“Death to the World” é o nome de uma publicação surgida em 1994, em forma de revista, pela autoria de monges ortodoxos do Norte da Califórnia, com o propósito de divulgar a fé cristã a jovens inseridos em movimentos de contra-cultura e punk. Os princípios doutrinários da sua religião eram, assim, explorados através de um prisma niilista e anti-modernidade. A divulgação desta perspectiva visa dar significado ao sofrimento e à desolação juvenis ao reconhecer a legitimidade da alienação sentida face ao meio (secular) em que vivem, apelando à rebeldia na crítica de aspectos da vida social como o consumismo, a perda de valores, o hedonismo e o culto ao prazer, o isolacionismo, a superficialidade das relações sociais ou o egocentrismo generalizado. Face àquilo que defendem ser o vazio espiritual da sociedade moderna, apresentam soluções baseadas no asceticismo e na vida monástica, que incluem a práctica da disciplina física, a oração, o silêncio da auto-reflexão e o afastamento de posses materiais. Era ainda fomentada a comunhão humana em torno da fé, seja de cariz familiar ou congregacional.
A iniciativa desta publicação partiu, em grande medida, de Justin Marler, ex-guitarrista da banda Sleep, associada aos sub-géneros stoner, doom e sludge metal. O grupo, que deriva de influências do heavy metal clássico, conta com uma sonoridade hipnótica e ríspida, cujos riffs distorcidos se arrastam pela longa duração das suas composições. Esta linha estética densa e monolítica, que frequentemente roça o psicadélico, é utilizada na exploração lenta e meditativa de temáticas como: o existencialismo; a solidão como necessidade na busca do auto-conhecimento; a viagem cósmica como metáfora da introspecção espiritual; a rebeldia e disrupção social. Estas perspectivas, adoptadas pelo grupo, levariam o músico a enveredar pela vida reclusa num mosteiro do Norte da Califórnia ligado à Igreja Ortodoxa Russa. A desistência do projecto musical, logo após o lançamento do primeiro álbum, ocorreu num período em que este contava com uma crescente notoriedade e que culminou com o alcance de estatuto de culto no meio.
O MUNDO
A denominação do principal inimigo a combater provém das ideias defendidas por Isaque de Nínive, um bispo e teólogo do século VII, nascido no actual território do Qatar e que foi beatificado pela Igreja Ortodoxa. Entre as suas muitas contribuições para o estilo de vida monástico, é defendido que o “mundo” designa todos os desejos e prazeres terrenos que carregam, em si, o pecado cristão. Nesta linha de raciocínio, as santidades cristãs viviam “mortas”, já que, apesar de corporeamente vivas, elas não viviam para a carne. Com efeito, a afirmação da doutrina espiritual cristã faz daquele que a professa, nestes termos, como se estivesse morto para o “mundo”, enquanto sinédoque dos desejos mundanos, prazeres efémeros e impulsos materialistas.
A revista afirmava que viver a vida de acordo com o evangelho é, no mundo contemporâneo, verdadeiramente revolucionário e parte de um movimento disruptivo e contra-cultural, já que assenta na recusa das grandes tendências da sociedade actual. Assim, a ascese e a esperança na ressurreição através da fé são, para este movimento, instrumentos para os quais os jovens rebeldes e inconformados deverão canalizar o seu descontentamento e indignação, visto ser defendido que os males do mundo provêm do seu secularismo.
A estética da publicação, originada nas sub-culturas do rock subversivo e observada na utilização de crânios humanos nas fotografias de capa, grafismos monocromáticos imponentes e títulos que apelam à revolta, dignos de designarem álbuns de metal, constituem, no essencial, a peculiaridade desta perspectiva. É na apropriação do tom e da linguagem de tendências seculares insurgentes, ainda que rejeitem radicalmente a vida terrena, que auto-intitulam o movimento como sendo a “última verdadeira revolução”.
O enquadramento teológico desta perspectiva encontra-se na doutrina ortodoxa da salvação, com maior expressão na theosis (θέωσις), ou deificação, enquanto processo da união do ser humano com Deus, estabelecendo como objectivo da vida terrena viver de acordo com a Sua imagem (2 Pedro 1:4). Para tal alcançar, deverá o indivíduo também passar pela catharsis (κάθαρσις), isto é, a purificação da alma, e pela theoria (θεωρία), a contemplação divina através da iluminação da sua visão.
Actualmente, este movimento direcciona a sua actividade para o seu website e redes sociais, nos quais continua a publicar pequenas citações do clero ortodoxo. A edição número 30, comemorativa dos 30 anos, foi recentemente lançada em formato físico.
DA IGREJA ORTODOXA
A Igreja Ortodoxa deriva do Grande Cisma do Oriente em 1054, motivado por um longo e complexo processo de disputas teológicas e políticas no seio da Igreja Católica ao longo do primeiro milénio. Apesar de ambas as instituições terem origem naIgreja cristã primitiva, esta foi alvo de um enorme alargamento, principiado no século IV, com o convertimento de Constantino I (272-337), imperador de Roma. A autoridade papal, centralizada no bispado romano, e as suas assinaláveis implicações políticas para o emergente Império Bizantino, bem como as diferenças culturais, linguísticas e, ainda, teológicas, ditaram uma separação formal das duas igrejas, que foi marcada por excomunhões mútuas.
Apesar de partilhar muitas das semelhanças com a Igreja Católica e reconhecer o consenso doutrinário e litúrgico alcançado nos primeiros sete concílios ecuménicos, afiguram-se algumas diferenças na doutrina ortodoxa, entre as quais: o questionamento da autoridade papal suprema; o monopatrismo na doutrina trinitária, que afirma que o clausulado original do credo niceno-constantinopolitano, relativo ao primeiro concílio, contemplava a procedência do Espírito Santo somente do Pai; a língua litúrgica utilizada até ao século XX, o Grego; a rivalidade dos centros de poder político de Roma e Constantinopla, cujo pico de maior tensão fora a Quarta Cruzada, com o saque da capital bizantina em 1204.
A instituição religiosa deriva o seu nome da palavra grega orthodoxía (ὀρθοδοξία), que, por sua vez, é uma junção de dois conceitos: orthós (ὀρθός), que significa “rectidão” ou “correcção”; e doxa (δόξα), que aponta para os conceitos de “doutrina” ou “opinião”. Esta designação leva consigo parte da importância da divisão face ao catolicismo apostólico romano, que dizem haver desvirtuado a fé cristã. Com efeito, o nome visa reflectir o compromisso para com as doutrinas originais do cristianismo, presentes nos primeiros concílios, e continuar as prácticas da Igreja primitiva.
José Miguel Barbosa
Departamento Sociedade
O autor escreve de acordo com o anterior acordo ortográfico.
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