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Foto do escritorJosé Santos

Da Ética, quando a vida (ou a morte) é uma escolha

A problemática filosófica associada ao dever e à ação correta é largamente conhecida e debatida desde os Gregos: Platão, Aristóteles, as escolas helénicas, Espinoza, Kant e Stuart Mill são alguns dos principais nomes que contribuíram através de teorias várias para, se não resolver, pelo menos esclarecer este conflito intrínseco que atormenta a espécie humana. Todavia, “let’s not fool ourselves – como diriam os anglo-saxónicos – a leitura dos diversos Tratados é interessantíssima e extremamente valiosa para uma formação pessoal completa e íntegra, mas a cizânia Ética será sempre uma questão que virá ao de cima na ação prática e só na prática terá relevo nas nossas vidas; é por isso que ao ver o sexto episódio da quinta temporada de The Good Doctor, intitulado “One Hart”, senti-me sensibilizado para escrever este artigo, dado que eu próprio cismei ao tentar responder à pergunta central da trama: valerá a pena sacrificar uma pessoa que tem 99% de chances de morrer para salvar outra que depende exclusivamente desse sacrifício?


Antes de prosseguirmos, releva uma breve contextualização: The Good Doctor, quer queiramos, quer não, é apenas mais um medical drama, como muitos outros já conhecidos neste genre. Não obstante, tem algumas particularidades que o tornam único. Em primeiro lugar, é produzido por David Shore, o mesmo realizador de House - uma das melhores séries de sempre (admito, no entanto, a minha – grande – parcialidade no que ao Hugh Laurie concerne); em segundo lugar, expõe um plano muitas vezes esquecido no mundo artístico (e, infelizmente, não só): o autismo. Sendo, claro, um tema sensível, a série retrata Shaun – a personagem principal – de forma fidedigna, como um médico genial, honesto, idóneo, algo ingénuo e com dificuldades sociais expectáveis tendo em consideração a sua condição médica (síndrome de Savant). Tanto uma como outra tornam a série numa realidade sui generis, onde não falta drama, emoção, comédia, suspense e dilemas filosóficos. Dentro deste último surge o meu maior interesse: uma série que explora em todos os episódios a questão da vida e da morte, tornando um mero ser humano, em determinada situação, num Deus todo-poderoso, capacitado para escolher o destino derradeiro da pessoa que se encontra ao seu cuidado. Veremos as repercussões que isto acarreta numa análise mais detalhada de “One Hart”.


Um coração, duas pessoas: De um lado, Brandon, jovem adulto introduzido logo no início do episódio, sofre um acidente que resulta em várias fraturas e num traumatismo craniano severo; De outro, Ollie, uma criança desde muito nova diagnosticada com problemas de coração, sabemos que a situação é grave, o prognóstico infeliz. As histórias de ambos entrecruzam-se pelo denominador comum: o hospital, de modo geral; o tipo de sangue, em especial. O Dr. Shaun estava de serviço nas urgências aquando da chegada de Brandon; Ollie é um paciente de longa data (lato sensu, tendo em conta a juventude do rapaz) do Dr. Park, colega de Shaun no Hospital de Bonaventura.


A questão é abordada sem demoras, a gravidade da situação de Brandon assim o dita. Apesar do esforço hercúleo de Shaun, não se augura salvação para Brandon; Park toma conhecimento disto (violando protocolos deontológicos). De seguida, propõe a Shaun o transplante, fazendo um argumento ad passiones (apelo à emoção), instrumentalizando a vida de uma criança para desistir da vida de um adulto. Shaun recusa imediatamente. Toma com ofensa o pedido. Park não se limita a violar todos os procedimentos deontológicos entre médicos e possíveis doadores, como também apela ao amigo que desista de salvar uma vida: You can’t save everyone. If your patient is gone, let me save mine. A ética kantiana de Shaun entra em colisão com a utilitarista de Park. Um recusa-se a fazer de uma vida um mero meio para um outro fim (aludimos aqui a uma das fórmulas integrantes do imperativo categórico); outro, pretende, na sua visão, alcançar a maior felicidade e bem-estar possível (regendo-se pelo princípio do bem-estar máximo). Como ficamos? Voltamos à pergunta inicial, introduzindo algumas nuances concretas: será ético “sacrificar” – i.e. desistir de, ativamente, salvar – uma vida que provavelmente deixará de existir naturalmente (a probabilidade de morte é 99%) para tentar, com esse sacrifício, prevenir a morte de outra?

Quando confrontado com esta opção – na sala operatória, onde a escolha prendia-se entre: tentar um tratamento arriscado, com apenas 1% de probabilidade de funcionar, mas que tornaria os órgãos inutilizáveis para transplante caso não surtisse efeito, ou; não tentar e deixar que o paciente, de forma orgânica, falecesse – Shaun foi claríssimo: se existe chance de salvar uma vida, essa vida valerá todas as tentativas possíveis, sendo que qualquer outra pessoa, dependente ou não da decisão, não poderá, eticamente, entrar na equação. A sentença está, assim, tomada. O resultado? Previsível. O tratamento não evitou a morte de Brandon e, no processo, tornou inutilizável o coração deste para salvar Ollie. Duas vidas findam tentando salvar uma. A decisão de um médico repercute-se na esfera familiar de diversas pessoas. A tragédia torna-se realidade. Ou será mesmo?


Este é o quadro que nos é pintado e que, na minha opinião, deveria concluir o episódio. É dramático? Nefasto? Sinistro? Sim. Mas a vida e as decisões que nela tomamos têm muitas vezes este tipo de desfechos. Não podemos tornar a realidade numa novela cor-de-rosa e em finais felizes da Disney, right? Os realizadores claramente não partilham da minha mundivisão. Lá, nos últimos dez minutos do episódio, consegue Shaun de forma muito aparatosa salvar o coração de Brandon (não a vida, isso já tornaria o episódio claramente ridículo) e “oferecê-lo” a Park para realizar o transplante ao seu jovem paciente Ollie. Não fica tudo bem, mas estamos perante um clássico “final feliz”. Ironicamente, muito infeliz para a credibilidade e qualidade da série.


Por motivos de economia, deixo de parte outros problemas abordados no episódio – como a história paralela da Dr. Morgan, interpelada a decidir entre oferecer o tratamento mais benéfico (mas mais arriscado e, fundamentalmente, mais caro) à paciente e assumir um cargo de maior relevo, subindo na carreira à custa da seguradora e, no fundo, da qualidade de vida da paciente – e, também, de aprofundar temáticas já discorridas, como o valor ético de uma criança e de um adulto. Não obstante, creio que o conflito inicial é suficiente para refletirmos internamente sobre o valor da vida, podendo, claro, concordar ou discordar da decisão tomada por Shaun. Da minha parte, fica sempre a tentativa quimérica de reger-me pelo imperativo categórico, lutando pelo dever e, neste caso, pela vida de Brandon.

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