entanto, ainda que seja verdade que grande parte da sociedade aceite os CF a crianças, existe também uma “consciência comunitária de que todas as formas de violência são socialmente intoleráveis”. A questão que se coloca é, então, a de saber se perante esta recusa da teoria da adequação social, se deve penalizar qualquer ofensa corporal simples.


Para dar uma resposta a esta questão impõe-se a distinção entre adequação social e bagatelas. De acordo com a Doutora Laura Fernandes Madeira, “existirá, para situações de manifesta desnecessidade de proteção do bem jurídico, a válvula de escape do princípio bagatelar” e refere como exemplos, o “calduço” que o pai dá ao filho por este dizer uma tolice e a mãe que aperta ligeiramente o braço da filha quando pressente que ela iria revelar algo inapropriado a terceiro. O que se impõe é que haja um esforço conjunto de doutrina e jurisprudência para que o julgador deixe de ter “espaço de manobra” para excluir a responsabilidade dos pais aquando da aplicação de CF, ainda que tais condutas não alcancem a intensidade de um maltrato. Se o próprio Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade em caso algum admite a aplicação de castigos corporais aos reclusos, o Direito falha na proteção da criança que é um ser particularmente frágil, vulnerável e que se encontra em desenvolvimento. Não pode haver fundamento legal ou interpretativo que tolere uma ofensa à integridade física a uma criança, quando o mesmo não se verifica em relação a um qualquer adulto, nem tão-pouco quanto a um recluso.


Abordagem social


No início do ano passado, o IAC desenvolveu, no nosso país, o estudo “Será que uma palmada resolve”, que abordou os procedimentos adotados na ação educativa familiar. No total, foram questionadas 1943 pessoas, das quais, 73% eram pais e 44% trabalhavam com crianças. Analisando os resultados, verificamos que cerca de 30% das pessoas inquiridas “consideram poder usar-se castigos corporais em crianças”. Sendo apontados como motivos justificativos o incumprimento dos limites e das regras familiares (81,7%), seguindo pelas situações em que são malcriadas (81,6%) e desobedientes (78,2%). Ainda assim, é possível constatar que 95,5% têm uma maior dificuldade em admitir a punição física como estratégia disciplinar. Por último, concluímos ainda que “os participantes mais velhos têm crenças que remetem para uma visão tradicional da educação – aceitação e uso de castigos corporais”, ao passo que, as “pessoas com níveis de estudos mais elevados têm uma menor aceitação do uso dos castigos corporais como forma de disciplinar”.


Como é fácil perceber, na nossa sociedade, a abolição do recurso a CF é ainda um tema controverso, tanto no meio social, como na jurisprudência, o que resulta de dois fatores. O primeiro fator consiste numa herança educacional passada de geração em geração, fazendo com que esta prática se torne cultural. O segundo, por sua vez, traduz-se na incapacidade dos tutores de resolver determinadas situações em momentos de descontrole e stress. Os profissionais nesta matéria enfatizam que, apesar dos castigos corporais já não serem aplicados em público com tanta regularidade, continuam a ser um comportamento que subsiste no “subterrâneo”.


@JornalExpresso


Formas de erradicar o uso dos castigos corporais


Nas últimas décadas, a União Europeia tem vindo a impor aos Estados Membros a abolição dos CF, tendo como instrumento jurídico de referência a Convenção sobre os Direitos das Crianças. No ano passado, a Comissão Europeia apresentou uma nova estratégia de defesa dos direitos da criança, que consiste em iniciativas políticas de primeiro plano de combate à violência contra crianças e mulheres. A nível interno, os especialistas apontam que, para além da criminalização desta prática, é necessário mudar a tradição educacional, posto que o facto de a lei a proibir não significa que a sociedade a abandone. Para esse propósito, mostra-se necessária a intervenção estadual, no sentido de sensibilizar a comunidade quanto às consequências associadas à utilização de CF.


Neste contexto, a Doutora Laura Fernandes Madeira aponta a necessidade da proibição de castigos corporais se fazer acompanhar de reformas a três níveis: legal, político e social. No domínio da reforma legal é necessário haver uma eliminação clara e inequívoca de qualquer espaço de atuação, que permita a aplicação de causas justificativas, a exclusão da tipicidade e a adequação social do comportamento. No nosso ordenamento, mostra-se necessária uma previsão que proíba expressamente o uso de ofensas criminais (ainda que leves) no âmbito das responsabilidades parentais, seja pelo dever de educar, corrigir ou dirigir.


Para além da reforma legal, requer-se, igualmente, uma reforma política com destino à promoção de um “mecanismo de intervenção social, acompanhamento e aconselhamento de famílias sinalizadas, e proteção de crianças vítimas de violência”, de modo que a lei intervenha na esfera familiar, apenas nas situações em que o supremo interesse do menor assim o suscite. Por último, resta-nos indicar a sensibilização da sociedade civil como conduta essencial para promover o abandono dos CF. Desta feita, adiantamos algumas estratégias, que nos parecem poder contribuir para a consciencialização contra os castigos corporais.


Começamos por apontar a intervenção dos Centros de Saúde, na medida em que achamos que podem ser facultadas breves ações de formação, que permitam aos progenitores aprender a lidar com momentos de maior tenção e a não sucumbir perante a tentação de “levantar a mão”. A intervenção dos profissionais de saúde, sobretudo dos pediatras, mostra-se, igualmente, fulcral neste ponto. Este trabalho deverá passar também pelas escolas com um maior enfoque na exposição de estratégias positivas para a resolução de conflitos. Manifesta-se ainda a necessidade de que os profissionais de educação procedam de forma consciente e de acordo com a lei, mesmo que não compartilhem da opinião de que os CF são uma prática a evitar.


Por último, referir a importância de trazermos para esta ação de sensibilização a participação de algumas instituições, que exercem uma grande influência no funcionamento da sociedade, nomeadamente, as universidades, instituições de caráter religioso e as forças de segurança pública. Atualmente, 65 países proíbem totalmente o uso de castigos corporais, sendo Portugal um deles, desde 2007, com a nota de que foi pioneira nesta proibição a Suécia, em 1979. Outros 27 países comprometeram-se a alterar as suas leis nesse sentido. Entre nós, já foi atingida a meta da criminalização, resta-nos alcançar um entendimento cultural comum intolerante à utilização de CF.


Castigos Corporais como Método Educativo


Face ao sustentado ao longo de toda a exposição, não subsistem dúvidas de que, o uso de castigos corporais é uma prática criminalizada no nosso ordenamento jurídico. Não obstante, procederemos a uma breve ponderação sobre os efeitos dos CF empregues enquanto método educativo. O uso dos CF como ato corretivo sempre foi legitimado nos mais diversos grupos sociais, motivo pelo qual, até ao século passado, não se debatia a sua erradicação. Apesar disso, a investigação desenvolvida nas últimas décadas tem vindo a indicar que o recurso aos castigos corporais contribui parcamente para a disciplina e correção comportamental das crianças.


Num estudo levado a cabo por Elizabeth Gershoff, investigadora da Universidade do Texas, concluiu-se que a “palmada pedagógica” não tem efeitos educacionais efetivos, já que as crianças apenas se sentem impelidas a comportar-se apropriadamente quando se encontram na presença dos pais. Para além disso, determinou-se que vivenciar esse tipo de experiência na infância acaba por levar a “mais agressão, a um incremento das atitudes antissociais e a problemas cognitivos e de saúde mental”. Com base neste estudo, a professora chegou ainda à conclusão de que grande parte dos pais bate nos filhos, porque eles próprios tiveram essa experiência enquanto crianças.


À semelhança deste estudo, existem muitos outros, que evidenciam o insucesso dos CF enquanto método educativo e os seus efeitos negativos na criança, e, indiretamente, na própria sociedade. Neste âmbito, em Abril de 2013, a Global Initiative to End All Corporal Punishment of Chlidren publicou uma investigação, onde vêm expostos todos os danos provenientes do uso de castigos corporais, entre os quais verificamos: danos físicos diretos, aumento de agressões entre crianças, fraca interiorização moral e aumento de comportamentos antissociais, comportamentos criminosos na vida adulta, danos psicológicos, e deficiências de aprendizagem.


Começando por abordar os danos físicos diretos, constatamos que todo o tipo de castigo corporal, mesmo o “moderado”, implica um risco inerente de escalação, já que em regra, quando um adulto bate numa criança, encontra-se num estado de cólera, sendo propícia uma maior perda de controlo sobre si mesmo. Os CF com intuito educacional, para além de ferirem milhares de crianças, deixando, por vezes, mazelas físicas, matam muitas outras, todos os anos. Ainda neste sentido, somos conduzidos à premissa de que “violência gera violência”, na medida em que, existem provas de que as crianças vítimas de medidas disciplinares físicas são mais propensas a serem agressivas com as pessoas à sua volta, dado que adotam um raciocínio do género “se o causar dor é um método apropriado para o meu pai obter de mim o que quer, também eu posso obter o que quiser dos outros se lhes causar dor”. Trata-se da repetição de um modelo.


Para além disso, os castigos corporais têm sido associados a comportamentos antissociais, porque impedem um desenvolvimento completo da empatia da criança. É preciso atentar que, muitas vezes, estes comportamentos se estendem à vida adulta. A longo prazo, os efeitos dos CF mostram-se fracassados, uma vez que, as crianças não adquirem a razão por detrás da censura de determinada conduta, fazendo com que, no futuro, a criança apenas se preocupe em não ser apanhada. A nível psicológico, observamos que, as crianças que sofrem castigos físicos habitualmente apresentam problemas de “comportamento, ansiedade, depressão, baixa autoestima e instabilidade emocional”, que podem guiar ao suicídio ou às dependências de álcool ou drogas. Estes danos psicológicos refletem-se, muitas vezes, na aprendizagem, tendo sido identificado que é menos provável que estas crianças consigam terminar a universidade.


Por fim, os castigos corporais prejudicam seriamente a relação dos filhos com os pais, porque levam a um distanciamento entre ambos, e inserem medo numa relação que é suposto ser de confiança, segurança e conforto. Com base nestas informações, apelamos fortemente à parentalidade positiva, cujo objetivo é evitar submeter a criança a humilhações físicas ou verbais, incentivando-a a pensar e a escutar, de modo que consiga desenvolver uma inteligência emocional, que lhe permita perceber quando age inadequadamente. Lembrem-se, o poder-dever de educar não confere aos pais o direito de agredir os seus filhos, a ideia adjacente a educar é permitir o desenvolvimento completo e harmonioso da criança, e não puni-la.


Há que abandonar a velha ideia de que a criança é um “ser” carecido de razão, e começar a tê-la como um ser completo e perfeito, merecedor de proteção. Afinal de contas, uma criança nada mais é do que um adulto em desenvolvimento, nós não repudiamos os erros das pessoas adultas com agressões, porque é que o fazemos com as crianças?


Conclusão


Não subsistem dúvidas de que, em Portugal, à semelhança de muitos outros países, o emprego de CF é uma prática proibida, pelo que a resposta à questão “Castigos físicos a crianças – Educação ou Violação de Direitos?” é clara. A submissão de crianças a este tipo de comportamentos constitui uma violação de direitos fundamentais, tal como dispõe um conjunto de Convenções Internacionais. Contudo, se é certo que não se questiona, atualmente, a ilegalidade desta prática, no âmbito jurídico, é igualmente certo que, no meio social, existe ainda uma resistência face ao desuso da mesma.


Deste modo, concluímos que o próximo passo é alcançarmos um entendimento geral intolerante à aplicação destes castigos, para que haja uma efetiva diminuição dos casos na prática, deixando os tribunais de ter espaço para contornar esta proibição. Para tal, mostram-se necessárias múltiplas reformas, que devem ser impulsionadas a nível estadual. Em ultima ratio, compete aos tribunais continuar a exercer o seu papel condicionador. Embora o costume seja uma fonte de Direito, existem circunstâncias, onde é necessário que seja o Direito, o legislador, a impor a mudança e a moldar a sociedade, intervindo com um intuito educativo.


Finalmente, terminada a exposição, se restarem, porventura, objeções quanto à erradicação de castigos corporais, deixamos para reflexão a seguinte observação: “Bater em adultos, é agressão. Bater em animais, é crueldade. Bater em crianças, é para o seu bem”.


@JornalExpresso


Bibliografia


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Edéria Lopes

Francisca S á

ELSA U.Porto

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