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Chamo-me Simone e Canto Cantigas - Grande Entrevista a Simone de Oliveira

  • Foto do escritor: Jornal Tribuna
    Jornal Tribuna
  • 8 de mar.
  • 18 min de leitura

Simone de Oliveira, nascida em Lisboa a 11 de fevereiro de 1938, é uma das grandes figuras da música e cultura portuguesa. Primeira mulher a representar Portugal na Eurovisão, em 1965, com "Sol de Inverno", voltou à competição em 1969 com a icónica "Desfolhada Portuguesa", que se tornou um hino de liberdade.

 

Mas Simone nunca foi só cantora. Ao longo da vida, foi também atriz — no teatro, na televisão e no cinema —, locutora de rádio e até jornalista. Também a nível pessoal, desafiou os paradigmas de um Portugal conservador, desde logo, ao sair de um casamento marcado pela violência doméstica e ao assumir o papel de mãe solteira de dois filhos.

 

Pensar em Simone é pensar num exemplo de força. Uma mulher que “fez sempre tudo à frente da cortina”, mesmo que isso lhe rendesse ter o seu nome nos registos da PIDE ou a Guarda Republicana a cavalo. Desafiou o regime, lutou pelos direitos das mulheres, foi atriz, cantora, jornalista e apresentadora. Uma mulher que a ninguém se submeteu e, inquestionavelmente, com uma visão muito à frente do seu tempo.


Tem dias. Acho que sim, mas vocês é que sabem, eu não me posso julgar a mim própria. Tomei as atitudes que tomei quando entendi que as tinha de tomar, sempre com uma premissa: eu nasci livre. E como nasci livre e tive a sorte de ter um pai e uma mãe que me deixaram ser livre, não me puseram presa nem coisa nenhuma, continuo igual a mim própria. Eu costumo dizer que me chamo Simone e canto cantigas, mais nada. 




Caracteriza-se como Simone e canta cantigas... se me permitir, caracterizá-la-ei como resiliente, única e... acima de tudo... Mulher.


Acho que sim, tenho sido uma mulher desde sempre, não fugi aos meus compromissos. Tive filhos quando quis, sem ser casada, achei que era assim que queria. Tive os meus filhos por amor, da mesma pessoa, o Sr. Engenheiro António José Coimbra Mano. Criei os meus filhos sozinha, o pai esqueceu-se um bocadinho, como costumo dizer. Não lhe quero mal nenhum, já partiu há alguns anos, velhote, mas esqueceu-se completamente. Como se esqueceu, eu não me esqueci e criei o Pedro e a Eduarda com uma grande paixão e um grande amor. Tentei tudo para lhes dar os recursos que têm, trabalhei muito, conduzi muito para cima e para baixo, para baixo e para cima. Também é por isso que tenho as pernas tão cansadas. A minha mãe costumava dizer “tu vais pagar isso tudo” e estou a pagá-las, as minhas pernas... minha nossa senhora. Eu tenho tantos quilómetros nas pernas como qualquer bom motorista. 


Tenho sobretudo uma coisa que me agrada muito, que é a minha cabeça, perfeitamente no sítio. Tenho uma memória de elefante e não tomo memofante, atenção. Tenho uma memória que a mim própria me espanta, uma memória privilegiada, tendo em conta a idade que tenho. Acho que é uma coisa que me deixa muito feliz, ter memória e ter noção do que estou a fazer, saber quem sou, para onde vou e de onde vim. 


  1. São poucas as vezes em que refere a presença de um homem de chapéu e olhos azuis nas suas atuações. Uma vez, a cantar ao lado de Francisco José, outra, já em casa, a cantar uma música de Joaquim Luís Gomes, recebe uma demonstração de carinho por parte do seu pai, algo raro. Em 1973, recebeu o Prémio de Interpretação na sequência de uma paragem no mundo artístico e afirma que o seu regresso a este meio foi uma forma de homenagear a sua mãe. Em que medida sente que este apoio mais reservado, por parte da sua família, a modelou enquanto profissional e pessoa? 


O meu pai nunca me disse que eu cantava bem. A minha mãe dizia, a minha mãe tinha uma coisa gravíssima, que se chamava de “Simonite Aguda”.


Apareciam as minhas colegas todas, que eu recordo com a maior ternura, a maior saudade e o maior respeito, e ela dizia “oh minha filha, elas são todas giras e cantam todas muito bem, mas entras tu e tu és outra coisa”. 


O meu pai só uma única vez, que foi num espetáculo em que cantei na televisão, ainda a preto e branco, onde cantei uma canção do Luís Gomes e ele passou por mim e fez-me uma coisinha no cocuruto da cabeça. Depois, quando vim finalmente da Desfolhada de comboio, a Maria Leonor, o José Fialho, e o João Soares Louro fizeram-me uma “rodazinha”. Quando saí do comboio, o meu pai estava no meio deles e foi um momento muito emotivo. Aliás, eu só vi isso há 7/8 anos atrás, porque a RTP fez o favor de passar esse bocado para as mãos de duas pessoas que, durante os últimos 30 anos, tomaram conta de mim: a Sra. Dna. Fátima Bernardo e a Sra. Dna. Adelaide Figueiredo, a quem devo os últimos 30 anos da minha vida de cantigas. Em tudo, na América, na Argentina, no Brasil, em Moimenta da Beira, em Viseu… no camarim, em tudo o que era preciso ou que não era preciso, tive estas duas que, durante 30 anos, foram os meus anjos da guarda. Continuamos amigas, cada uma com a sua vida. Elas já têm 60 anos, eu já tenho 80 e muitos, mas continuamos com uma amizade muito grande e eu tenho por elas a maior ternura e o maior respeito. 


Cantar preenche e sempre preencheu a vida desfolhada de Simone. Apesar de todas as peripécias, nunca desistiu de o fazer e em 1969 torna-se autora de uma das canções mais emblemáticas da música portuguesa. Como sentiu a verdadeira “Desfolhada” naquele momento?


A minha filha, no outro dia, perguntou-me “oh mãe, como é que lhe deram a desfolhada?”. Eu disse-lhe “olha, deram-me a desfolhada, porque ninguém queria dizer o «quem faz um filho, fá-lo por gosto»”. Em 1969 era assim um bocadinho ultrajante e um bocadinho difícil. 


Então, o Zé Carlos perguntou onde estava aquela mulher muito grande (eu pesava muitos quilos) que tinha aquela voz muito grande. Ainda tinha a outra voz: ainda bem que a perdi, se não, não tinha chegado aqui. Eu já tinha lido o texto, porque o José Mensurado tinha-nos trazido o texto numa folha de papel, numa boate que havia em Lisboa. Ele, num papel de embrulho, disse-me assim: “Tenho aqui um texto que tirei à socapa do Festival da Canção, daquele poeta comunista que escreve para a Amália”. Desatámos todos a ler a letra e eu disse “ bem, pronto”. Quando o José Carlos Ary (sem eu ter dito que já tinha lido o poema) me pergunta se era capaz de dizer aquilo, eu apenas disse “Sou”. Ele voltou a perguntar se eu tinha a certeza e eu só disse que sim.


É engraçado que a Lurdes Norberto, que fazia a apresentação do Festival, linda, maravilhosa, entrou no meu camarim e disse-me assim (eu era a primeira a atuar): “Olha lá, tu vais dizer isto?”. A isto só respondi: "Oh mulher, eu vou”.


A última canção era da fadista Maria da Fé, que cantava: “o vento do Norte, do Norte soprava”. Nesse momento, eu pensei que o Festival já estava ganho. Entretanto, começo a ver a pontuação e a “Desfolhada” está à frente. Só podiam estar todos bêbados, pensava eu! 


A “Desfolhada” ganha com uma votação extraordinária. Se me perguntar porquê, eu não sei responder. Eu penso que terá sido ali algo relacionado com um momento político por parte do Marcello Caetano, de alguma forma, uma certa abertura. Provavelmente, só se aperceberam de que eu era capaz de dizer “quem faz um filho, fá-lo por gosto”, algo que ninguém dizia, e pronto. Para mim, é essa a explicação, não consigo encontrar outra. 


A verdade é que eu penso que posso dizer que todos nós, dos 9 aos 90, sabemos cantar a Desfolhada, tornou-se um hino em Portugal...


Eu costumo dizer ao Nuno Nazareth Fernandes que, quando me deram a Desfolhada, puseram-me a Pátria em cima. E é verdade.


Toda a gente sabe o “quem faz um filho, fá-lo por gosto”, as crianças, as tunas... Foi uma canção que ficou na memória de um país, por causa dessa frase, e eu sou extremamente grata, quer ao Nuno Nazareth Fernandes, quer ao José Carlos Ary dos Santos, por isso. Dois amigos eternos, devo-lhes canções maravilhosas e devo-lhes, sobretudo, uma amizade.


O Zé Carlos Ary chamava-me “oh, Tejinho” ou “oh, Irmã”. Nunca tivemos uma discussão política, em circunstância nenhuma, e lembro-me perfeitamente que, quando morreu, estava com a bandeira do partido comunista em cima. Eu fui lá e pensei “o que é que eu faço”. Então, levantei um bocadinho da bandeira, e achei graça, porque o Paulo de Carvalho e o Carlos do Carmo gritaram “não lhe toquem!”. Havia 4 miúdos à volta, de punho no ar, que me iam deitar a mão, porque eu tinha mexido na bandeira.  


Nunca tive uma discussão com o Zé Carlos Ary a nível nenhum. Tenho a impressão de que tive uma, que nem chegou a ser discussão. Ele perguntou-me se eu ia cantar à Festa do Avante e tinha 350 contos para me dar, que me faziam a maior falta do mundo. Disse-lhe para não me pedir isso e ele olhou para mim e respondeu-me “tens razão, desculpa irmã, eu não devia ter feito isto”. Aquele dinheiro fazia-me falta, mas não era a minha maneira de ser. 


Eu costumo dizer uma frase que o Sr. Charles Aznavour, que é das minhas enormes paixões, dizia: “Quem fez de nós o que nós somos é o público”. Mais ninguém. Eu tenho a sorte extraordinária de este país me ter tratado muito bem até hoje. Estarei extremamente grata a todas as pessoas que me ajudaram, que me deram a mão, ao que me levou café ao camarim, ao que me puxou a corda, aos que choraram por minha causa. Eu acho graça que uma amiga minha dizia assim: “Antes as pessoas choravam quando ela cantava, agora já choram quando ela fala. Isto não se aguenta”. 


Um dia, estávamos em Moçambique e íamos para Bazaruto. Éramos para ir de avião, mas acabámos por ir numa carrinha. Nossa senhora, oito ou nove horas de carrinha, numa daquelas que a cabeça bate no teto – “epa, vocês queriam matar a velha, avisassem!”. Parámos a meio do caminho, num cafezinho, isto no meio do nada. Eu entrei e era um senhor ao balcão, que olha para mim e diz assim: “A senhora não é de Maputo, a senhora é da televisão”. A Fátima queria tomar café, sai e só diz assim: “Não se pode ir a lado nenhum com ela, até no meio do mato sabem quem ela é”. 


São coisas engraçadas. Há outras coisas mais duras: eu tive de fazer um espetáculo, uma comédia para rir, no dia em que morreu a minha mãe. Saí da igreja e “the show must go on”, a casa estava esgotada e eu fui. Mas isso acontece, já aconteceu a todos nós. Não foi nada de extraordinário, veja lá que, depois, me levaram para o hospital, e eu comecei a rir, a rir e a rir e nunca mais acabava. Mas isso são outras histórias. 


A minha vida é feita de coisas maravilhosas e de coisas difíceis. Quando perdi a voz foi muito complicado: fui vender bonecos, estive em lojas e fui a Luanda vender brinquedos. Um dia, estava a ver aqueles programas do Tordo e do Paulo de Carvalho, que o Carlos Cruz fazia, olhei para a televisão e pensei que se cantava de outra maneira, os textos eram outros, “vamos ver se eu sou capaz”. Quando foi o Festival no Maria Matos, cantava a Tonicha, o Paulo de Carvalho, toda a gente. O Zé Carlos Ary dá-me o poema “quem disse que morreu a madrugada…” e perguntou-me se eu era capaz de o cantar. Lembrei-me da minha mãe, que não me ouviu cantar, e disse “Eu vou lá”.


Estava no ensaio, com a orquestra e o José Fialho, da plateia, pergunta: “Olha lá, e se tu logo perdes a voz?”. Fez-se um silêncio, parou a orquestra e eu disse-lhe “Eu nunca mais vou perder a voz” e não perdi. Sei que eu cantava e estavam todos agarrados uns aos outros cá fora, quase a rezar o Pai Nosso e o Avé Maria só para eu não perder a voz. Ganhei o prémio de interpretação, que está aqui no meu quarto, é uma taça muito bonita de que eu gosto muito. 


Desde Moimenta da Beira até Faro, eu cantei em tudo o que era sítio. Um dia cantei em cima de um poço com tábuas e só pensava assim: “Se as tábuas partem, lá vou eu por aí abaixo”. Outro dia, foi preciso tirar as vacas para se fazer um palco e para se fazer o espetáculo. Era um cheiro a vacas, Maria Santíssima! Tenho a impressão que, de Norte a Sul do país, cantei em tudo o que era sítio. E depois, num outro dia, deu-me um ataque de loucura e arrendei um teatro em Londres e cantei. Levei o Jorge Barradas, como viola, e o Jorge Machado, como pianista. Eu disse-lhes que não tinha dinheiro para lhes pagar, que só tinha dinheiro para as passagens e para a estadia. E lá fizemos um espetáculo extraordinário.


  1. Reconhecida pela sua autenticidade e força, a sua postura corajosa perante o regime de Salazar é incontornável. A sua resistência foi uma consequência natural da necessidade de viver de forma genuína e dizer o que pensava, ou foi uma escolha deliberada de enfrentar o regime, acreditando que poderia contribuir para a mudança? 


Oh minha querida, eu nem me lembrava quem era o Salazar! Sempre disse o que disse, fiz o que fiz, e fui dizendo as coisas todas e nunca ninguém me chamou à pedra, embora saiba que tenho o meu lugar [o meu nome] na PIDE. Deve ter sido por eu ter dito que “quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Eu sempre vivi a minha vida como eu quis, à minha maneira, não me lembrando do regime. 


Eu tive um programa na rádio em que entrevistei tudo o que era ministros. Tentei entrevistar o Dr. Álvaro Cunhal, por quem tenho o maior respeito, e telefonei-lhe. Perguntei-lhe se podia falar - “Ah, o camarada disse...”. Retorqui: “Camarada é da tropa, eu quero é falar com o Dr. Álvaro Cunhal” -“Ah, ele agora não pode”.


Estava eu na emissora, a antiga Emissora Nacional, e dizem-me: “Simone, é do Partido Comunista”. Parou tudo. Era o Dr. Álvaro Cunhal “Olá, Simone”, “Olá, Sr. Dr., eu gostava tanto de conversar consigo.”, “Olhe Simone, eu só sei falar assim entre amigos, portanto não leve a mal”. Então, eu perguntei-lhe o que podia fazer por si e ele respondeu: “Continue a ser a mulher que tem sido até aqui, que tem sido uma grande mulher”. Eu desliguei e levei, para aí, meia hora a chorar. São essas coisas, que se foram passando e que foram acontecendo, que me preencheram a vida. Foi assim a minha vida toda, praticamente desde os 20 até eu fazer 80.


  1. Se o feminismo em Portugal tivesse um rosto, Simone certamente seria uma forte candidata. Sobe ao palco da Eurovisão e canta a plenos pulmões, para um país que ainda vivia dominado pela censura, “quem faz um filho, fá-lo por gosto”, tornando a Desfolhada num hino português. Qual julga ser o papel da cultura na luta pela mudança dos paradigmas sociais, mais concretamente na defesa dos direitos das mulheres? 


Eu fui dizendo o que me apetecia dizer e fui fazendo as coisas que me apetecia fazer. Se isso contribuiu de alguma maneira, que bom. Talvez tenha dado sinais a outras mulheres para fugirem da violência doméstica, porque eu fugi. Eu dizia “Não quero isto. Ai, isto é assim? Então abres-me a porta ou eu salto da varanda”. O senhor, quando percebeu que eu ia saltar pela varanda, abriu a porta. 


Depois, realmente, tive uns pais que aceitaram perfeitamente. Aquilo que o senhor pensou foi “Pronto, ela chega a casa [eu tinha casado pela igreja] e os pais mandam-na embora”. Eu sentei-me numa cadeira, contei tudo, a minha mãe ficou muito doente e o meu pai ouviu e respondeu “Sim, senhora”. Eu disse-lhe “Olhe pai, se o pai me deixa ficar aqui, eu fico, mas, se não, eu vou para um lado qualquer”. Claro que eu sabia para onde ia, tinha uma tia que era irmã do meu pai, que eu amava (a tia Olga). Sabia perfeitamente que lhe ia bater à porta e ela abria-ma, mas tive um pai e uma mãe presentes. 


Eu fiquei grávida da minha filha do Sr. Engenheiro Coimbra Mano, que andava a estudar no Porto. Quem andava de braço dado comigo, a fazer inveja, era o meu pai. Ninguém me tinha visto, nem sabiam quem era o Sr. Engenheiro, nem nada. Eu digo que há três homens que eu considero os homens da minha vida: o meu pai, o meu filho e o Varela. 


Falando do Varela, viveu uma história de amor muito bonita, com uma pessoa que acredito que a levou sempre a lutar por mais...


Não sei se foi sempre a lutar por mais. Eu conheci o Varela de uma forma muito engraçada. Estava de luto da minha mãe e ia fazer uma peça com a Sra. Dna. Laura Alves. A Laura Sobral, que tinha um papel nessa peça, teve de ir a Luanda, porque era casada com o filho do Marcello Caetano. De repente, fica aquele papel pendurado e, sabe Deus porquê, chamam-me a mim. O diretor do espetáculo era o Varela. A Fernanda Borsatti e o Joaquim Rosa diziam-me que o diretor era um chato e eu pensava “Está bem, pronto ok, acabou-se”. 


Eu toda de luto, toda de preto “Olhe, boa noite, eu chamo-me Simone”. Começamos os ensaios e há um dia em que o senhor, do fundo da plateia, diz assim: “Minha senhora, não quero pés de vedeta”. Oh, com os diabos. Eu bem que olhava para os pés… Ao terceiro dia do Varela me dizer isto, eu respondi-lhe que me ia desculpar, mas eu não sabia o que eram pés de vedeta – “a senhora quando tem uma frase mais forte, tem uma tendência para subir o calcanhar do pé direito”. Até hoje eu nunca mais subi o calcanhar do pé direito. Era instintivo que, numa nota mais forte, eu subisse o calcanhar do pé direito. Até hoje, eu posso dar a nota mais aguda que o calcanhar está agarrado ao chão.


  1. No dia 4 de junho de 2086 talvez possamos sentar-nos a falar. De quê? Não sei. Do que fizemos da vida, se a vivemos bem ou mal. Hoje, com 86 anos, contando a história de novo, ou dando-lhe só o final, o que tornou Simone a grande mulher que foi, é e, certamente, continuará a ser? 


Não faço a menor ideia, fiz o que pude, tentei amenizar os dramas. A morte da minha mãe foi um horror, e a morte do meu pai também. 


Criei os meus filhos sozinha. Cada vez que eles diziam “Oh mãe, preciso de um livro que custa 30 contos” - ai - mas havia sempre qualquer coisa, um espetáculo que aparecia por uma razão qualquer e que me permitia pagar os cursos dos meus filhos. O meu filho é engenheiro do ambiente e a minha filha é licenciada em psicologia clínica. Fui eu sozinha que fiz tudo, fui fazendo, um bocadinho mais aflita, um bocadinho menos aflita, fui tentando. 


Porque é que as pessoas me deram poemas? Um dia, eu lembro-me perfeitamente, estava no porão de análise a ensaiar com o José Drummond uma cantiga muito complicada. Entra o David Mourão Ferreira, com o seu chapéu, o seu cachimbo e o seu cachecol, e pergunta-me se era capaz de cantar uma coisa sua, “se escrever, eu canto”.


Eu nunca pedi um texto ou uma canção a ninguém. Foi acontecendo, não sei se foi sorte, se foi nosso senhor Jesus Cristo. Eu digo sempre que foi a minha mãe.


  1. O que seria da Simone se não tivesse sido artista? Acredita que, tendo seguido qualquer outro caminho, teria impactado o mundo de igual modo? 

Não faço a menor ideia. Aliás, eu nunca pensei ser artista, são as circunstâncias da vida. Eu fujo de casa, do casamento, …


Havia um programa na então Emissora Nacional, às sextas-feiras, das 12:20 até às 13:00, onde havia meninos e meninas a cantar. Eu estava a ouvir o programa e é a minha irmã que diz à minha mãe “Oh mãe, para ver se a gente a tira da cama (porque eu fiquei de cama, muito doente), e se ela fosse àquela escolinha, 3 horinhas por dia? Porque o médico disse para vermos se tirávamos a miúda da cama, se não a cabeça dela vai dar a volta.”. Eu fui para aquela escolinha e lembro-me bem que o Mota Pereira me diz assim “Sabe o que é um piano?” Sei. “E um microfone?” Sei lá, nunca vi um microfone, sei lá o que é um microfone.


Pediram-me para cantar uma cantiga e eu cantei um Bolero, que, naquela altura, estava na moda (que no pienso nunca en nada, mas que en ti). Ficaram todos a olhar assim para mim, com um ar de espanto. Na semana seguinte, eu estava naquele programa, da então Emissora Nacional, com aqueles meninos todos. Aparece, nessa altura, a televisão, exatamente ao mesmo tempo. Claro que agora a televisão dizia “E agora o que é que a gente faz? Onde é que a gente vai arranjar meninos e meninas para cantar na televisão? Vamos ao centro de preparação de artistas da rádio.”. Tunfas, lá fomos todos, Artur Garcia, António Calvário, Simone, Maria do Espírito Santo, Alice Amaro... E, assim, por aí fora.


“A juventude tem muita abertura em relação a mim, é mais pela minha postura, por aquilo que eu vivo e transmito, do que propriamente por se lembrarem das minhas cantigas. Isso é o maior reconhecimento que posso ter, por vezes fico emocionada”. Ninguém fugia de casa nos anos 50, a Simone fugiu; não era normal dar de mamar aos bebés atrás das portas das casas de banho e a Simone assim o fez. Isto tudo, porque para si era natural. 


Dei tanto [de mamar] à minha filha. A minha irmã levava-me a Eduarda e eu dava. A criança não podia ficar com fome, olhe que chatice. Eu dava. Para mim era natural. Para outra mulher qualquer não seria, mas para mim era. Se eu tinha de dar de mamar à filha, alguém me levava a bebé, eu ia à casa de banho, estava com ela ao colo, dava-lhe de mamar, ela mamava, dava-a outra vez à minha irmã e ela voltava a levá-la para casa.  


  1. Que conselhos tem para os jovens que admiram essa sua autenticidade? 


Meus amores, eu acho que as pessoas têm de ser iguais a si próprias. Não fazer esforço para ser outras pessoas. Não vale a pena. Essa mania de quererem mudar a cara para ficarem mais novas é uma coisa que eu não entendo. Se é um defeito, eu percebo perfeitamente. Mas para serem mais novas não vale a pena, depois olha-se para as mãos e vê-se tudo. Para as mãos, para os braços, para as pernas, para os músculos. 


Esta sou eu e serei eu até ao fim da minha vida. Não quero ser outra coisa, desejo ser igual a mim própria o mais possível. Não tenho raiva de ninguém, não tenho ciúmes de ninguém. Nunca ultrapassei ninguém, não quis passar à frente do colega, nem de uma bailarina. Tratei sempre o melhor possível as pessoas que me ajudaram. Se pudesse pô-los à frente, punha. Eu sou isto até hoje e não quero ser outra coisa!


  1. Disse há uns anos que, em meados do século passado, não se pensava ser possível chegar aos oitenta e ser artista, não era sequer imaginável. Hoje, chegar aos oitenta parece-nos quase garantido e ser artista é o sonho de muitas crianças. Ora, se assim se pensava há pouco mais de meio século, acredita que existe algo nos dias de hoje que nos parece inalcançável, mas que poderá ser uma realidade daqui a 50 anos? 

Há outros, o Paulo de Carvalho, têm todos menos 10 anos que eu, têm todos 74/75. Há muita gente aí a cantar. Hoje é completamente diferente do que foi quando eu tinha 20 anos. Não se compara, nem vale a pena tentarem comparar este país com aquele onde eu vivi até ao 25 de Abril. Foi muito engraçado, porque no dia do 25 de Abril eu estava no meu apartamento, que tinha às escondidas com o senhor Varela, e o meu pai julgava que eu estava na minha casa na Costa da Caparica. Então telefona-me e diz-me assim: “Olha, eu vou sair de casa e vou-te buscar porque há uma revolução”. Eu disse: “Oh pai, não, eu vou-me meter no carro”. Então, atravessei Lisboa, estava um dia lindo, andei no Campo Grande e não havia ninguém, só perguntava: “Mas houve uma revolução onde? Expliquem-me onde é que é a revolução, que eu não vejo nada”. Já estava tudo sereno, tudo tranquilo, um sol lindo, um 25 de abril maravilhoso. Eu só dizia assim: “Mas que raio de revolução é esta? Eu não vejo soldados, eu vejo as pessoas todas”. Depois estivemos a ver televisão e pronto. Ainda bem que houve um 25 de Abril sem mortes, sem nada. Lamentei muito aquela senhora que partiu o outro dia (a dona Celeste) que deu os cravos aos soldados. Comovi-me imenso, pus uma coisinha até no Facebook


Neste momento, o meu maior medo é que haja uma guerra entre o Sr. da América e o Sr. da Rússia. Neste momento, tenho muito medo de uma guerra, tenho realmente. Não é só por mim, mas pelos meus netos e pelo meu bisneto. Não é a minha geração, é a geração a seguir e a outra. Eu tenho um dos netos que diz “eu fujo, eu fujo para África!”. Eu ri-me, “Oh filho, ir para África também deve ser difícil, vê lá que sítio de África é que escolhes”.


Soube ultrapassar todas as partidas que a vida lhe pregou, por mais dolorosas que fossem... A verdade “é que tinha dois filhos para criar” e não fazia parte da sua essência baixar os braços. É conhecida pela sua força...


A única coisa que eu sei é que não fui à loja comprar 250 [unidades] de força. De resto, não sei explicar, porque eu própria não sei. Não quer dizer que não tenha chorado, não quer dizer que não tenha passado momentos em que dizia “Meu Deus, o que é que eu faço à minha vida”. Mas, acho que foi uma coisa que nasceu comigo. Não sei mesmo explicar. 


Lembro-me muito bem de, há uns anos, haver um padre, que depois acabou por casar a minha irmã, que foi a casa dos meus pais, porque eu fui fazer um espetáculo lá para uns rapazes que ele tinha. Ainda nos pegamos em discussão e ele olhava para a minha mãe e dizia assim: “Oh Sra. Maria do Carmo, a sua filha tem qualquer coisa que eu não consigo explicar”. Como, até hoje, toda a gente diz isso, eu devo ter qualquer coisa que eu própria não sei explicar. Olhe, foi o que a vida me deu e eu tenho aproveitado o melhor que posso. 


Aproveitar é até ao fim, e a única coisa que peço é que a minha cabeça se mantenha lúcida, como hoje, e que, quando eu tiver de partir, eu saiba que estou a partir. Já disse, não chorem, vão beber um copo, riam-se, cantem. E pronto, é assim. Chamo-me Simone e canto cantigas. Quando foi do Varela, ele disse “eu sou o maior ator da minha rua” e foi isso que ficou lá escrito: eu sou o maior ator da minha rua. 




Com grande autenticidade, uma voz inconfundível, que marcou gerações, e uma carreira feita de altos e baixos, mais do que uma artista, Simone é um símbolo de força, carisma e paixão pela arte. Como ela própria canta: "Virei os destinos, mudei os meus hinos/ Mas sei onde vou/ Sou mulher adulta, cresci no meu canto/ Sou mulher e mãe".


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