Uma operação levada a cabo pela Judiciária do Porto investiga elementos da direcção da Comunidade Israelita do Porto (CIP). Em causa estão crimes como tráfico de influências, corrupção activa, falsificação de documentos, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e associação criminosa.
A certidão de descendência de judeus sefarditas, elaborada pela CIP que é um dos meios possíveis no processo de atribuição de nacionalidade, está a ser investigada devido a um alegado esquema de corrupção. As suspeitas levantadas pela investigação são de que membros da CIP receberiam largas quantias de dinheiro, ilegalmente, em troca de facilitações no processo da atribuição de cidadania.
Um dos visados nesta operação é Daniel Litvak, rabino na CIP e responsável pelo processo de certificação em causa. O líder religioso foi, entretanto, detido no dia 10 de Março quando se preparava para uma viagem a Israel. Está, neste momento, com a medida de coacção de termo de identidade e residência, após ter sido submetido a primeiro inquérito judicial. Foram realizadas buscas “domiciliárias e não domiciliárias”, nomeadamente ao escritório de um advogado, elaboradas pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ, onde, segundo a polícia, “foi apreendida vasta documentação e outros elementos de prova”.
O advogado mencionado é Francisco de Almeida Garrett, representante legal da CIP e também sobrinho da ex-deputada do PS, Maria de Belém Roseira, uma das proponentes da Lei que, em 2013, admitia a possibilidade de obtenção de cidadania portuguesa através da descendência de judeus sefarditas. Este mecanismo começou a vigorar dois anos depois, em 2015. O jurista exerce as funções de representatividade na Comunidade desde 2011. Desde então a CIP cresceu de forma bastante expressiva: além de ter aumentado em muito o seu número de membros, o Jerusalem Post diz ter adquirido “um hotel ‘kosher’, um banho ritual, um cantor [solista da Sinagoga], seguranças e um novo museu”.
Em resposta às acusações a CIP diz, em comunicado, lamentar a “a tónica nos efeitos negativos na lei da nacionalidade, nos supostos lucros milionários das comunidades certificadoras e em tudo o que possa denegrir a lei”. Além disso, diz que as acusações partem de “teorias da conspiração e os velhos mitos anti-semitas do dinheiro e dos truques de maçonarias judaicas”. É possível ler ainda que apenas são cobrados 250 euros pela certificação, dizendo que valor semelhante é practicado “quer pela Conservatória de Portugal, que ninguém acusa de lucros milionários, quer pelas comunidades certificadoras de todo o mundo”.
O multi-milionário russo e amigo pessoal de Vladimir Putin, Roman Abramovich, tem passaporte português desde Abril do ano passado e poderá ter sido beneficiado no alegado esquema. O processo de nacionalização de Abramovich, que já acumula quatro passaportes distintos, está também a ser investigado paralelamente, como indiciou a Procuradoria-Geral da República, em Janeiro deste ano. Este caso já havia sido notícia anteriormente, tanto pelo facto de o processo em causa apenas ter demorado 6 meses, como por haver rumores relativamente à possibilidade do magnata russo não ter etnia sefardita, mas sim descendência ashkenazi, i.e., judeus do leste da Europa.
Em Janeiro de 2016, no ano seguinte após a lei da nacionalidade incluir a questão sefardita, a CIP tinha enviado uma carta de alerta aos gabinetes de António Costa e Francisca Van Dunem, então ministra da justiça, a alertar para a possibilidade de a Comunidade Judaica de Belmonte poder incorrer em fraude no processo de certificação da descendência sefardita. Isto porque, segundo a CIP, a comunidade judaica de Belmonte é “uma comunidade de judeus muito pobres (sempre foram feirantes e pequenos lojistas) que nunca teve recursos económicos sequer para contratar um rabino”. As preocupações levantadas na carta tiveram ressonância, deixando apenas a CIP e a CIL como as únicas comunidades judaicas com estatuto de pessoa colectiva religiosa a elaborarem este tipo de certificados.
Ora o comunicado agora lançado pela CIP, em resposta às acusações, recusa qualquer ilicitude por parte das comunidades judaicas certificadoras: “Nenhum caso suspeito foi encontrado em sete anos de vigência da lei. E assim vai continuar”. Afirmações que contrastam em grande medida com a já referida carta de alerta da CIP, em 2016, que sugeria a forte possibilidade de a comunidade judaica de Belmonte cometer fraudes no processo de certificação devido a motivações económicas.
Neste texto enviado à imprensa, a CIP diz ainda deixar de elaborar os certificados de descendência judaica, a ler: “[A CIP] não mais tem interesse em colaborar com o Estado na certificação de judeus sefarditas". Lembra ainda a proposta feita ao Governo entre 2013 e 2014 relativa à “criação de uma comissão internacional para esta missão”.
Nacionalidade comercializada
Uma investigação do Público mostra que é possível encontrar websites de empresas ibéricas, como a Sephardic Citizenship, e escritórios de advocacia israelitas, como a Cohen, Decker, Pex & Brosh ou a Portugalis Group, a promover e a incentivar a obtenção da nacionalidade portuguesa. Para tal são listadas as vantagens do passaporte português, como a cidadania na União Europeia, a facilidade legal na realização de negócios dentro da UE ou a dispensa de visto para entrada nos EUA. Podem ler-se slogans como: “Tem ascendência sefardita? Obtenha o seu passaporte em seis meses!!!”. Nestas páginas é possível ainda ver uma comparação entre o estado português e o espanhol no que toca ao processo de adquirir a nacionalidade. A vantagem é dada a Portugal, onde dizem que, ao contrário do que acontece em Espanha, não são necessários testes de linguagem ou cultura nacional, além de ser dispensada a presença física do concorrente durante todo o processo.
Numa das páginas web é possível ler: “Trabalhamos com um escritório de advocacia de imigração local que trata das etapas finais do processo de obtenção de cidadania, temos contactos com a comunidade judaica no Porto que emite a aprovação necessária e temos a confiança de membros-chave das autoridades de imigração.”. O discurso publicitário e a forma como descrevem o processo de obtenção da cidadania aparentam fazer do passaporte português um bem comercial e uma porta aberta para os negócios na União Europeia.
Numa entrevista à RTP, um antigo advogado duma agência de documentação israelita, especializada na nacionalidade portuguesa, admite ter-se afastado da instituição pelas irregularidades nos processos de certificação do sefardismo, aos quais apelida de “negócio”. Carlos Nunes diz ter presenciado o início desta actividade, que justifica com o facto de a embaixada portuguesa no Estado de Israel não ter capacidade para albergar tantos pedidos de nacionalidade. O jurista diz que estas empresas se multiplicaram e houve quem enriquecesse à custa destes serviços documentais.
Carlos chegou a garantir que tratou pessoalmente de 18 mil processos de nacionalização portuguesa, cerca de 800 por mês. Ainda assegurou ter tratado de alguns casamentos e outras questões civilísticas de cidadãos luso-israelitas, incluindo de um ex-líder da Mossad, a central de inteligência secreta do Estado israelita. O advogado diz que destes 18 mil cidadãos portugueses, apenas 100 residem em Portugal. Carlos afirma ainda que uma das motivações para sair do negócio foram algumas ameaças de processos-crime e participações disciplinares feitas por elementos da Conservatória de Portugal, que o acusavam de ser negligente relativamente à “não perfeição”, como descreve, dos processos documentais vindos de Israel.
A facilidade de atribuição da nacionalidade já foi alvo de críticas por figuras como Augusto Santos Silva, então ministro dos negócios estrangeiros, ou Francisca Van Dunem, na altura à frente da pasta da Justiça. Embora alguns críticos até comparassem este mecanismo legal aos “vistos gold”, outras figuras como Manuel Alegre ou Maria de Belém defendiam a existência do estatuto como foi instaurado. Em 2020, Constança Urbano de Sousa, então vice-presidente da bancada parlamentar do PS, já havia sugerido algumas alterações ao diploma em causa, a fim de evitar a eventual lógica mercantilista por detrás de alguns processos de naturalização, como justificou. No entanto esta posição foi polémica e alvo de acusações de “anti-semitismo” e, como tal, o PS nem sequer avançou com a proposta para o parlamento.
Entretanto, propostas em Dezembro do ano passado e publicadas no passado dia 18, o governo de António Costa fez impor medidas mais restrictivas na chamada lei da nacionalidade. As alterações ao diploma, no que toca à questão sefardita, incluem a necessidade de “deslocações regulares a Portugal ao longo da vida” e documentos que comprovem a titularidade de bens ou participação em sociedades comerciais e que os concorrentes não tenham sido condenados a uma pena equivalente ou superior a 3 anos de prisão, segundo a lei portuguesa.
Desde 2015, a CIP e a CIL foram responsáveis pela emissão de 86.500 certificados relativos a pedidos de nacionalidade. Destes, resultaram 32 milhares de pedidos aprovados, estando ainda dezenas de milhares por aprovar. Do total de pedidos, perto de 90% foram dados pela Comunidade Judaica do Porto.
Sefarditas, “ספרדים” – contexto histórico português
Estima-se que uma grande fatia da população israelita, entre 20 e 40%, seja de origem sefardita. A palavra tem origem na denominação judaica da Península Ibérica (Sefarad - ספרד) e refere-se a todos os judeus desta zona geográfica. Além do território, estes judeus partilham um conjunto de prácticas litúrgicas e culturais próprias, em parte muito influenciada por Moses ben Maimon, um filósofo e rabino do século XII, natural de Córdoba, que se debruçou principalmente no estudo Tora e nas leis e ética o judaísmo.
Até ao século XV, os judeus integravam a Península Ibérica, conseguindo lugares de destaque na vida política e económica dos seus reinos. Estima-se que as migrações possam ter começado com a Segunda Destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. por parte das tropas romanas, a mando do imperador Vespasiano, ou com a expulsão de judeus de Jerusalém e a nova destruição do Templo, em 135 d.C., desta vez sob a alçada do imperador Adriano. Com o crescimento do cristianismo, tanto os romanos como, mais tarde, a partir do século V, bárbaros e visigodos, tinham leis e prácticas discriminatórias contra judeus. Com a ocupação árabe da Península Ibérica, a comunidade judaica chegou a viver num espírito de mais liberdade, já que a doutrina islâmica previa a coexistência com o povo hebreu.
Apesar de gozarem de um relativo pacifismo com a Reconquista e, mais tarde, o Reino de Portugal, e terem assegurada, desde o reinado de D. João I, administração de Justiça própria, os judeus tinham de pagar pesados impostos. A comunidade judaica desenvolvia-se e ocupava lugar de relevo na sociedade portuguesa estratificada, o que começava a incomodar alguns sectores da população.
Esta insatisfação atingia também a vizinha Espanha, que se antecipou nas perseguições e violência. Em 1478 foi instaurada a Inquisição em Espanha que condenou milhares de judeus à conversão forçada, à fuga ou à morte. Em 1492 foi oficialmente decretada a expulsão de judeus do território espanhol. Com a ascensão de D. Manuel I ao trono português, casado com a princesa Isabel de Castela, leis semelhantes seguir-se-iam. Quatro anos depois seria também assinado um decreto pelo monarca português a expulsar hereges (judeus e muçulmanos) de Portugal, dando-lhes 10 meses para abandonar o território.
Das conversões forçadas resultaram “cristãos-novos”, judeus convertidos à força ao catolicismo, e cripto-judeus, aqueles que professavam o judaísmo em segredo, ao passo que publicamente practicavam a fé católica. Os “cristãos-novos”, todavia, nunca se integraram bem no tecido social português, nomeadamente pela desconfiança na sua conversão.
O clima de anti-semitismo vivido em Portugal culminou com o pogrom de Lisboa de 1506. Trata-se do assassínio em massa de judeus durante três dias, na Semana Santa, acusados de serem a causa da peste e da fome. Estima-se que os populares lisboetas mataram entre 2 e 4 mil judeus. Apesar de D. Manuel I ter mandado prender e matar alguns dos responsáveis pelo massacre, pensa-se que o episódio, juntamente com a conjuntura já descrita, tenha contribuído decisivamente para o êxodo de quase toda a população judaica em Portugal, que agora se espalhavam por países como a Inglaterra, França, Alemanha, Império Otomano ou Países Baixos. A população judaica foi, a partir do século XVI, muito escassa em Portugal.
Quatro séculos passados, aquando da Segunda Guerra Mundial, o número de refugiados do conflito armado e do holocausto era muito grande. Estima-se que 40 mil judeus tenham passado por Portugal, sendo que, entre 1940 e 1941, 10 mil obtiveram vistos do cônsul português em França, Aristides de Sousa Mendes. Muitos utilizaram Portugal como ponto de passagem para a migração para países como o Brasil ou os EUA.
É na já referida comunidade judaica de Belmonte que é possível encontrar um dos únicos exemplos da herança judaica ibérica. A comunidade beirã, situada ao lado da Serra da Estrela, foi composta por marranos (apelido para cripto-judeus) em harmonia com cristãos. Estes mantiveram, durante séculos, tradições judaicas familiares com um relativo afastamento do poder central. A endogamia era uma práctica muito comum nesta comunidade profundamente secretiva, forma que permitiu a subsistência do judaísmo em Belmonte. Esta comunidade apenas teve reconhecimento oficial em 1989, sendo que em 1996 foi aberta a sua primeira sinagoga, Beit Eliahu (Filho de Elias), numa das antigas ruas da judiaria belmontense. No entanto, os populares garantem que a maioria dos marranos e os seus familiares deixaram o país para viver no Estado de Israel.
O autor escreve segundo o Antigo Acordo Ortográfico.
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