Depois de muita ponderação e de um longo verão de preparação, nasceu, no dia 9 de setembro de 2023, o CINETEATRA, enquanto único núcleo cultural da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP). As fundadoras deste clube entenderam que existia uma grande lacuna no seio da vida académica dos nossos estudantes e tomaram a decisão de trazer esta lufada de ar fresco à Rua dos Bragas.
De mão dada com o cinema, este novo grupo académico desenha os seus horizontes muito além da sétima arte, propondo-se a funcionar como uma janela para tudo o que é cultura, desde a literatura ao teatro, passando ainda pela escrita.
Dada a sua recente origem, paira ainda no ar uma certa curiosidade quanto ao que este núcleo vai trazer à Faculdade, e esta incerteza existe porque o CINETEATRA pretende ser um espaço de liberdade, estando longe de se limitar a uma única área de interesse. E foi com base nesse princípio de liberdade que Camila Gomes,estudante do 3º ano da Licenciatura em Direito na FDUP, se sentiu motivada a fazer parte deste novo projeto: “Sempre fui apaixonada por cinema e teatro e, quando soube que ia ser criado um grupo académico focado exatamente nessas áreas, vi nele um espaço onde poderia aprender mais e encontrar outros estudantes que partilham da mesma paixão. Então, quis logo participar!”. Também Duarte Costa, estudante do 3º ano da Licenciatura em Direito na FDUP, afirma que o seu objetivo foi “Encontrar um espaço com pessoas da minha faculdade que partilham os mesmos interesses que eu, assim como encontrar um grupo académico que não seja puramente de socialização”.
Através das redes sociais e da análise dos objetivos que pretende concretizar, podemos concluir que alguns dos eventos que este núcleo se propõe a organizar são clubes de literatura e sessões de cinema quinzenais, bem como workshops e espaços de conversa com pessoas das mais diversas áreas culturais. Em conversa com as fundadoras e com alguns membros, recolhemos alguns testemunhos acerca do tipo de iniciativas que pretendem trazer à nossa comunidade académica. Camila Gomes é da opinião de que “seria interessante organizar visitas a locais relacionados com arte e cultura, como teatros ou museus”. Clara e Beatriz Castro, ambas estudantes do 4º ano da Licenciatura em Direito e fundadoras deste grupo, mostram uma grande vontade em abrir os horizontes para o teatro: “Desde o momento em que pensámos no nome do núcleo, «CINETEATRA», que a ideia era dar igual protagonismo ao Cinema e ao Teatro”.
Em termos gerais, o CINETEATRA vem revolucionar o espetro de grupos académicos ao trazer um espaço única e exclusivamente focado na cultura e na arte, afastando-se da ideia de que um grupo académico apenas tem que servir uma única função - a do enriquecimento curricular. Durante muito tempo sentiu-se (e ainda se sente) na faculdade uma ânsia pelos grupos académicos, principalmente aqueles que permitem o contacto com o associativismo, bem como o contacto com o mundo para lá da sala de aula. Todos ouvimos dizer que é preciso apresentar mais do que uma Licenciatura no currículo, que é preciso mostrar que se fez coisas diferentes durante a experiência académica e que, mais importante ainda, se aprendeu fora das aulas. Desta ansiedade derivada do “querer fazer parte de algo que melhore o meu currículo” nascem também algumas questões: teremos apenas de fazer coisas relacionadas com o Direito para nos tornarmos melhores juristas? Seremos melhores profissionais pelos cursos e artigos jurídicos que façamos, organizemos ou escrevamos ao longo da licenciatura? Sempre que contactamos com pessoas das mais diversas áreas do Direito ouvimo-las sempre dizer que o jurista é aquele que, para além de jurista, é também uma pessoa. Mas o que é que isto quererá dizer?
Durante a licenciatura acabamos sempre por nos encontrar em longos períodos de solidão, quer seja no meio dos livros ou dos tetos altos da biblioteca, e é nesses momentos em que, por vezes, se deseja algo mais. O estudante de Direito, enquanto se perde pelas querelas doutrinais, perde-se, por vezes, também de si mesmo, focando toda a sua vida num único objetivo: o Direito. Aqui reside o maior problema, que é o de que não podemos formar juristas que apenas saibam Direito. A nossa missão enquanto comunidade académica é a de fazer sempre com que todos aqueles que saiam da Rua dos Bragas para o mundo saiam melhores pessoas, profissionais e cidadãos, e a única forma de cumprir este objetivo é através da criação de núcleos como este, que nasceu precisamente de uma vontade de todos aqueles que querem crescer enquanto pessoas ao mesmo tempo que crescem enquanto juristas.
Em conversa com as fundadoras, tentámos descobrir em que é que este grupo se distingue dos outros grupos académicos da FDUP:“Apesar de outros grupos académicos abordarem algumas temáticas culturais (como é natural), penso que nos distinguimos pelo facto de nos assumirmos como um espaço permanente e estável de discussão informal destes domínios. (...) Ninguém entra no CINETEATRA para ganhar visibilidade ou melhorar as suas perspetivas profissionais, mas sim por genuína vontade de conhecer outras pessoas e discutir Cultura. Há esse sentido comunitário que, aliado ao facto de estarmos naquela fase de crescimento em que ‘tudo pode acontecer’, gera uma ligação especial entre os envolvidos, na qual cada um, com os seus gostos e preferências, é uma peça fundamental do puzzle”.
Um outro ponto de discussão é a contribuição deste tipo de iniciativas para o fomento da arte independente e da criação de oportunidades para que os estudantes possam desenvolver as suas capacidades. Há muito tempo que se discute a importância da criação de núcleos e grupos culturais no seio da Universidade do Porto, na medida em que é impossível ignorar a forma como a cultura tem um impacto na vida de todos os estudantes. Além disso, vivem-se tempos muito sombrios para quem escolhe a arte como propósito e profissão, principalmente quando estamos fora da capital, dada a falta de apoios e iniciativas que tornem esta profissão sustentável.
Numa breve análise sobre o estado da cultura em Portugal, as fundadoras expressam uma preocupação pelo longo caminho que a sociedade ainda tem para percorrer no campo da valorização da cultura e na sua democratização: “ (...) na nossa opinião, deve haver um equilíbrio entre uma programação cultural inclusiva e acessível (ao nível dos cinemas, teatros, etc.) e uma vontade do público em conhecer, para além do estímulo financeiro estatal, que tem de deixar de ser manifestamente insuficiente e tomar algum risco no investimento em produções culturais.Infelizmente, vivemos num mundo em que aquilo que não é vantajoso do ponto de vista económico passa para segundo plano. (...) Destacando em especial o teatro, há também que desmistificar aquela ideia errada de que o teatro é um ‘passatempo burguês’. Um bilhete de teatro é, por norma, relativamente acessível, mesmo que em alguns casos seja necessária alguma gestão financeira”.
Comparando com outros países da Europa, tanto Clara como Beatriz Castro reconhecem a forma como Portugal está muito atrasado nesta matéria: “Para exemplificar, recentemente visitámos Estrasburgo (França) e surpreendemo-nos com o quão fácil era encontrar pequenos cinemas a cada virar de esquina, e, com sorte, assistir ao decorrer de um pós-discussão com o realizador de um filme premiado em festivais internacionais, com as salas quase sempre cheias de pessoas das mais diversas idades. O mesmo acontece em Roma (Itália), por exemplo. Pode dizer-se que estes são países mais ricos que Portugal, mas aqui, no essencial, o que está em causa não é riqueza, mas sim uma questão que começa por ser cultural (literalmente), e tem a ver com a educação que é incutida no cidadão médio de cada um destes países que, no fundo, vai formar a sua ‘lista de prioridades’ na vida e, por consequência, também o seu nível de consumo cultural”. Desta conversa conclui-se que a comunidade estudantil tem visto a cultura a ser colocada de lado, o que não acontece em todos os países da Europa. Em Portugal, sempre se colocou as artes numa posição elitista, como se fosse algo que não chega a todas as classes, mas esta ideia tem que ser contrariada, e esse trabalho deve ser feito por quem aprecia a arte e se apercebe deste problema.
O CINETEATRA nasceu de uma urgência de criar novas conversas e abrir horizontes na comunidade académica, que se manifesta indiscutivelmente no testemunho das fundadoras quando nos relatam o momento de reflexão e de criação do grupo: “Quando percebemos que tínhamos o apoio de muitos colegas, idealizámos este projeto, e foi um momento em que todas as peças se encaixaram. Hoje, o que pretendemos é que o CINETEATRA alimente essa ‘fome’, que acreditamos existir entre os nossos pares, de consumir cultura e de falar sobre ela. O objetivo é promover a troca de experiências e de diferentes perspetivas sobre as mesmas obras artísticas, levando-nos a desconstruir aquilo que pensamos e, eventualmente, confrontando-nos com o exato oposto. E não é isso que o Direito faz, em certa medida?”. James Baldwin dizia que o propósito da arte era desvendar as questões que tinham sido ocultadas pelas respostas, e a essência deste núcleo é mesmo essa: trazer um espaço de conversa para todos os apaixonados pela arte.
Ana Picado
Departamento Mundo Universitário
留言