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Chevalerie budgetaire

Foto do escritor: Bruno MartinsBruno Martins

Os acontecimentos que, nos últimos tempos, têm pautado as páginas da vida política, sobretudo na Europa, aportam consigo um imanente esboroamento da gestão da pólis, enquanto atividade, bem como dos titulares que dela se ocupam; seja pela há muito anunciada crise de valores no Ocidente (com postuladores como Edgar Morin) ou pela aparente inépcia na geração de líderes unânimes e capazes do estabelecimento de consensos e pontes, bem como das necessárias flexibilidade e verticalidade no exercício de cargos de governo.


O Direito Constitucional, na sua interceção com as Finanças Públicas, desenvolveu o conceito de “cavaleiros orçamentais” normas jurídicas que não incidem, por princípio, sobre matéria orçamental mas, aproveitando o seu ensejo, são postas em vigor para alterar o quadro normativo a que concernem; não é, todavia, este o sentido o que nos deve conduzir a epígrafe deste artigo, o que se pretende é, por mimetismo entre a força militar equestre da cavalaria, e a forma como se derrubam, amedrontam, ou erguem governos com ensejo na ocasião legislativa orçamental, alertar para tal problemática.


Após uma crise económica que se infiltrou quase generalizadamente no mundo, mas na Europa com particular premência, dada a dificuldade da sua recuperação (a qual, em bom rigor, não sabemos se já iniciada, ou apenas mitigada nos seus efeitos) face a outras zonas do globo, no período pós-pandémico, surgem notícias acerca do declínio da indústria automóvel europeia, fruto da concorrência asiática, da há muito rogada autossuficiência industrial europeia, bem como de ditames comunitários no que a matéria ambiental diz respeito, a economia alemã parece dar sinais de abrandamento o que, a par do aumento do custo de vida, das dificuldades na habitação (sentidas já por antecipação relativamente, por exemplo, ao caso português) parecerá ditar o fim do governo social-democrata de Olaf Scholz ou, no melhor dos cenários, a necessária coligação entre o SPD e a CDU, formando um governo de “bloco central”, mimetizando a realidade portuguesa.


Em Portugal, o Governo sustentado pela coligação PSD/CDS-PP, e liderado por Luís Montenegro passou, também, pelo tormentoso lúgubre orçamental, oscilando entre a maré socialista, a onda liberal, e o encapelado mar da direita mais radical. Atormentado ainda pelo fantasma da queda de dois governos de António Costa, motivados por questões atinentes ao processo legislativo orçamental, após uma novelesca série de episódios acaba por ultrapassar a situação, vendo o seu projeto desvirtuado e, a ver vamos, se a sua estabilidade incólume.


Mas mais flagrante ainda é o caso francês. Flagrante na sua dimensão mediática, e na preocupação com que vai, aqui e ali, asfixiando as restantes nações europeias, como flagrante no seu cariz cavaleiresco.


Em 2017, o partido que sustenta o presidente, Emmanuel Macron, saiu vitorioso do sufrágio, com uma maioria absoluta, de onde resultaram, não só a presidência da república, como a chefia do governo. Todavia, a posição hegemónica do En Manche! e dos seus parceiros, apenas se manteve até 2022, a meio de alguma turbulência social, e do descontentamento dos franceses, seja pela questão das migrações, pelo então já anunciado declínio da economia francesa, e os característicos distúrbios sindicais francófonos reacendidos por este governo; perde-se em 2022 a maioria absoluta, ganhando terreno a coligação verde, progressista, de esquerda e extrema-esquerda, liderada por Jean Luc Melenchon  NUPES  e a extrema-direita de Le Pen. Apesar do choque para o partido de Macron, o Presidente da República volta a indicar uma chefia de governo da sua esfera política, Élisabeth Borne que, ab initio, vaticinou o grande risco de colapso da articulação de forças no sistema de governo francês, situação que se evidenciou após uma guerra comprada com os sindicatos e a população francesa no geral, para levar avante o projeto de lei de alargamento da idade de acesso à pensão de reforma, a par da grande derrota do centro-direita de Macron nas eleições europeias para o Rassamblement Nationale.


Emmanuel Macron anunciou a dissolução da Assembleia Nacional com vista a construção de uma maioria sólida e operante; o resultado do sufrágio realizado em setembro de 2024, foi a já confirmada decapitação do governo apoiado pelo partido do Presidente da República, que nem o interregno liderado por Gabriel Attal conseguiu rejuvenescer. A coligação de esquerda e a extrema-direita voltam a atingir resultados muito próximos, ficando aquela no topo do pódio eleitoral, o que, todavia, não lhe valeu a graça de formar governo. Atendendo aos ditames constitucionais per se, o presidente indigita Michel Barnier, um conhecido republicano, e respeitado negociador no que à diplomacia política quer interna, quer europeia diz respeito.


Subido ao cadafalso, Barnier governa contornando a contestação, a imprensa, e os dados socioeconómicos até ao momento de aprovação da proposta orçamental. Esgotadas as tentativas de negociação, segundo alega o governo francês, e iminente que era a queda do governo por não aprovação da proposta[1] , o executivo recorre ao artigo 49º, nº3 da Constituição francesa para aprovar a Lei Orçamental da Segurança Social para 2025 escusando-a de debate parlamentar. Aprovada que estava, ao fim do duro braço de ferro entre o governo, parceiros sociais, e a sociedade francesa, a proposta, rende-se Barnier a um ecce homo inaudito, pelo menos desde 1962, na história política francesa: uma moção de censura, aprovada maioritariamente no parlamento, derruba o seu governo.


Relevantes a este respeito são as declarações de François-Xavier Millet, aclamado cientista político: "Se, desta vez, o presidente quiser evitar outro colapso do governo, terá de permitir que os deputados apresentem uma figura mais consensual", e de Emmanuel Rivière, especialista em opinião pública: "Precisamos de um projeto e de um acordo, não de uma personalidade. Não cabe a Macron fazer o casting. É necessário um acordo para ultrapassar o obstáculo orçamental. Pode ser um tecnocrata puro com a missão específica de garantir que a França tem um orçamento para 2025”.


Em suma, num panorama institucional europeu renovado, e novamente operacional no exercício das suas funções, face à proliferação de conflitos bélicos e políticos um pouco por toda a parte, num período de singular incerteza económica e social, vivido por uma sociedade débil, a liderança política decadente traça o perfil de uma realidade senescente, aguardando quem de novo a saiba despertar. Bem nos dizia Natália Correia:


“Andar?! Não me custa nada!...

Mas estes passos que dou

Vão alongando uma estrada

Que nem sequer começou."

 

Bruno Martins

Departamento Sociedade


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